Em O
futuro, filme de Miranda July, o
leitmotiv do longa é
um casal de namorados que resolve adotar um gato e vê com isso suas
acomodadas vidas (a vida do casal, como a de cada um dos parceiros)
abaladas pela expectativa do bichado que virá – o gato está em
uma clínica veterinária e terá alta em um mês. Com esse enredo
simples, July levanta uma série de questões interessantes sobre a
atual geração.
Jason e Sophie estão juntos há quatro anos, têm cerca de trinta e
cinco anos, moram juntos. Sophie é professora de balé para
crianças. Jason, atendente de assistência técnica por telefone,
trabalha em casa. Não são desajustados, são desajeitados,
principalmente Sophie, que apesar de dançarina não parece ter uma
relação muito harmoniosa com o próprio corpo. Nenhum dos dois
chega a ser infantil – “kidults” –, porém são muito
imaturos, evidenciado pelo desespero de ambos diante da
responsabilidade de adotar um gato – cuja expectativa de vida, e
eles sabem disso, é de seis meses. Por essa reação, somada ao
marasmo, à passividade das suas vidas, parece que terão pela
primeira vez uma responsabilidade de fato: até então teriam apenas
cumprido tarefas elementares do fluxograma do intervalo obrigatório
até a morte.
Como têm um mês para a chegada do peso da vida adulta, decidem
aproveitá-lo. Não, nada de viagens e hedonismo desenfreado: é um
tentar se encontrar, antes que o gato chegue para acabar de vez com
sua liberdade – que nada mais é que poder jogar tudo para o alto,
tão-somente. Eles abandonam seus empregos. Ela anuncia aos amigos
seu projeto de elaborar trinta danças em trinta dias – uma
tentativa de alcançar o “sucesso” da secretária gostosa da
academia, que tinha dez mil visitas ao seu vídeo no youtube. Ele
prefere se deixar levar, estar aberto ao que a vida pode lhe
oferecer. Mesmo sem nunca ter se interessado por questões
ecológicas, entra em uma ONG que vende árvores sob a desculpa de
salvar o mundo – não que tenha adquirido qualquer convicção,
apenas passou por um homem que anunciava as tais árvores e acho que
era o sinal.
Se
ele passa a sair de casa, ela faz o inverso, e passa a ficar em casa
– eis a grande mudança de vida que eles realizam. Ele parece bem –
bem adaptado, ao menos – com seu novo emprego, tal como parecia com
seu antigo: no fundo, a impressão que se tem é que qualquer coisa
lhe é indiferente: assumiu o discurso ecológico como poderia ter
assumido outro e como pode abandoná-lo com a mesma facilidade. Ela,
por outro lado, segue desajustada: era uma professora sem vitalidade;
em casa, com a tarefa auto-imposta e a comparação com a secretária
bem sucedida, simplesmente paralisa. É uma exigência acima das suas
forças – talvez não por ela não ser capaz, antes porque não
parece ser de fato esse o seu desejo: ela apenas tenta fazer o que as
outras estão fazendo. Nenhum dos dois demonstra autonomia (por esses
e outros detalhes trazidos no filme), e o arroubo de assumir a
própria vida que levou a essa reviravolta (aparente) foi somente um
gesto irrefletido e inconseqüente, que não alterou a heteronomia de
suas ações, de seus desejos, que não fez brotar qualquer plano
para longo, médio ou curto prazo nele – nela, talvez as trinta
danças, das quais não consegue sequer realizar a primeira.
Por falar em planos, quando eles se dão conta de sua idade – mais
seis meses e temos trinta e cinco, trinta e cinco é quarenta,
quarenta é praticamente cinqüenta, e cinqüenta é o fim –, fica
evidente a precariedade de qualquer auto-reflexão: os planos de
Jason são gerais e banais: ser rico, ser líder mundial; os de
Sophie não chegam a ser esboçados: está há quinze anos se
preparando. O que desejam, o que os realizariam, o que os fazem
felizes são questões longe de serem postas – para ele porque já
respondidas desde fora, para ela porque sem resposta.
Uma cena curiosa – até por eu ter me identificado – é quando
Sophie decide cancelar a assinatura da internet, para não ficar só
assistindo a vídeos de suas competidoras e se sentir cada vez mais
fracassada: quando Jason chega do serviço, eles têm pouco tempo pra
usar a internet, cada um corre para seu computador aproveitar seus
últimos instantes na rede para... buscar informações inúteis,
mapas desnecessários, e mais algumas nulidades que não fariam falta
a uma vida – mas à nossa, faz (são essas inutilidades que fazem
falta à vida, ou nossa vida é uma falta que acaba sendo preenchida
com isso?).
Esse o panorama que o filme desenha. Contudo, como comenta o crítico
Heitor Augusto, na hora do vai ou racha, July cede, ao invés de
meter o dedo na ferida, contemporiza com seu público: o filme vira
uma questão de casal, tranqüila para conversas pop-cult-bacaninha
depois da sessão, sem causar nenhum desconforto de fato ao
espectador. Não deixa de ser um filme interessante – poderia ser
melhor.
São Paulo, 20 de março de 2013.
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