sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Moço, me salva.

Sem conseguir me concentrar nos estudos, aproveito o clima agradável e saio tomar a fresca da noite. Um passeio no meu habitual ritmo de marcha atlética por São Paulo, que, passado uma hora, dava a impressão que seria apenas isso: um passeio, sem nada mais a declarar. Augusta com gente, muitas pessoas falando em inglês, Roosevelt com skatistas e bares tocando samba. Na boca do lixo, uma travesti, do outro lado da rua, mexe comigo: lindo. No Largo do Arouche, páro no mercado para comprar algo pra comer e beber. Dou uma volta na praça – o que nunca havia feito até então. A parte central está ocupada por muita gente. Muitos casais, principalmente de homens, alguns de mulheres – na rápida olhada, não noto casais heteros. O posto da polícia é um polo repelente. Mas logo no outro lado da rua o bar está bem movimentado. Descubro, finalmente o tal restaurante francês em frente ao mercado das flores que Criolo canta – na frente do restaurante, uma Mercedes e outros dois carrões. Decido não contornar a praça e nisso me sinto consideravelmente deslocado. Tenho a impressão de que seguir reto darei no Minhocão, mas não vejo o monstrengo urbanístico. Sigo reto: de qualquer forma. em algum lugar darei. Acabo mesmo no Minhocão. Do lado de lá – Santa Cecília, se estiver correto nos meus precários conhecimentos da geografia paulistana –, tenho a impressão de um morador de rua amassar latinhas. Ao me aproximar, noto que os gestos estão agressivos demais: por segurança, atravesso a rua. Ele taca pedras contra alguma coisa. Joga com raiva a tal coisa no chão e a atira, depois, no bueiro. Passo prestando atenção se não sobra nada sendo atirado contra mim – não houve. Ele agora quebra outra coisa com igual raiva. Caminho por uma paralela da Amaral Gurgel, e sem muito no que reparar, volto para as quebradas da República. Estou caminhando há quase duas horas, as pernas começam a cansar, e resolvo fazer uma pausa na Praça da República. Sento em frente ao prédio principal da praça. Atrás de mim um casal de jovens (uns trinta anos) namora. Ao seu lado, um homem segura a cabeça entre as mãos – dá a impressão de que dorme. À minha direita, um casal de pessoas um pouco mais experientes também namora. À esquerda, um homem muito calmamente termina sua refeição. Tem junto de si uma garrafa – parece litrão de cerveja – e uma sacola plástica. Tem também um guarda-chuva grande. Findo seu sanduíche, pega da sacola um caderno com as páginas muito gastas e um lápis, passa a fazer anotações. Penso que se eu estivesse com minha caderneta e uma caneta, estaria a fazer o mesmo, esboçando esta crônica. Não estou, fico observado a movimentação na praça. Pessoas caminham em direção ao metrô. Da praça, escura e erma, saem dois garotos com três anos, no máximo. Um deles tem tênis com luzinhas, que piscam tanto na frente quanto atrás. O tênis me remete à minha infância – sexta série, doze anos, talvez – no meu tempo, as luzinhas do tênis eram só atrás. Lembrei uma vez que vi um colega correndo com um, no corredor de baixo do Colégio das Irmãs. Eu tinha um igual mas não tinha como ver como era ele piscando de longe – e só vira até então na propaganda. Pouco atrás das crianças, surgem duas mulheres, uma delas empurrando um carrinho de bebê. Ainda pouco íntimo da cidade, tenho receios de atravessar a praça pelo meio – e parece ser besteira da minha parte. Entre mim e o senhor do caderno gasto senta-se um homem, acende um cigarro. Pessoas passam. As crianças brincam. O tênis pisca. Eu penso esta crônica, com base no homem e seu caderno. Me levanto: hora de voltar pra casa. Passo por um grupo de três garotas – bem bonitinhas, diga-se de passagem. Uma delas, sentada no meio, me chama: moço, me salva. Eu olho, não sei se páro, se continuo, se finjo que não foi comigo. Me ajuda, moço, minhas amigas estão só me sacaneando aqui. Elas riem. Eu fico ali parado, meio sem jeito na minha timidez. Tento entender a abordagem, acompanhada do riso das amigas. Será que estão tirando sarro da minha cara? Penso, quase igual como pensaria quando mais jovem, com a idade das garotas, uns dezoito anos. A diferença é que agora me questiono e não afirmo. Liga, não moço, ela faz cênicas e é ótima atriz. Faço, não, sou uma completa leiga no assunto. Desculpa interromper a conversa de vocês, mas que prédio é esse? Uma morena (bonita também, por sinal) com um celular no ouvido interrompe nossa “conversa”. É parte da cena?, me pergunto. Sei lá. Parece uma igreja. É o prédio da República. Diz que é do lado da saída metrô, que fica ali, é facinho. Obrigada – e se retira. Conversamos um pouco – ou elas tagarelam, na verdade, para um cara parado na frente delas, sem graça e sem saber o que falar – até que que a moça do meio esticou a mão: ajuda moço. Ajudei a se levantar, caminhamos uns vinte passos, em que ela perguntou meu nome, eu o dela – Stephany (a grafia fica por minha conta) – e ela pediu desculpas pela interpelação – falou que trabalhava com venda de assinaturas de revistas, então tinha essa facilidade para falar com pessoas. Nos despedimos com um aperto de mão, ela voltou com as amigas, eu segui meu caminho, sem entender muita coisa, achando que poderia ser diferente – ou não. Na Augusta, os bares cheios, como convida a sexta-feira. Duas garotas de programa conversam encostadas em um carro, enquanto esperam a abordagem de algum possível cliente. Uma delas bebe todinho de caixinha. Em frente a um empreendimento imobiliário estacas de madeira preservam a grama e reservam espaço mínimo para pedestres. Mas Las Jegas, só pelo nome. Imagino do que trata a conversa do grupo de rapazes que passa por mim – e concordo, Las Jegas é nome que dá todas as interpretações dúbias possíveis a um inferninho. Na esquina com a rua Fernando Costa, descubro que estou com os reflexos bons, ao me desviar de um cruzado desferido por um rapaz, que explicava ao seu amigo que fica para lá – o que eu não sei, mas era na direção do meu queixo. Ainda mais pessoas falando em inglês. Encontro dois amigos. A amiga me cumprimenta passando a mão em meu cabelo: só te conhecia cabeludo, todas tuas fotos são com cabelo, você fica estranho assim. Penso em minha mãe: deve ter se sentido vingada das vezes que fiz esse tipo de agrado nela. Um deles está procurando casa – e isso pode significar que eu procure novo morador para minha república em breve. Um morador de rua muito bêbado me aconselha: ó!, ó!, juízo! Nem precisava, tem horas que acho que juízo tenho demais. Em casa, mais relaxado após a caminhada (quase três horas), me vejo restabelecido para estudar. Opto por escrever esta crônica.

