O título na internet me chamou a
atenção: "Sheherazade diz que já foi de esquerda e defende
Feliciano",junto uma foto de uma mulher classicamente bem
vestida. Que raios é Sheherazade? Me pareceu nome artístico de
atriz pornô (ou ex, pela foto. Procurei, não achei nenhuma, mas que
soa um bom nome, soa). Cliquei na notícia. Trata-se da apresentadora
do jornal SBT Brasil, Rachel Sheherazade, de quem tive conhecimento
há pouco - apesar de estar há três anos como apresentadora
nacional -, quando vi o vídeo de um amigo contra-argumentando seus
comentários sobre a legalização da maconha no Uruguai.
A reportagem que li é de Mônica
Bergamo, para a Falha de São Paulo, e traça um breve perfil da
apresentadora, "famosa pelos comentários polêmicos",
segundo a jornalista. Talvez a polêmica maior de Rachel seja poder
demais para pensamento "demenos": ela não se restringe ao
senso comum classe-média, como Ricardo Boechat, seu concorrente da
Band; ela vai além e abusa de preconceitos. E não digo isso só
pela sua defesa do deputado e pastor Marco Feliciano que, segundo
ela, sofre "perseguição religiosa" por sua incitação ao
ódio. Falo também do preconceito com a cidade, com pessoas pobres,
quando diz que tem medo de violência urbana e que, a não ser para
trabalhar, raramente sai de Alphaville, e quando sai, é para ir a
shoppings (talvez não mais com o risco da turba querer utilizar esse
espaço). Trata-se de outro bom exemplo do nível do que a Grande
Imprensa apresenta ao grande público como formadores de opinião,
pensadores, intelectuais: pessoas com formação superior (para dar
legitimidade), uma capacidade de refletir rasteira, uma capacidade de
argumentar precária, e uma retórica afiada para inflamar paixões.
É da geração que substituirá Jabor, Leitão, Boechat, Waack,
Azevedo, Mainardi, Bueno e outros, que cria polêmica para ter ibope, e não aquela polêmica que leva a repensar pontos estabelecidos. O pior é que, como formadora de
opinião, trata-se de um modelo de postura - fechada ao diálogo, dona da
verdade, recusadora da reflexão, desmerecedora do Outro - que
provavelmente será seguido por muitos.
Outro ponto do perfil que me
chamou a atenção é quando fala da sua orientação política: "eu
era de esquerda. Votei no Lula até ele ser eleito. Me decepcionei
com o PT (…). Com minha maturidade, passei a ter posicionamentos
mais de direita do que de esquerda". O PT parece ser o álibi
mais fácil e em voga para supostas mudança de lado. O que esse
argumento mostra, antes de tudo, é a precariedade do pensamento, que
aceita desde a identificação de um partido com uma linha política
até a escolha binária, é isso ou o contrário. Nuances?
Possibilidades fora do que é dado? Crítica ao sistema
representativo que gera esquerdas e direitas tão próximas? Nunca!
A pretensa mudança de lado, na
verdade, me parece ser o desvelamento do conservadorismo inerente aos
habitantes da "sociedade do espetáculo". Ao ferimento do
seu narcisismo, à aridez de um mundo que não é a Terra do Nunca
que os pais disseram que era, os antigos jovens bem de vida e de
esquerda se tornam adultos bem de vida e maduros. Quantos
ex-presidentes, escritores, intelectuais, professores universitários
e mais um sem número de pessoas que se crêem ilustradas, não
enchem o peito para falar de antigamente, das lutas revolucionárias,
dos conflitos com a polícia ou com a autoridade, para então
concluírem à sua platéia jovem-revolucionária de que eram
irresponsáveis e irrealistas - idealistas -, e se hoje criticam a
esquerda é porque já foram um dia e sabem o que estão falando.
Sheherazade tem quarenta anos,
creio que não preciso de mais dez anos para ver meus ex-colegas de
faculdade (afinal, estudei no antro marxista do Brasil), então
cheios de hormônios revolucionários, discursarem, na melhor das
hipóteses, um conservadorismo xoxo de esquerda: de graduandos
revolucionários a acadêmicos responsáveis. Auto-crítica, dirão
eles, como disseram a eles nossos professores. E a auto-crítica de
perceberem que sempre foram conservadores, essa nunca fazem, porque
desligitimaria seu discurso de "eu sei" e, pior, poderia
mostrar a seus pupilos que eles fazem teatrinho de contestação,
nada sério. Como dizia Debord, em 1967, na sua tese 62: "Onde
se instalou o consumo abundante, aparece entre os papéis ilusórios,
em primeiro plano, uma oposição espetacular entre a juventude e os
adultos: porque não existe nenhum adulto, dono da própria vida, e a
juventude, a mudança daquilo que existe, não é de modo algum
propriedade desses homens que agora são jovens, mas sim do sistema
econômico, o dinamismo do capitalismo. São as coisas
que reinam e que são jovens; que se excluem e se substituem
sozinhas". Rachel Sheherazade, diante do seu papel político na
sociedade, é como qualquer um de nós: insignificante pela sua
pessoa e substituível com mais facilidade do que se troca de roupa.
Pato
Branco, 12 de janeiro de 2014
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