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quinta-feira, 17 de março de 2016

O Brasil é fracasso (e eu só notei isso dia 16 de março de 2016)

Fracasso. É essa a sensação que me abate, depois de uma noite mal dormida e um dia mal acordado, ainda atordoado com os acontecimentos recentes do país. Fracasso. Eu fracassei, você fracassou, eles fracassaram, nós, nós fracassamos. Ainda que o golpe encabeçado pela Rede Globo seja revertido por Lula - com apoio dos movimentos sociais e das pessoas democratas do país -, o que resta deste episódio - cuja última cartada foi o atendimento à conclamação, por parte de um casal de ventríloquos biltres e canastrões, do homem-gado e da mulher-vaca para tomar a Avenida Paulista, em louvor ao fato de um justiceiro togado ter escarrado sobre as leis do país e sobre os direitos individuais - é a certeza de que o Brasil fracassou, de que nós fracassamos. Fracassamos enquanto nação, pois, tal qual nos últimos 516 anos, uma parcela majoritária da população segue invisível aos donos do poder, que apregoam que "todos os brasileiros" estão cansados disso e daquilo. Fracassamos enquanto Estado de Direito, ao permitir que presidente da República seja grampeado por qualquer juiz de província. Fracassamos enquanto Estado de Direito também quando o judiciário - juízes, promotores, analistas, técnicos - vestem preto como a milícia de Mussolini e tiram uma foto para defender que a constituição fique à mercê do casuísmo de ocasião de um grupo de plutorepresentantes. Fracassamos enquanto Estado de Direito quando um juiz da corte suprema do país é um coronel que usa o cargo para fazer proselitismo político e demonstra tanto apreço pelas pessoas, pela Constituição e pela justiça do País quanto Franz Gurtner na Alemanha Nazista. Fracassamos. Fracassamos enquanto país capitalista, ao vivermos de fato em uma sociedade de castas, com baixíssima ascendência social à casta dos donos do poder e do dinheiro, os primeiros encrustados na burocracia do Estado, cujos cargos são hereditários (por meritocracia, claro), os segundos encrustados nas entranhas do poder, feito chopins atrás do tico-tico (e eu custo a entender porque Macunaíma matou o tico-tico), a viver de concessões públicas, rendas do Estado, quando não de pilhagem pura e simples (mas tornadas legais pelos seus representantes legislativos, claro). Fracassamos enquanto civilização, ao formarmos milhares de doutores analfabetos e absolutamente incapazes de pensar, que dirá de refletir. Fracassamos ainda mais enquanto civilização ao querermos comparar pessoas com base em seus títulos burocráticos e não em sua inteligência, competência e respeito pela coisa pública, seu respeito e seu tato com o Outro. Fracassamos enquanto democracia ao deixarmos grande parte do povo sem direito a voz. Fracassamos enquanto democracia quando parte desse povo decide falar e reivindicar e é recebido a balas de borracha, bombas de gás, cacetetes, prisões arbitrárias por uma Polícia Militar autorizada a execuções extra-judiciais pelo governador do Estado - isso quando nosso Estado Democrático de Direito não deixa essa tarefa a jagunços e pistoleiros. Fracassamos enquanto Estado quando este se mostra muito aquém do crime organizado na sensibilidade às questões sociais e à distribuição equânime da