Sem conseguir me concentrar nos estudos, aproveito o clima agradável
e saio tomar a fresca da noite. Um passeio no meu habitual ritmo de
marcha atlética por São Paulo, que, passado uma hora, dava a
impressão que seria apenas isso: um passeio, sem nada mais a
declarar. Augusta com gente, muitas pessoas falando em inglês,
Roosevelt com skatistas e bares tocando samba. Na boca do lixo, uma
travesti, do outro lado da rua, mexe comigo: lindo. No Largo do
Arouche, páro no mercado para comprar algo pra comer e beber. Dou
uma volta na praça – o que nunca havia feito até então. A parte
central está ocupada por muita gente. Muitos casais, principalmente
de homens, alguns de mulheres – na rápida olhada, não noto casais
heteros. O posto da polícia é um polo repelente. Mas logo no outro
lado da rua o bar está bem movimentado. Descubro, finalmente o tal
restaurante francês em frente ao mercado das flores que Criolo canta
– na frente do restaurante, uma Mercedes e outros dois carrões.
Decido não contornar a praça e nisso me sinto consideravelmente
deslocado. Tenho a impressão de que seguir reto darei no Minhocão,
mas não vejo o monstrengo urbanístico. Sigo reto: de qualquer
forma. em algum lugar darei. Acabo mesmo no Minhocão. Do lado de lá
– Santa Cecília, se estiver correto nos meus precários
conhecimentos da geografia paulistana –, tenho a impressão de um
morador de rua amassar latinhas. Ao me aproximar, noto que os gestos
estão agressivos demais: por segurança, atravesso a rua. Ele taca
pedras contra alguma coisa. Joga com raiva a tal coisa no chão e a
atira, depois, no bueiro. Passo prestando atenção se não sobra
nada sendo atirado contra mim – não houve. Ele agora quebra outra
coisa com igual raiva. Caminho por uma paralela da Amaral Gurgel, e
sem muito no que reparar, volto para as quebradas da República.
Estou caminhando há quase duas horas, as pernas começam a cansar, e
resolvo fazer uma pausa na Praça da República. Sento em frente ao
prédio principal da praça. Atrás de mim um casal de jovens (uns
trinta anos) namora. Ao seu lado, um homem segura a cabeça entre as
mãos – dá a impressão de que dorme. À minha direita, um casal
de pessoas um pouco mais experientes também namora. À esquerda, um
homem muito calmamente termina sua refeição. Tem junto de si uma
garrafa – parece litrão de cerveja – e uma sacola plástica. Tem
também um guarda-chuva grande. Findo seu sanduíche, pega da sacola
um caderno com as páginas muito gastas e um lápis, passa a fazer
anotações. Penso que se eu estivesse com minha caderneta e uma
caneta, estaria a fazer o mesmo, esboçando esta crônica. Não
estou, fico observado a movimentação na praça. Pessoas caminham em
direção ao metrô. Da praça, escura e erma, saem dois garotos com
três anos, no máximo. Um deles tem tênis com luzinhas, que piscam
tanto na frente quanto atrás. O tênis me remete à minha infância
– sexta série, doze anos, talvez – no meu tempo, as luzinhas do
tênis eram só atrás. Lembrei uma vez que vi um colega correndo com
um, no corredor de baixo do Colégio das Irmãs. Eu tinha um igual
mas não tinha como ver como era ele piscando de longe – e só vira
até então na propaganda. Pouco atrás das crianças, surgem duas
mulheres, uma delas empurrando um carrinho de bebê. Ainda pouco
íntimo da cidade, tenho receios de atravessar a praça pelo meio –
e parece ser besteira da minha parte. Entre mim e o senhor do caderno
gasto senta-se um homem, acende um cigarro. Pessoas passam. As
crianças brincam. O tênis pisca. Eu penso esta crônica, com base
no homem e seu caderno. Me levanto: hora de voltar pra casa. Passo
por um grupo de três garotas – bem bonitinhas, diga-se de
passagem. Uma delas, sentada no meio, me chama: moço, me salva. Eu
olho, não sei se páro, se continuo, se finjo que não foi comigo.
Me ajuda, moço, minhas amigas estão só me sacaneando aqui. Elas
riem. Eu fico ali parado, meio sem jeito na minha timidez. Tento
entender a abordagem, acompanhada do riso das amigas. Será que estão
tirando sarro da minha cara? Penso, quase igual como pensaria quando
mais jovem, com a idade das garotas, uns dezoito anos. A diferença é
que agora me questiono e não afirmo. Liga, não moço, ela faz
cênicas e é ótima atriz. Faço, não, sou uma completa leiga no
assunto. Desculpa interromper a conversa de vocês, mas que prédio é
esse? Uma morena (bonita também, por sinal) com um celular no ouvido
interrompe nossa “conversa”. É parte da cena?, me pergunto. Sei
lá. Parece uma igreja. É o prédio da República. Diz que é do
lado da saída metrô, que fica ali, é facinho. Obrigada – e se
retira. Conversamos um pouco – ou elas tagarelam, na verdade, para
um cara parado na frente delas, sem graça e sem saber o que falar –
até que que a moça do meio esticou a mão: ajuda moço. Ajudei a se
levantar, caminhamos uns vinte passos, em que ela perguntou meu nome,
eu o dela – Stephany (a grafia fica por minha conta) – e ela
pediu desculpas pela interpelação – falou que trabalhava com
venda de assinaturas de revistas, então tinha essa facilidade para
falar com pessoas. Nos despedimos com um aperto de mão, ela voltou
com as amigas, eu segui meu caminho, sem entender muita coisa, achando que poderia ser diferente – ou não. Na
Augusta, os bares cheios, como convida a sexta-feira. Duas garotas de
programa conversam encostadas em um carro, enquanto esperam a
abordagem de algum possível cliente. Uma delas bebe todinho de
caixinha. Em frente a um empreendimento imobiliário estacas de
madeira preservam a grama e reservam espaço mínimo para pedestres.
Mas Las Jegas, só pelo nome. Imagino do que trata a conversa do
grupo de rapazes que passa por mim – e concordo, Las Jegas é nome
que dá todas as interpretações dúbias possíveis a um inferninho.
Na esquina com a rua Fernando Costa, descubro que estou com os
reflexos bons, ao me desviar de um cruzado desferido por um rapaz,
que explicava ao seu amigo que fica para lá – o que eu não sei,
mas era na direção do meu queixo. Ainda mais pessoas falando em
inglês. Encontro dois amigos. A amiga me
cumprimenta passando a mão em meu cabelo: só te conhecia cabeludo,
todas tuas fotos são com cabelo, você fica estranho assim. Penso em
minha mãe: deve ter se sentido vingada das vezes que fiz esse tipo
de agrado nela. Um deles está procurando casa – e isso pode
significar que eu procure novo morador para minha república em
breve. Um morador de rua muito bêbado me aconselha: ó!, ó!, juízo! Nem precisava, tem horas que acho que juízo tenho demais. Em casa, mais relaxado após a caminhada (quase três horas),
me vejo restabelecido para estudar. Opto por escrever esta
crônica.
São Paulo, 18 de janeiro de 2013.
Sem comentários:
Enviar um comentário