"À mulher de César não basta ser honesta, é preciso parecer honesta". A importância da aparência na cultura ocidental vem de longa data - do imperador romano Julio Cesar, ao menos -, mas sob a sociedade do espetáculo essa velha máxima foi superada pela de que "à mulher de César não é preciso ser honesta, basta parecer honesta". Em muitos casos, nem parecer, apenas aparecer como honesto no momento oportuno - Temer, Doria Jr, Bolsonaro que o digam, despontaram como se porto de Santos, rachadinhas e Embratur nunca tivessem existido.
Não entrei na comunhão nacional gerada pelo início da vacinação nestes Tristes Trópicos, em 17 de janeiro: sabendo dos entraves gerais e das inoperâncias nacionais, não vislumbro ser vacinado antes de dezembro e ainda temo receber uma vacina que já pouco protege, por conta das mutações do vírus (ainda que isso, por enquanto, não tenha sido posto no horizonte pelos cientistas, até onde me consta). Minha mãe, prioritária, quem sabe consiga ser vacinada meio logo e possa vir me visitar ainda este ano, depois de mais de um ano nos vendo apenas por videochamada.
Entendo o sopro de alento que o início da vacinação trouxe a muitos, mas não deixou de me causar assombro como esse sopro veio desprovido de qualquer construção crítica mais bem fundamentada. “Doria Jr fez um golaço”, comentavam, como se aparecer ao lado da primeira pessoa vacinada redimisse o governador de todos seus atos contra a saúde pública, a pesquisa científica, a universidade pública - isso já em plena pandemia, já quando ele se dizia defensor da ciência - e a produção de remédios - e não falo aqui de troca, quando prefeito, de isenções fiscais por "doação" remédios quase vencidos cuja boa parte seria incinerado a um custo elevado, mas do sucateamento da Furp e do Instituto Butantã. Vale lembrar que este só não virou peça histórica graças à combinação pandemia e negacionismo da ciência por Bolsonaro, no qual Doria Jr viu oportunidade de se apresentar como a extrema-direita racional (Adorno e Horkheimer mostram como o nazismo era racional) e “razoável” (se privatizar e tirar direitos de trabalhadores, as elites brasileiras acham qualquer coisa razoável). Todo seu histórico de destruição virou fumaça diante da vacina: Doria Jr, “o político da ciência e da sensatez”. Só não se tornou também “o homem da tolerância política” porque Dilma Rousseff fez algum alarde ao avisar que não aceitava seu convite para furar a fila - e com esse ato, Dilma reforça a frase do primeiro parágrafo, ao lembrar que ela e Lula, dois dos políticos mais probos da história do país, são taxados como os maiores corruptos, simplesmente porque não conseguiram vencer a máquina midiática e aparecer como honestos: quem controla a produção de imagens e narrativas detém incomparável poder, incompatível com a democracia, mesmo a espetacular.
Assim como Doria Jr, Bruno Covas não precisa temer a mídia. Como seu padrinho político, o prefeito parece esquecer que a mulher de César no século XXI não precisa ser honesta, basta parecer honesta; contudo, à diferença dele, não possui qualquer jogo de cintura, quem dirá a lábia canastrona de vendedor de enciclopédia no interior e a desfaçatez do gigolô que se diz arrependido e promete fidelidade.
Junto com Doria Jr, Covas repetiu o mantra do "fique em casa". Como Doria Jr, assim que pode, saiu passear: mas ao invés de ir pra Miami (onde poderia achar qualquer álibi inconsistente: que foi em jatinho particular com a esposa para ficarem enfurnados e isolados na sua casa florida, sei lá, pra não ter o risco de alguma garota constrangê-los cobrando uma conta antiga), o prefeito foi assistir ao jogo da final da Libertadores no Maracanã, com mais alguns convidados VIPs - ele, que estava em tratamento contra o câncer até quinze dias antes, ou seja grupo de extrema vulnerabilidade, que mais deveria se resguardar.
A final da Libertadores ter público em plena pandemia já é uma afronta, um reescancarar daquilo que as “modernas arenas” que substituíram os estádios já escancaram há anos: futebol é cada vez mais um espetáculo para poucos usufruírem ao vivo - só para os VIPs. Neste caso, só para os VIPs dos VIPs. Para um político que tem tentando trabalhar uma imagem pública de progressista desde que assumiu a Disney, digo, a prefeitura de São Paulo, um deslize desses é grave - até porque não foi só uma notícia de jornal, mas uma foto que rodou a internet, e na sociedade imagética, uma imagem pode ser avassaladora (Roseana Sarney sabe bem). A explicação para seu ato, dado em seu Instagram, só piora a situação. A questão pode ser abordada pelo aspecto político e sociológico.