justiça. Fracassamos enquanto democracia quando a Rede Globo comete sete golpes brancos à democracia em trinta anos (para ficarmos nos escancarados, sem possibilidade de dúvidas, 1982, 1984, 1989, 1994, 1998, 2005-2012, 2014), até que se cansa e parte para o golpe aberto, com Sérgio Moro como ator principal. Fracassamos enquanto democracia quando apenas uma geração é suficiente para parte do país esquecer o horror de uma ditadura (eu e meu irmão estamos na casa dos trinta anos, nascemos na transição da ditadura para essa nossa democracia capenga, e somos obrigados a conviver com um golpe de Estado!). Fracassamos enquanto civilização ao ver os tais homens e mulheres de bem defenderem o pau-de-arara, numa completa alienação da sua própria humanidade e absurda indiferença pelo Outro. Fracassamos enquanto civilização ao não conseguirmos garantir direitos elementares aos cidadãos - nem mesmo à presidenta da República! Fracassamos de maneira retumbante enquanto Estado Democrático de Direito, enquanto civilização, enquanto nação, enquanto pátria. Temo que nosso fracasso seja tamanho que não haja qualquer possibilidade de civilidade num futuro breve. Digo isso não por vermos pais acharem lindo o filho de cinco anos escrever "morra Lula", "morra Dilma" em um trabalho de escola, não por presenciarmos pessoas sendo espancadas por estarem de vermelho, não pelas panelas batidas no anseio de calar o diferente; digo isso pelos 50 mil assassinatos anuais, pelas outras 50 mil vítimas anuais da nossa guerra sobre rodas, pelas centenas de vítimas em conflitos agrários todos os anos, pelas vítimas que sequer merecem ser transformadas em estatísticas, assassinadas em aldeias indígenas, em prisões, em autos de resistência; fracassamos ao saber que há pessoas vitimadas por serem negras, por serem mulheres, por serem pobres, por serem "nordestinas", por serem haitianas, por serem putas, por serem periféricas, por serem moradoras de rua, por serem faveladas, por serem gays, por serem trans, por serem diferentes (que o diga todos os suicidas da Unicamp).
À tarde resolvi dar uma espairecida do golpe, fui dar uma volta no centro de São Paulo - bem longe da avenida Paulista. Largo do Paissandú, 25 de Março, Zona Cerealista, Luz. Tirando na cantina onde almocei, em que o assunto passou rapidamente por uma conversa ao meu lado, não ouvi nenhuma vez os nomes de Lula, Dilma, Moro, Globo - mas soube que o Coringão ganhou e o São Paulo, não. Elogiei a moça do caixa, garota muito simpática, que esbanja vida - pouco importa quem seja o dono do butim estatal. Fiquei sem saber, mas desconfio que ali, nessa área bem "povão" de São Paulo, as preocupações são as contas a pagar, o quanto vai conseguir ganhar no fim do mês, se o rapa está vindo, se vai conseguir um lugar sentado no ônibus ou no trem, na volta para casa; se ama e se é amado; se o seu time vai ganhar o campeonato, se a crise vai ceifar seu emprego, ou "apenas" seu salário. Moro, Lula, golpe? Ali está o Brasil fracassado - nosso fracasso - que insistimos em não enxergar. A certa altura, três ambulantes gritam e fazem algazarra; não tardo a entender: tiram sarro de dois africanos que passaram por eles vestidos com roupas tradicionais (que acho muito legais, por sinal). Sem idealizações, vejo ali o Brasil fracassado, o nosso fracassamos.

