terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Bruno Covas e seu filho no Maracanã: a mensagem da imagem

"À mulher de César não basta ser honesta, é preciso parecer honesta". A importância da aparência na cultura ocidental vem de longa data - do imperador romano Julio Cesar, ao menos -, mas sob a sociedade do espetáculo essa velha máxima foi superada pela de que "à mulher de César não é preciso ser honesta, basta parecer honesta". Em muitos casos, nem parecer, apenas aparecer como honesto no momento oportuno - Temer, Doria Jr, Bolsonaro que o digam, despontaram como se porto de Santos, rachadinhas e Embratur nunca tivessem existido.

Não entrei na comunhão nacional gerada pelo início da vacinação nestes Tristes Trópicos, em 17 de janeiro: sabendo dos entraves gerais e das inoperâncias nacionais, não vislumbro ser vacinado antes de dezembro e ainda temo receber uma vacina que já pouco protege, por conta das mutações do vírus (ainda que isso, por enquanto, não tenha sido posto no horizonte pelos cientistas, até onde me consta). Minha mãe, prioritária, quem sabe consiga ser vacinada meio logo e possa vir me visitar ainda este ano, depois de mais de um ano nos vendo apenas por videochamada. 

Entendo o sopro de alento que o início da vacinação trouxe a muitos, mas não deixou de me causar assombro como esse sopro veio desprovido de qualquer construção crítica mais bem fundamentada. “Doria Jr fez um golaço”, comentavam, como se aparecer ao lado da primeira pessoa vacinada redimisse o governador de todos seus atos contra a saúde pública, a pesquisa científica, a universidade pública - isso já em plena pandemia, já quando ele se dizia defensor da ciência - e a produção de remédios - e não falo aqui de troca, quando prefeito, de isenções fiscais por "doação" remédios quase vencidos cuja boa parte seria incinerado a um custo elevado, mas do sucateamento da Furp e do Instituto Butantã. Vale lembrar que este só não virou peça histórica graças à combinação pandemia e negacionismo da ciência por Bolsonaro, no qual Doria Jr viu oportunidade de se apresentar como a extrema-direita racional (Adorno e Horkheimer mostram como o nazismo era racional) e “razoável” (se privatizar e tirar direitos de trabalhadores, as elites brasileiras acham qualquer coisa razoável). Todo seu histórico de destruição virou fumaça diante da vacina: Doria Jr, “o político da ciência e da sensatez”. Só não se tornou também “o homem da tolerância política” porque Dilma Rousseff fez algum alarde ao avisar que não aceitava seu convite para furar a fila - e com esse ato, Dilma reforça a frase do primeiro parágrafo, ao lembrar que ela e Lula, dois dos políticos mais probos da história do país, são taxados como os maiores corruptos, simplesmente porque não conseguiram vencer a máquina midiática e aparecer como honestos: quem controla a produção de imagens e narrativas detém incomparável poder, incompatível com a democracia, mesmo a espetacular.

Assim como Doria Jr, Bruno Covas não precisa temer a mídia. Como seu padrinho político, o prefeito parece esquecer que a mulher de César no século XXI não precisa ser honesta, basta parecer honesta; contudo, à diferença dele, não possui qualquer jogo de cintura, quem dirá a lábia canastrona de vendedor de enciclopédia no interior e a desfaçatez do gigolô que se diz arrependido e promete fidelidade.

Junto com Doria Jr, Covas repetiu o mantra do "fique em casa". Como Doria Jr, assim que pode, saiu passear: mas ao invés de ir pra Miami (onde poderia achar qualquer álibi inconsistente: que foi em jatinho particular com a esposa para ficarem enfurnados e isolados na sua casa florida, sei lá, pra não ter o risco de alguma garota constrangê-los cobrando uma conta antiga), o prefeito foi assistir ao jogo da final da Libertadores no Maracanã, com mais alguns convidados VIPs - ele, que estava em tratamento contra o câncer até quinze dias antes, ou seja grupo de extrema vulnerabilidade, que mais deveria se resguardar.

A final da Libertadores ter público em plena pandemia já é uma afronta, um reescancarar daquilo que as “modernas arenas” que substituíram os estádios já escancaram há anos: futebol é cada vez mais um espetáculo para poucos usufruírem ao vivo - só para os VIPs. Neste caso, só para os VIPs dos VIPs. Para um político que tem tentando trabalhar uma imagem pública de progressista desde que assumiu a Disney, digo, a prefeitura de São Paulo, um deslize desses é grave - até porque não foi só uma notícia de jornal, mas uma foto que rodou a internet, e na sociedade imagética, uma imagem pode ser avassaladora (Roseana Sarney sabe bem). A explicação para seu ato, dado em seu Instagram, só piora a situação. A questão pode ser abordada pelo aspecto político e sociológico.