Politicamente é um movimento que causa estranhamento. Bruno Covas trabalhava com afinco sua imagem de um “velho PSDB”, um PSDB de direita democrática e progressista, retomando projetos êxitosos da gestão Haddad; esse passeio com o filho, junto com as ações que tem tomado desde que ganhou a reeleição, vão na contramão de todo esse trabalho. Ao que tudo indica, a eleição serviu para que Covas e o partido notassem que ele é um quadro eleitoralmente frágil, quase inviável: se largar a prefeitura para disputar o estado, perde votos dos paulistanos sem conseguir compensar no interior (como foi o caso de Serra e Doria Jr). Daí a impressão de ter entregue a prefeitura toda para o grupo de Doria Jr (representado pelo vice Ricardo Nunes?) desde já, talvez com o plano de tentar imitar seu padrinho e ver se consegue superar as próprias fraquezas; assim, todos os movimentos de respeito aos direitos humanos - que, por mais que tímidos, marcaram uma diferença significativa frente a gestão desumana de Doria Jr - terem sido jogados fora: do cercamento de praças (o caso noticiado é da praça no bairro nobre, mas na 25 de Março, por exemplo, a Ragueb Chohfi já foi cercada há tempos) às pedras antimendigos, passando pela intensificação no confisco dos pertences dos moradores de rua (só esperando pelas operações da GCM na (mal) dita cracolândia). Se for esse o caso, entende-se o mandar às favas a construção da sua imagem pública e ir curtir a final da Libertadores com o filho.
Aqui entra o ponto sociológico de minha análise: ao ser pego no Maracanã, a resposta de Covas explicita sua adequação à sociabilidade perversa brasileira, recentemente assumida como virtude por políticos como Bolsonaro, Moro ou Doria Jr: o privilégio do verdadeiro líder de estar acima do bem e do mal - e das leis. Ser aspirante a um mini-Luís-XIV-versão-século-XXI seria a demonstração cabal do seu valor, como era outrora o despotismo do senhor de engenho perante suas posses - terras, mulheres, escravos, estado. O problema de Covas é que ainda que formado nessa sociabilidade, ele não é um perverso: ele não consegue jogar flores no chão, falar "e daí, não sou coveiro", grasnar qualquer atrocidade; por isso seu passo atrás, seu tentar se justificar com sua excepcionalidade: mereceria estar no Maracanã em meio a uma pandemia, 230 mil mortos, crise na saúde, na economia, no estado, porque "é um direito" seu "usufruir de um pequeno prazer da vida" depois de passar pelo tratamento de um câncer - contrariamente ao que sempre diz aos seus comandados. Só ele quer desfrutar de um pequeno prazer da vida? Só ele ficou doente durante a pandemia? Filhos com saudades de seus pais idosos que moram longe, se tem responsabilidade (e um emprego), não tem esse direito. Pais e mães cujos filhos estão entre os que tiveram a vida levada pelo coronavírus - só no estado de São Paulo os mortos já lotam o Itaquerão e começam a encher um segundo estádio -, não podem mais ter esse pequeno prazer. Mas hipócrita é quem segue as recomendações que o governador do estado e o prefeito da cidade repetem.
Pelo posto que ocupa, Bruno Covas deveria ser o primeiro a dar o exemplo. E ele dá: se o exemplo é positivo ou negativo, é outra história. Prefeitos acusados de furar fila da vacina podem, inclusive, usar essa questão com o álibi: estão dando o exemplo da importância da vacina, já que o chefe do executivo nacional faz campanha contrária (isso não vale para parentes, mulheres e amigos do prefeito que furam a fila, aí o exemplo volta a ser de apropriação privada do público). Ao dizer que seu caso é especial e merece ser excluído das restrições que todos deveriam estar submetidos, simplesmente “porquessim”, qualquer um pode alegar o mesmo - como já é feito, mas agora há uma legitimidade a mais: o prefeito da maior cidade do país, que repete diariamente “fique em casa” e “cuide-se” também assume que qualquer motivo serve para não ficar em casa nem se cuidar devidamente. "Pequenos prazeres" justificariam a negligência com o vírus - nem precisa ser "grandes prazeres".
Uma atitude dessas de um político, de um homem público, é um deslegitimar a política e recusar a coletividade em nome de um hedonismo mesquinho. É um passo a mais no nosso caminhar para o abismo da convivência social, onde tem voz uma ideologia darwinista-social-ultra-individualista que apregoa a sociedade como feita de mônadas e recusa a óbvia interdependência de todos na construção do bem comum (do mal comum também); é um reforço ao que temos de pior da nossa sociabilidade forjada na escravatura e no estupro, um individualismo tacanho e incapaz de enxergar o próprio bem no dia de amanhã. Bruno Covas tem a consciência tranquila.
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