Ainda assim, de fracasso em fracasso, amanhã sairei à rua, sem camisa da seleção ou a bandeira que tanto me envergonha, lutar pela democracia, pelo Estado de Direito, pelo respeito aos direitos individuais e aos direitos sociais - pelo direito desses que hoje vociferam e agridem quem pensa diferente. Porque ainda é possível que nesse golpe eles fracassem, e isso nos permita tentar corrigir os efeitos de nossa herança de fracassos.

17 de março de 2016
ps: Fracassamos ao ter como alíquota de Imposto de Renda mais alta 27,5%.

quarta-feira, 16 de março de 2016

Lula na Casa Civil: a confissão do golpe

Aqueles que entoam o "não vai ter golpe" não podem estar mais enganados: a ida de Lula para a Casa Civil é a admissão velada de que há um golpe de Estado em estágio avançado.
Lula pode não ter feito faculdade - diferentemente da maioria dos cabeças do golpe em curso e dos seus apoiadores apedeutas dos bairros nobres da nação -, mas é inteligente e demonstrou isso com tudo o que aprendeu ao longo de sua vida pública. Depois de afirmar que seria candidato em 2018 (eu ainda acho que ele não queimaria seu capital político com um terceiro mandato, antes tentaria a presidência da ONU, não fosse todo o trabalho dos seus inimigos de pô-lo fora da disputa da presidência do país), assumir um cargo no governo Dilma como o fez, às pressas e sem outras mudanças de imediato, seria um suicídio eleitoral - estivéssemos nós em condições democráticas normais. Não estamos, e assumir a Casa Civil foi a forma que o ex-presidente achou para tentar garantir eleições livres em 2018 - seja para ele ou para quem for do PT (e da esquerda?) participar.
(Parênteses para meia teoria conspiratória: a impressão que se tem é que sua prisão (na Guantanamo brasileira, conforme alcunha corrente da carceragem da PF em Curitiba) era para breve, ao que se seguiria o processo de impeachment de Dilma e sua destituição do cargo, um governo tampão "de união nacional" (vulgo PMDB, PSDB e os donos da voz) até 2018, quando novas eleições correriam "normalmente", sem perigo de vitória petista - tudo feito sob a supervisão do judiciário brasileiro e da nossa Grande Imprensa, ambos de notória imparcialidade).
A nomeação de Lula para a Casa Civil foi um belo contra-golpe político: no plano interno, dá ao governo petista um alívio - pequeno e por si só insuficiente - nas negociações com o legislativo, retardando o impeachment num primeiro momento, com possibilidade de freá-lo tão logo consiga se estabelecer (Paulo Henrique Amorim fala que Lula já estaria fechado com a maioria do PMDB, e a governabilidade, garantida); no plano internacional é que seu lance é grandioso: ao entrar no governo, uma destituição da presidenta deixaria escancarado ao mundo nossas instituições de república bananeira (em pé de igualdade com nossos hermanos paraguaios, de má-lembrança), o que traria sanções ao país, além de ferir nosso orgulho nacional tão pós-moderno e ao mesmo tempo tão século XIX - visível nas manifestações de domingo ou em manifestações de tucanos ou nas manifestações tanto dos políticos do Partido Conservador quanto do Partido Liberal -, de sermos quase primeiro mundo, não fosse a maioria da população desta terra, esse populacho feio e ignorante feito de gente mestiça e pobre.
O acerto do lance de Lula ficou evidente no destempero dos principais articulistas do golpe, Moro pelo judiciário e Globo pela Grande Imprensa e partidos de oposição de direita, ao divulgar conversas da presidenta da República - um crime contra a segurança nacional. Foi a comprovação de que o golpe estava em curso e que o contra-golpe também - "Nietzche", Marx e Hegel foi a primeira tentativa destrambelhada de barrar o contra-golpe. Se a espionagem da presidenta por parte da NSA (sigilosa, não fosse o WikiLeaks) mereceu congelamento das relações brasileiras com o todo-poderoso Estados Unidos, a espionagem e divulgação de conversas privadas da Presidente da República, com claro intuito de perturbar a ordem pública - o próprio Juiz admite de que não há indícios nas conversas -, merece respostas à altura, contra o juiz, contra o Grupo Globo de comunicação (e suas concessões públicas), e demais envolvidos nessa lastimável página de nossa história. 
Como já disse em outra análise: o Brasil hoje não se divide entre petistas e anti-petistas, coxinhas e petralhas, como a Grande Imprensa tenta fazer crer (e muitos acreditam); mas entre os defensores da democracia (falha, capenga, mas ainda assim sob o manto do direito e com possibilidades de aprimoramentos) e de uma ditadura com fortes traços fascistas.


PS: na CBN ouço da manifestação em Brasília, acompanhada pela PM e pelo exército. Desde a tentativa de locaute dos caminhoneiros, ano passado, tenho achado que o que o Exército mais quer é ter que entrar no jogo, garantindo a normalidade institucional ao obedecer as ordens das presidenta, e poder cobrar a fatura com o fim de Comissão da Verdade qualquer coisa relacionada ao período em que eles encabeçaram a ditadura nestes Tristes Trópicos - aplaudidos, diga-se de passagem, pelos mesmos que hoje aplaudem Gilmar Mendes, Sérgio Moro e seu jagunços.

PS2: é hora de Lula rever o documentário da BBC "Além do Cidadão Kane" (Beyond Citizen Kane), de Simon Hargo, em que um então político de esquerda homônimo ao ministro da Casa Civil falava do imperativo em se romper com o monopólio da comunicação do país, sob o risco de nossa democracia nunca poder triunfar por completo [http://j.mp/1XwkfRC].

