Desconfio que para projetos audiovisuais - filmes, novelas, comerciais - haja locais de locação consagrados: na dúvida de onde ir, aquele espaço de sempre dá conta com mínimos arranjos. Minha cabeça também tem seu lugar de locação clichê: Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, de Maya Angelou, é mais um livro que me vejo ambientando na casa do Rose e da Nana, pequenos agricultores amigos de meus pais, em Bom Sucesso do Sul.
É a história se passar em algum lugar mais rural, com alguma presença comunitária mais forte (dizer "com algo urbano" talvez seja exagero), e lá está a casa deles sendo morada dos protagonistas, ao mesmo tempo isolada como é e, num passe de mágica, no meio de um vilarejo, como o livro exige.
Quando criança gostava de ir lá por causa dos animais: ver os porcos, as vacas e, principalmente, correr atrás das galinhas. Era uma época de dias muito longos, na minha temporalidade infantil, e eu passava quase a tarde inteira - que devia durar o equivalente a umas doze, quinze horas, na minha temporalidade atual - correndo atrás das galinhas, soltas pelas redondezas da casa antiga (curiosamente, nas histórias dos livros é a casa nova que serve como espaço cênico). Elas fugiam por medo daquela criança da cidade chata, e eu, por meu turno, nunca punha as mãos nelas, porque também tinha medo - vai que me bicassem, como o papagaio da minha avó. Uma vez, de leve, encostei em uma, pega e imobilizada pelo Rodrigo, um dos filhos da Nana e do Rose. Já adolescente, adulto jovem, eu gostava de ir lá para ficar na varanda, comendo frutas recém colhidas, tomando chimarrão, olhando o céu desimpedido de construções, e ouvindo causos que a família toda era boa de contar.
Nas minhas ambientações de livros, o porão da casa faz as vezes do elemento diferente: no livro de Maya, é o Mercado de Momma; em A Caverna, de Saramago, a olaria de Cipriano Algor. Já temi por um cavalo que forçava a porta, em um conto de Borges. Também imaginei ao menos dois Mia Couto ali, mas não precisei do porão: no último que li, Antes do Nascer do Mundo, a casa antiga transformada em paiol se tornou a casa onde surge Marta para os habitantes da Jerusalém perdida nos confins de Moçambique; já em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, a casa principal era de Mariano, enquanto a casa de seu Lauro fez a vez da de Fulano Malta, com suas gaiolas vazias à espera de pássaros que lhe fizessem companhia.
Fora da literatura, de volta ao mundo real, era na casa deles que meu pai queria comer um churrasco, tão logo saísse do hospital - quando ainda tínhamos, ele e eu, pelo menos, esperança de cura, uma semana antes de seu falecimento. A escolha (inconsciente) de imaginar as histórias lidas lá ajuda a entender o porquê do desejo de meu pai: sem cair em extremismos de paraíso na terra (vegano, religioso ou romântico, até porque toda a região foi terrivelmente devastada no seu bioma natural), havia ali qualquer frágil harmonia sob o ritmo da natureza que então ainda se impunha (tinha eletricidade, mas até fins do século passado não havia sinal de televisão), nas galinhas e vacas soltas, não feito totens para ambientalistas urbanos, mas no ciclo de vida que integra humanidade e animais, no guardar sementes para a próxima lavoura, tudo isso costurado nas conversas, nos causos, marcados pelo pitoresco, não pelo moralismo. Cenário excelente para ambientações de livros passados em outro tempo, quando este era mais humano e acolhedor, menos fabril e febril.
31 dezembro de 2019
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