São Paulo, 18 de janeiro de 2013.

sábado, 29 de dezembro de 2012

Planos de ano novo (versão softcore)

Apesar de dizer que não dou bola pra essas coisas, não resisto: vai chegando a virada do calendário e eu começo a esboçar sonhos, a fazer planos, estabelecer metas para o ano vindouro. Poderia ser influência dos métodos científicos de governança pessoal, porém creio que seja mesmo resquício de infância – ainda que quando pecorrucho eu me contentasse com planos do tipo “o ano que vem vai ser mais legal”, “fazer mais coisas que este ano”, no máximo, “jogar mais videogame” ou “bater tal jogo”. A vida era mais simples, também – eu ainda não tinha tido Kant.

O pior dos planos de ano novo é que estão sempre fadados ao fracasso, eu sei. O que não sei é por que insisto. 

Houve uma vez que decidi ser pragmático, ao menos aparentemente: estabeleci que minha meta de ano novo seria arrumar a casa e jogar fora tudo o que não me servisse mais. Havia até esse evidente efeito renovador. Linda idéia! A parte de arrumar a casa foi fácil. Difícil foi estabelecer o que não me servia mais – vai que pudesse me servir no futuro, como saber? Essa resolução de ano novo, tão singela, que deveria me trazer a satisfação de ter concretizado todas minhas metas, acabou sendo outra frustração. Para piorar, das poucas coisas que joguei fora, uma delas – um tubo de cartão no qual veio um calendário e que nunca tinha utilizado – me fez, deveras, falta no correr do ano.