16 de março de 2016.



domingo, 13 de março de 2016

Querem que o Brasil se torne uma grande favela

Há um certo ethos corrente nestes Tristes Trópicos que tento entender, sem muito sucesso. É uma forma de pensar e se posicionar com relação ao mundo, em especial diante do Outro, que me soa absurda - por mais corriqueira que seja. O "complexo de vira-latas", enunciado por Nelson Rodrigues ajuda, mas não dá conta de tudo, pois parece se aplicar melhor à relação com o estrangeiro, em que nos vemos inferiores em tudo - menos no futebol, único momento da nação cantar que é brasileira, "com muito orgulho, com muito amor", apesar que depois daquele lindo 7 a 1... O que me intriga é a forma como essa auto-imagem caquética é reorganizada nas relações entre as classes sociais, no interior do território.
Parece que precisamos o tempo todo de comprovação do Outro de nosso valor, e essa comprovação se dá pela negativa do Outro - que beira a negação, almeja a negação do Outro, mas não sobrevive se negá-lo -, com o regozijo do fracasso alheio (acho que isso se destaca tanto pra mim por meu pai sempre ter combatido essa forma de apreender o mundo, recordo a vez que tentei justificar minha nota baixa comparado à de colegas). Me vem como um exemplo o professor de ética que tive na graduação em filosofia: não perdia uma oportunidade de tentar diminuir seus colegas ou sua desafeta-mor, Marilena Chauí - em compensação, raríssimas vezes foi que demonstrou ter algum conteúdo além de ressentimento e ego. Outro exemplo eu já trouxera em crônica antiga, em que questionava a satisfação desditosa de pessoas abusarem de pequenos poderes, quando tem a oportunidade (como ficar no lado esquerdo da escada rolante propositadamente), que nada acrescentam à sua vida pífia [http://j.mp/cG161009]. Um terceiro exemplo: os tais "privilégios" que muitos se indignam e querem ver abolidos (como os marajás colloridos), na maioria das vezes não passam de direitos legítimos e que deveriam ser extendidos a toda a população - dois meses de férias, trabalho remoto, trinta horas, se tanto, de expediente por semana, salário na casa dos cinco dígitos: isso deveria ser uma possibilidade factível à maioria da população, e não apenas a meia dúzia de togados.
Somos movidos a ressentimentos e, incapazes de nos atribuir uma valoração positiva, sustentamos nossa auto-imagem na derrota do nosso próximo, que nos faz esquecer temporariamente o fracasso que também somos.
Vejo Donald Trump "caosando" nas prévias republicanas. Penso nas tais "pessoas de sucesso" (sem entrar no mérito de que sucesso é esse) daquelas terras, que estufam o peito para contar sua história de vida, que se tornam modelos para seus conterrâneos. Aqui, no Brasil, não teriam vez: seriam vistos não apenas sem admiração, mas com inveja, dessas sangue nos olhos, das pessoas que trazem o olhar sempre atento, sempre esperançoso de uma queda triunfal no próximo passo - "aqui se faz, aqui se paga", justificam. Exceção feita à nossa commodity for export, jogador de futebol, e ao Sílvio Santos. Talvez porque saibamos, ainda que não queiramos admitir, que a mobilidade social no Brasil é para inglês ver e nunca ascenderemos à casta dos senhores da Casa Grande, que nos incomoda os poucos exemplos que confirmam a regra.
Lula, principalmente após a vitória nas eleições de 2002, assumiu com ênfase esse discurso positivo sobre si, sobre seu passado, sua história - ao invés de se fazer sobre o negativo do Outro, como fez FHC. Foi o que recordou no seu discurso após os eventos bananeiros de 4 de março, ao comentar, por exemplo, o quanto cobra por palestra. Um migrante sem nível superior negar o complexo de vira-latas para o mundo? Uma afronta dupla para a classe-média, média-alta brasileira. Para piorar: pressionado, cresceu ainda mais na auto-afirmação de si.
A prisão, seqüestro, condução coercitiva ou que nome se queira dar ao ocorrido com Lula dia 4, além do pedido cafajeste dos promotes do Ministério Público de São Paulo, dia 10, trouxe a uma significativa parcela da população esse prazer pusilânime de ver o Outro se dar mal - mais, de mostrar a esse nordestino petulante seu devido lugar. O que esses brasileiros não se deram conta - porque a Grande Imprensa não entregou mastigado, e seu funcionários são covardes e atiram no próprio pé na esperança de ganhar um bônus no fim do ano - é que aplaudir o ato ilegal contra Lula e o pedido de prisão contra o ex-presidente (independente de a suspeita de corrupção vir a ser confirmada no futuro ou não), é aceitar que a polícia, a justiça e quem mais for aja fora da lei, conforme a conveniência de momento a si e aos seus interesses - banditismo, para usar o termo que Datenas da vida tanto gostam de aplicar aos pretos pobres periféricos. Diante de pessoas acima da lei, corrupção e desvio de dinheiro se tornam problemas menores diante da violação dos direitos humanos e de crimes contra a humanidade. Esses brasileiros, que hoje ocuparam as ruas de várias cidades do país e tem a fé cega de que estão do lado certo, do lado "do bem", podem, mesmo sem mudar de posição, serem vistos como "do mal" pelas mesmas pessoas que agora apóiam, e serem perseguidas, presas, torturadas, mortas - vide Nelson Rodrigues, entusiasta do golpe de 64, até prenderem seu filho.
Mas essas pessoas - classe-média, média-alta, branca, nível superior, moradora de bairros abastados - que vibram com as agruras injustas contra Lula não deixam de ser coerentes: o fazem também quando polícia mata "bandido", quando prendem preto pobre periférico em poste, quando chacinam craqueiros, quando prendem e espancam sem-terra e sem-teto. Sua ignorância crassa (apesar do diploma da USP) não permite que entendam que a igualdade é boa quando estão todos sob o abrigo da lei, e que quanto mais direitos todos tiverem, melhor. Só enxergam sua realidade mais estreita, por isso acham sublime a igualdade que rebaixa todos ao seu nível, que põe seus iguais junto a eles, como moradores da senzala. Seu ressentimento não permite que percebam sua verdadeira condição: acham que por serem escravos domésticos e servirem diretamente a mesa do senhor, não são escravos. Se achavam ruim Lula ter transformado aeroporto em rodoviária, mal esperam a vez de Globo e Moro transformarem o Brasil todo numa favela - terra sem lei, em que o Estado é tão criminoso quanto o dito "bandido", onde ninguém tem direito a nada, onde todos são suspeitos e não há para onde correr.


