sábado, 18 de janeiro de 2020

Democracia em vertigem, país em pedaços [Diálogos com o cinema]

Democracia em Vertigem, de Petra Costa, é um filme-bolha: quem é antipetista, não importa o matiz, não vai chegar perto de assistir ao filme; quem é do campo democrático, petista ou não, bem possível que se anime em vê-lo e não vai ter absolutamente nenhuma novidade, nenhum acréscimo ao que já sabe; já quem é daquela zona cinzenta dos “apolíticos”, dos analfabetos políticos que não aderiram por comodismo ao fascismo, poucos vão encontrar ali algo que mobilize a assisti-lo... salvo a indicação do Oscar para melhor documentário - a reação do governo federal e do PSDB à indicação são um reforço a esse público para assisti-lo, visto que “se incomodou, é porque algo tem”.
Petra Costa, se souber aproveitar da indicação e do apoio (involuntário) dos golpistas, se habilita como figura de proa do cinema engajado nacional - mesmo que não leve a estatueta. Tem tudo para assumir o papel de “Michael Moore do Brasil”, ou seja, uma cineasta engajada à esquerda, afinada com um partido, com um ponto de vista bem marcado, e que faz filmes para atingir também um público que pode se sensibilizar com o que é apresentado - além, claro, das pessoas da bolha.
E tal como Michael Moore, Democracia em Vertigem, apesar de engajado, de ter lado, é um filme superficial, fraco, pouco político: fica antes numa chave emotiva-moralista e apresenta todo o teatro político como algo distante e em boa medida alheio ao povo: as manifestações de rua entram mais como se fossem torcidas de futebol - que em algum passado poderia ter sido o documentário a representar o Brasil -, salvo, talvez, quando fala de 2013. Até para a história que se propõe contar o filme é superficial: a falta de ênfase na trajetória de Eduardo Cunha e Sérgio Moro, por exemplo, não permite que amarre a contento esses dois personagens na história do golpe - deixar passar, no depoimento de Lula, quando Moro tenta a pegadinha de “achamos estas escrituras sem assinatura no seu apartamento”, me pareceu infeliz.
Lula, por seu turno, sai engrandecido do filme - como do golpe, como de toda a história. Os trechos de seus discursos ressalta um orador dos maiores da história; os momentos falando para a cinegrafista, sua defesa da democracia, reiteram o papel de grande líder mundial, ainda mais neste momento de ascensão da extrema direita em todo o globo e da relativização da democracia e do Estado de Direito.
Democracia em Vertigem tem também uma falha no nome - ou seria uma esperança? O que vemos ali - e fora dali também - é uma democracia em pedaços, destroçada, sem chances de voltar ao que era - e sem que consigamos encaminhar uma ação para que democracia queremos construir. Ponto positivo, que o filme antes apresenta os diversos caminhos que acabaram por nos conduzir à encruzilhada na qual estamos, deixando ao espectador juntar da forma que mais lhe faz sentido, e sem apresentar solução, apenas anunciando o problema.
Trata-se de um réquiem do pacto democrático que se extinguiu em 2015. Graças ao Oscar, o filme sai da bolha, deixa de beirar o irrelevante e, mesmo com todos seus defeitos, se torna um saudável sopro de crítica para os nacionais - para os tempos atuais, precários, necessário. Para consumo externo, um filme que desnuda de maneira simples o ponto aonde estamos e indica que o que aconteceu na maior economia e maior democracia da América Latina não é um evento normal, e há algo além, que merece atenção. Não por acaso incomodou Bolsonaro e os tucanos: vão ganhar o mundo como vilões, incapazes de uma justificativa plausível. Ao ganhar visibilidade, pode ajudar a abrir estradas para o país que buscaremos construir quando todo esse pesado for expurgado.

18 de janeiro de 2020

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Cenário para livros

Desconfio que para projetos audiovisuais - filmes, novelas, comerciais - haja locais de locação consagrados: na dúvida de onde ir, aquele espaço de sempre dá conta com mínimos arranjos. Minha cabeça também tem seu lugar de locação clichê: Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, de Maya Angelou, é mais um livro que me vejo ambientando na casa do Rose e da Nana, pequenos agricultores amigos de meus pais, em Bom Sucesso do Sul. 
É a história se passar em algum lugar mais rural, com alguma presença comunitária mais forte (dizer "com algo urbano" talvez seja exagero), e lá está a casa deles sendo morada dos protagonistas, ao mesmo tempo isolada como é e, num passe de mágica, no meio de um vilarejo, como o livro exige. 
Quando criança gostava de ir lá por causa dos animais: ver os porcos, as vacas e, principalmente, correr atrás das galinhas. Era uma época de dias muito longos, na minha temporalidade infantil, e eu passava quase a tarde inteira - que devia durar o equivalente a umas doze, quinze horas, na minha temporalidade atual - correndo atrás das galinhas, soltas pelas redondezas da casa antiga (curiosamente, nas histórias dos livros é a casa nova que serve como espaço cênico). Elas fugiam por medo daquela criança da cidade chata, e eu, por meu turno, nunca punha as mãos nelas, porque também tinha medo - vai que me bicassem, como o papagaio da minha avó. Uma vez, de leve, encostei em uma, pega e imobilizada pelo Rodrigo, um dos filhos da Nana e do Rose. Já adolescente, adulto jovem, eu gostava de ir lá para ficar na varanda, comendo frutas recém colhidas, tomando chimarrão, olhando o céu desimpedido de construções, e ouvindo causos que a família toda era boa de contar. 
Nas minhas ambientações de livros, o porão da casa faz as vezes do elemento diferente: no livro de Maya, é o Mercado de Momma; em A Caverna, de Saramago, a olaria de Cipriano Algor. Já temi por um cavalo que forçava a porta, em um conto de Borges. Também imaginei ao menos dois Mia Couto ali, mas não precisei do porão: no último que li, Antes do Nascer do Mundo, a casa antiga transformada em paiol se tornou a casa onde surge Marta para os habitantes da Jerusalém perdida nos confins de Moçambique; já em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, a casa principal era de Mariano, enquanto a casa de seu Lauro fez a vez da de Fulano Malta, com suas gaiolas vazias à espera de pássaros que lhe fizessem companhia.
Fora da literatura, de volta ao mundo real, era na casa deles que meu pai queria comer um churrasco, tão logo saísse do hospital - quando ainda tínhamos, ele e eu, pelo menos, esperança de cura, uma semana antes de seu falecimento. A escolha (inconsciente) de imaginar as histórias lidas lá ajuda a entender o porquê do desejo de meu pai: sem cair em extremismos de paraíso na terra (vegano, religioso ou romântico, até porque toda a região foi terrivelmente devastada no seu bioma natural), havia ali qualquer frágil harmonia sob o ritmo da natureza que então ainda se impunha (tinha eletricidade, mas até fins do século passado não havia sinal de televisão), nas galinhas e vacas soltas, não feito totens para ambientalistas urbanos, mas no ciclo de vida que integra humanidade e animais, no guardar sementes para a próxima lavoura, tudo isso costurado nas conversas, nos causos, marcados pelo pitoresco, não pelo moralismo. Cenário excelente para ambientações de livros passados em outro tempo, quando este era mais humano e acolhedor, menos fabril e febril.

31 dezembro de 2019