Nos últimos tempos meus planos têm sido um pouco mais quantitativos. Chamo-os de metas Lula. Eles dão a impressão de que é só você querer que assim será. Falharam, e não porque eu não quis, eu sei, mas ao menos sabe-se por que falhou – por quanto falhou, na verdade. Teve ano que minha resolução foi engordar dez quilos. Musculação, suplemento, refeições reforçadas. Depois de três meses e tinha ganho míseros dois quilos. É um começo, e assim que deslanchar, chego aos dez quilos pretendidos, me consolava, enquanto a balança não se mexia. Uma gripe em maio me fez perder quatro. Passei o resto do ano penando para conseguir recuperar apenas um dos quilos perdidos.

Em dois mil e doze tinha estabelecido escrever todos os dias – pouco importa o que –, ler mais do que em dois mil e onze e comprar tantos livros quanto no ano anterior. A meta de escrever todos os dias, não sei bem, mas devo ter furado em dez dias, no máximo. Me consolei que uma falha ou outra acontecia. E mais outra e mais outra e mais outra, de forma que antes do fim de janeiro já tinha desistido desse plano mirabolante. Ler mais, eu até teria lido, não existisse a internet e o facebook – não culpo a Augusta ou qualquer oriental por isso. Também poderia ter apelado para o expediente de livros fininhos e com gravuras, porém achei que seria deslealdade. Já comprar tantos livros quanto no ano anterior eu consegui cumprir. Além de gastar dinheiro, pra que isso me serviu, eu não sei. Mas cumpri!

Para dois mil e treze, fiz várias cogitações. Ora pensava em ser o mais pragmático possível, ora pensava em arriscar metas impossíveis. Um dos meus planos foi parar de fumar. Chegaria dia primeiro para os meus pais (com quem passarei a virada), pouco depois da hora derradeira, e anunciaria: a partir de hoje não ponho um cigarro na boca! (Nem em outro lugar, caso algum leitor engraçadinho resolva fazer qualquer piadinha cretina). Pronto, era passar o novo ano como passei os últimos trinta, e teria cumprido meu plano. Confesso: teria cumprido a resolução, mas ela em si me soou um tanto frustrante – não sei, faltou um pouco de desafio.

Na linha dos que eu não conseguiria cumprir, pensei em me tornar um Don Juan. Para quem transou oito vezes na vida – aí já incluída a da semana passada –, seria um choque de gestão. Uma das coisas que mais me animou nesse plano é que poderia, quem sabe, surgir a inspiração para um novo romance: a história de um Don Juan ciumento que, em meio a sua seqüência de mulheres, encontra sua cara metade – uma “Dona Juana” ciumenta –, e passa a ter crises agudas de ciúmes, até porque nota que sua parceira é mais eficiente que ele na arte da conquista. Não surgisse esse romance e eu seguisse apenas com as crônicas, ainda assim teria sempre algo sobre o que escrever – mulheres –, e ao invés de passar um ano escrevendo sobre Ruth, a balconista da farmácia, todo mês, poderia escrever sobre uma mulher por semana. Seriam cinquenta e duas crônicas, quem sabe não daria um best-seller, Cinquenta e dois tons de mulheres? Desisti desse plano estapafúrdio: não, não daria um romance, nem crônicas, nem best-seller.

Insisti, contudo, nessa coisa da escrita, e pedi ajuda a um amigo, crupiê de jogos literários. Também me pus como meta, auxiliado pela PUC, que este ano termino, finalmente!, o mestrado – até porque serei jubilado se não o fizer. E decidi que aprenderia a tocar duas músicas novas por mês – independente da dificuldade. Com o peso, resolvi não mexer, deixarei que ele oscile por sua conta, enquanto eu oscilo na insustentável leveza do ser.

E meus planos de ano novo começavam mal, antes mesmo de começar o novo ano. Deixei para o último dia e não consegui montar minha série na Osesp – não achei essa opção no site, e acabei não fazendo a assinatura.

No fim, ao contemplar minha bela obra de engenharia pessoal, senti um certo aperto: cumprir todas minhas metas não me fará uma pessoa melhor (só em titulação), nem mais feliz. Não cumprir, em compensação... Mas, como sou uma pessoa metódica (dizem), não abro mão de ter meu futuro planejado. Aceito contribuições.


Pato Branco, 29 de dezembro de 2012.