13 de março de 2016

domingo, 6 de março de 2016

Um ponto de inflexão na crise político-institucional brasileira, e a necessidade de tomar partido

Até esta semana havia conhecidos que mantinham sua capacidade de reflexão e pensamento em um nível mínimo para não serem confundidos com um papagaio ou um cão adestrado, e que não estavam de todo convencidos de que se articulava um golpe jurídico-policial-midiaresco contra a presidenta e o Partido dos Trabalhadores. Não eram ingênuos a ponto de acreditar que todo o mal do Brasil e da Terra tem origem, meio e fim no PT, mas achavam que a idéia de golpe era teoria conspiratória - as evidências do golpe eram evidências, não provas, diziam. No máximo admitiam que havia uma cobertura desproporcional contra o PT, que seria justificada pelo fato de ser o partido no poder federal - o fato do PSDB ser poder estadual em São Paulo e ter acusações mais graves que as contra o PT, que em mais de vinte anos de prevaricação desviaram mais milhões do que as petistas, isso nunca entrou na conta.
Não os culpo de todo: o monopólio das concessões de rádio e TV por parte de algumas poucas pluto-famiglias, verdadeiras máfias espetaculares (ou pós-modernas, apesar de serem-na desde quando não se ia além da Modernidade), impede o desenvolvimento da democracia - em que o contraditório é condição necessária - nestes tristes trópicos: convivendo num meio em que as pessoas se limitam a assistir a Globo e afins, ouvir Band e CBN, ler Folha, Estadão, Veja e congêneres, é-se bombardeado a cada cinco minutos com notícias do "descalabro" da nação perpetrada por petralhas, comunistas, negros, nordestinos, ateus, putas, gays e favelados de toda sorte, de modo que não há como não ser convencido da sua verdade - a Grande Imprensa tem Goebbels como seu Manual de Redação -, ainda que a esses seres pensantes mal localizados seja perceptível certo exagero.
A situação mudou radicalmente de figura nesta sexta, dia 4 de março, com a condução coercitiva do ex-presidente Lula. A partir de então, não aceitar de que há uma tentativa de golpe de Estado em curso é burrice grande, ou má-fé exagerada. Má-fé do nível da do juiz Sérgio Moro, que hipocritamente justifica que visava com isso preservar a imagem do ex-presidente - afinal, é claro que a imagem de um dos principais líderes do Brasil de todos os tempos (concorde com ele ou não) sendo buscado em casa pela polícia não tem nenhum simbolismo.
Má-fé que tem pautado a operação Lava Jato e sua cobertura desde o início: prisões preventivas sem fim com o intuito de assinar uma delação premiada em troca de afrouxamento da pena - apesar de ainda não ter havido julgamento para que houvesse pena -; delações sigilosas aos advogados de defesa mas que são de conhecimento da Grande Imprensa; aviso prévio à imprensa sobre a prisão de Lula - como deixou claro o tuíter do editor do panfleto semanário Época, Diego Escosteguy -; descarte de toda evidência, ou mesmo prova, que atinja políticos ligados ao PSDB ou aos partidos de oposição - ignorando, inclusive, que FHC admite explicitamente em seu livro Diários da Presidência que sabia da corrupção na Petrobrás desde 1996.
Não adentro as evidências contra Lula alardeadas pelo juíz Moro e pela Grande Imprensa, afinal elas são meras formalidades em busca de um pretexto que justifique o golpe.
Um dos argumentos que tenho ouvido e lido tudo o que está acontecendo é amparado pela lei, logo, não é golpe. Para esse sofisma, convém rememorar que em 1961 o Congresso aprovou o golpe de Estado (super-brando, diria a Folha de São Paulo?), com a mudança do regime de governo o país de presidencialismo para parlamentarismo - ou seja, um golpe feito dentro da mais estrita legalidade. Um exemplo mais recente, ainda que adventício: Fernando Lugo foi afastado da presidência do Paraguai, em 2012, em processo legal de impeachment, que durou 24 horas e não enganou ninguém.