Politicamente é um movimento que causa estranhamento. Bruno Covas trabalhava com afinco sua imagem de um “velho PSDB”, um PSDB de direita democrática e progressista, retomando projetos êxitosos da gestão Haddad; esse passeio com o filho, junto com as ações que tem tomado desde que ganhou a reeleição, vão na contramão de todo esse trabalho. Ao que tudo indica, a eleição serviu para que Covas e o partido notassem que ele é um quadro eleitoralmente frágil, quase inviável: se largar a prefeitura para disputar o estado, perde votos dos paulistanos sem conseguir compensar no interior (como foi o caso de Serra e Doria Jr). Daí a impressão de ter entregue a prefeitura toda para o grupo de Doria Jr (representado pelo vice Ricardo Nunes?) desde já, talvez com o plano de tentar imitar seu padrinho e ver se consegue superar as próprias fraquezas; assim, todos os movimentos de respeito aos direitos humanos - que, por mais que tímidos, marcaram uma diferença significativa frente a gestão desumana de Doria Jr - terem sido jogados fora: do cercamento de praças (o caso noticiado é da praça no bairro nobre, mas na 25 de Março, por exemplo, a Ragueb Chohfi já foi cercada há tempos) às pedras antimendigos, passando pela intensificação no confisco dos pertences dos moradores de rua (só esperando pelas operações da GCM na (mal) dita cracolândia). Se for esse o caso, entende-se o mandar às favas a construção da sua imagem pública e ir curtir a final da Libertadores com o filho.

Aqui entra o ponto sociológico de minha análise: ao ser pego no Maracanã, a resposta de Covas explicita sua adequação à sociabilidade perversa brasileira, recentemente assumida como virtude por políticos como Bolsonaro, Moro ou Doria Jr: o privilégio do verdadeiro líder de estar acima do bem e do mal - e das leis. Ser aspirante a um mini-Luís-XIV-versão-século-XXI seria a demonstração cabal do seu valor, como era outrora o despotismo do senhor de engenho perante suas posses - terras, mulheres, escravos, estado. O problema de Covas é que ainda que formado nessa sociabilidade, ele não é um perverso: ele não consegue jogar flores no chão, falar "e daí, não sou coveiro", grasnar qualquer atrocidade; por isso seu passo atrás, seu tentar se justificar com sua excepcionalidade: mereceria estar no Maracanã em meio a uma pandemia, 230 mil mortos, crise na saúde, na economia, no estado, porque "é um direito" seu "usufruir de um pequeno prazer da vida" depois de passar pelo tratamento de um câncer - contrariamente ao que sempre diz aos seus comandados. Só ele quer desfrutar de um pequeno prazer da vida? Só ele ficou doente durante a pandemia? Filhos com saudades de seus pais idosos que moram longe, se tem responsabilidade (e um emprego), não tem esse direito. Pais e mães cujos filhos estão entre os que tiveram a vida levada pelo coronavírus - só no estado de São Paulo os mortos já lotam o Itaquerão e começam a encher um segundo estádio -, não podem mais ter esse pequeno prazer. Mas hipócrita é quem segue as recomendações que o governador do estado e o prefeito da cidade repetem.

Pelo posto que ocupa, Bruno Covas deveria ser o primeiro a dar o exemplo. E ele dá: se o exemplo é positivo ou negativo, é outra história. Prefeitos acusados de furar fila da vacina podem, inclusive, usar essa questão com o álibi: estão dando o exemplo da importância da vacina, já que o chefe do executivo nacional faz campanha contrária (isso não vale para parentes, mulheres e amigos do prefeito que furam a fila, aí o exemplo volta a ser de apropriação privada do público). Ao dizer que seu caso é especial e merece ser excluído das restrições que todos deveriam estar submetidos, simplesmente “porquessim”, qualquer um pode alegar o mesmo - como já é feito, mas agora há uma legitimidade a mais: o prefeito da maior cidade do país, que repete diariamente “fique em casa” e “cuide-se” também assume que qualquer motivo serve para não ficar em casa nem se cuidar devidamente. "Pequenos prazeres" justificariam a negligência com o vírus - nem precisa ser "grandes prazeres".

Uma atitude dessas de um político, de um homem público, é um deslegitimar a política e recusar a coletividade em nome de um hedonismo mesquinho. É um passo a mais no nosso caminhar para o abismo da convivência social, onde tem voz uma ideologia darwinista-social-ultra-individualista que apregoa a sociedade como feita de mônadas e recusa a óbvia interdependência de todos na construção do bem comum (do mal comum também); é um reforço ao que temos de pior da nossa sociabilidade forjada na escravatura e no estupro, um individualismo tacanho e incapaz de enxergar o próprio bem no dia de amanhã. Bruno Covas tem a consciência tranquila.