Mesmo sem aprovar mudanças constitucionais oportunistas e sem extrapolar as leis, abuso de direito é tipificado na nossa legislação, no artigo 187 do Código Civil: "comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa fé ou pelos bons costumes". Sérgio Moro está descaradamente excedendo os limites impostos pela lei, a ponto do ministro do STF Marco Aurélio Mello, que está a anos-luz de distância de ser petista, se assombrar com o destempero do juiz paranaense. Disse o magistrado a Monica Bergamo: “só se conduz coercitivamente, ou, como se dizia antigamente, debaixo de vara, o cidadão que resiste e não comparece para depor. E o Lula não foi intimado". Ele compara a ação de Moro à dos justiceiros - ou seja, à dos capangas que faziam a lei do coronel imperar nos sertões do país nos séculos XIX e XX, ou dos esquadrões da morte da segunda metade do século XX; nada mais longe do Estado de Direito, portanto.
Não é o que entende a Grande Imprensa. A colunista Miriam Leitão, arauta de seus chefes, comemorou que não haveria mais intocáveis no país. Primeiro que há aí uma mentira: a Grande Imprensa, para a qual ela trabalha e que se orgulha de ser o "quarto poder" da república (tem falado pouco nesse assunto, desde que começaram as pressões pela sua regulamentação legal), resiste a qualquer lei que vise enquadrá-la no arcabouço democrático e de direito, de modo que é intocável pelas leis. Segundo que a questão não é estar acima da lei: o que ficou evidente na fase Aletheia da Lava Jato é que o juiz Moro veste toga mas age à margem da lei (a exemplo de seu modelo, o ministro Gilmar Mendes, figura das mais nefastas da história recente do Brasil). O argumento de que isso seria preciso, pois de outra forma os acusados conseguiriam dar um jeito de prejudicar as investigações, ou que já há provas suficientes para medidas mais drásticas, é uma falácia das mais perigosas. Que o diga o dramaturgo Nelson Rodrigues, por oito anos grande entusiasta do golpe civil-militar de 1964 - o que significa também aprovar prisões extra-legais, torturas, desaparecimentos e ações do gênero -, até ter seu próprio filho preso e torturado pelos militares, em 1972. Só então ele se deu conta que fora do Estado Democrático de Direito todo mundo é potencialmente um inimigo prestes a ser abatido. Marco Aurélio Mello deixou isso claro na sua entrevista: “o atropelamento não conduz a coisa alguma. Só gera incerteza jurídica para todos os cidadãos. Amanhã constroem um paredão na praça dos Três Poderes”. Ironia: a direita brasileira, que grita vai para Cuba, e acusa o regime da ilha de assassinar opositores, é quem se aproxima de construir um paredão bem aos moldes do que ela diz haver em La Havana.
Dia 4 de março de 2016 é, portanto, um ponto de inflexão nesta crise institucional brasileira. Infelizmente, neste momento não é possível permanecer neutro: não se trata de disputa entre esquerda e direita, entre governo e oposição; é disputa entre democracia e ditadura, entre Estado de Direito e Direito de Estado - no primeiro, todos, inclusive juízes, procuradores, políticos, presidentes, governadores, donos de emissoras de tevê devem se submeter às leis; no segundo, o Estado, na figura de seus representantes políticos, judiciais, policiais ou militares tem direitos sobre os cidadãos que julguem inconvenientes ao "serviço do Brasil" (para usar o lema de um jornal golpista), e não precisam se submeter às mesmas leis que as pessoas comuns.