09 de fevereiro de 2021

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Sobre partidas em tempos necrófilos

Para César Bento.
"A morte é um risco para quem está vivo". Por anos essa foi uma frase repetida em minha família. Por seis anos, para ser mais preciso: de setembro de 2009 a novembro de 2015, tempo em que meu pai (e, por tabela, eu, e minha mãe e meu irmão) conviveu com um câncer (e erros médicos). Era uma forma de desanuviar o ambiente sem negar a realidade. Foram seis anos com a morte fazendo voos rasantes, em que por mais que meu pai tivesse incluído a doença na sua vida e seguido a viver normalmente (a quimioterapia passou a ser parte da rotina), eu ia dormir e acordava sempre com o receio de uma notícia fatídica, que se não fosse o fim repentino, fosse seu prenúncio para breve, sem chances de reverter. O estresse em viver sob esse medo permanente é grande e desgastante.

Logo vai fazer um ano que vivemos coletivamente sob esse mesmo voo rasante da morte, potencializado pela nossa sociedade (e sociabilidade) necrosada e nossos necropolíticos, necroempresários, necromídia, necrojuízes. Bolsonaro repete a frase inicial deste texto com sentido oposto, de negar a realidade e fugir de suas responsabilidades. Os que têm os pés no chão vivemos em um medo permanente: vai de amigos, conhecidos e desconhecidos, até minha mãe, pertencente ao grupo de risco, passando por mim próprio, que sigo vivo e tendo que sair de casa todo dia para trabalhar (hoje soube de outra colega infectada, fica o medo e o desejo de uma recuperação plena). 2020 foi o primeiro ano em 21, ou seja, desde que saí da casa dos meus pais, em que não tive notícia de nenhum suicídio de alguém próximo ou companheiro/amigo de alguém próximo - não sei se isso tem algum lado positivo: foram tantas mortes que pode ser que uma delas tenha sido um suicídio disfarçado.

Curiosamente, para o covid não perdi ninguém próximo. Mas todo esse clima parece fazer as mortes mais pesadas, mais supérfluas - no sentido de que não precisavam acontecer agora. E a impossibilidade de velar torna tudo mais irreal e mais dolorido, difícil de acreditar. Em setembro, faleceu minha avó - de idosa, mesmo. Senti que ali se rompia o último elo com minha família, meus antepassados - faço questão de não ter contato com meus familiares, salvo duas exceções -, e lamentei que fazia quase dois anos que não a via - nem nunca mais a verei.

Hoje acordei com a notícia da perda do César, um grande amigo, que desde maio estava às voltas com uma meningite bacteriana. Há quatro dias fiz os votos habituais de feliz aniversário, enfatizando que tivesse antes de tudo saúde. Ainda que soubesse que estava enfermo, nunca quis acreditar que fosse algo tão grave - e ele também foi sempre discreto quanto aos detalhes do seu estado de saúde -, daí sua partida precoce ter me pego de surpresa - e qual partida não é precoce para quem fica? 

César sempre com mil histórias e uma ótima verve para contá-las (desde sempre eu insistia que ele devia escrever essas histórias e lançar um livro, já tinha até pré negociado uma editora), que iam de encontros chatos com gente famosa a rolês exóticos com pessoas que seriam famosas no futuro, causos da cena underground paulistana dos anos 1990, com pequenas infrações legais e muitas loucuras; um cara quadrado de segunda a sexta que desbundava com louvor nos finais de semana; um dos amigos que eu sempre ia pedir opinião sobre arquitetura e decoração e referências sobre São Paulo (ficou me devendo de mostrar uma pretensa plataforma abandonada na 23 de maio); que ganhou o apelido de "Bicha má da pirogada" porque nos encontros em minha casa sempre trazia uma caixa de chocolate com açúcar (sendo que eu não posso comer açúcar) e sabia polemizar como poucos (ousasse alguém criticar o excesso vegano e ele contava como ele fazia para matar um coelho, justificando que a carne ficava melhor assim que quando comprada já do bicho morto, inclusive contando do drama do Guilherme, seu companheiro de anos, quando via ele chegando com os animais); era também um talentoso cenógrafo e iluminador cênico - eu não só gostava muito dele, como o admirava. Como minha avó, fazia quase dois anos que não o via - a última vez ele fora comigo para ver um apartamento, ficou devendo conhecer minha nova casa, e dói saber que não conhecerá. Há todo um sem sentido que essa perda fez brotar em mim nesta segunda-feira.

Em setembro de 2015, pouco antes de meu pai ser internado para a cirurgia que abreviaria sua vida, tivemos que cortar o pinheiro de estimação da casa (no Google Street View ele ainda está lá, como que a negar o que veio depois). Após cortá-lo, enquanto fazia o luto (e sem imaginar o que nos esperava), minha mãe soltou a frase que me parece definidora do nosso estar no mundo, ainda mais em momentos como esse: "viver é ir morrendo aos poucos".

 25 de janeiro de 2021