Dói ter que defender o governo Dilma: um governo que entrega o petróleo a multinacionais, que não faz reforma agrária, que aumenta juros para benefício de uma minoria, que aprova lei anti-terrorismo, que não altera nenhuma estrutura do país, beira o indefensável. Contudo, é preciso defender a democracia - sistema que permite não só que esse projeto de governo não perdure para além de quatro anos, como que permite que a pressão das ruas impeça a tomada de medidas que prejudiquem o grosso da população -, e neste ponto crítico defender a democracia é defender o mandato da presidenta. Entretanto, ao garantir a democracia política-formal, não é possível se acomodar: é preciso pressionar por reformas que implementem uma democracia de fato, a começar pela democratização da mídia. Ou então teremos crise institucional toda vez que os interesses dos poderosos do Brasil e do mundo foram minimamente contrariados.

06 de março de 2015.

Imagem do justiceiro Moro achada na internet. Fica a dúvida: o que significa "todos"?

quarta-feira, 15 de julho de 2015

1964 e 2015: algumas comparações

É evidente e explícito que parte do Establishment tupiniquim se organiza com vistas ao poder. Há um golpe em curso - que ora parece almejar a destituição da presidenta da República, ora parece se conformar em agir como a Rede Globo, Veja, Fiesp e congêneres, agiram na eleição de 1989, com manipulação, mentiras, terrorismo e tudo aquilo que é de conhecimento público (a quem tem interesse por conhecer algo da história recente do país). Porém, entre desejar e organizar um golpe (e mesmo aplicar um golpe midiático) e achar que a tomada do poder está em marcha, como parte da esquerda vê desde o fim do ano passado, vai uma certa distância. Contudo, mesmo deixando de lado casos folclóricos (como Paulo Henrique Amorim, que vê golpe em cada esquina, parecendo a versão à esquerda de Dennis Lerrer Rosenfield, professor de filosofia que no início dos governos petistas via comunista em cada poste e ganhava amplo espaço na Grande Mídia, quando a direita ainda buscava um ideólogo com algum estofo intelectual), tanto se fala em golpe que soa conveniente traçar alguns paralelos entre a situação atual e a que antecedeu o golpe civil-militar de 1964 - não por achar que a história se repita, mas porque parte das forças sociais atuantes continuam as mesmas, e seguem agindo de modo semelhante à de cinqüenta anos atrás.
Conforme Caio Navarro de Toledo, em "A democracia populista golpeada", as características principais do país no momento anterior ao golpe de 64 são: "uma intensa e prolongada crise econômico-financeira (recessão e uma inflação com taxas jamais conhecidas); constantes crises político-institucionais; ampla mobilização política das classes populares (as classes médias, a partir de meados de 1963, também entram em cena); fortalecimento do movimento operário e dos trabalhadores do campo; crise do sistema partidário e um inédito acirramento da luta ideológica de classes". Enquanto isso, no sub-continente americano vários governos popularmente eleitos foram, estavam ou seriam desestabilizados e derrubados por golpes de Estado: Colômbia, 1957; Venezuela, 1958; Cuba, 1959 (vale lembrar que Fidel e companhia foram inicialmente saudados pelos EUA, que patrocinou tentativa de golpe contra o regime em 1961); Argentina, 1962 e 1966; Peru, 1962; Guatemala, Equador, República Dominicana e Honduras, 1963; Bolívia e Brasil, 1964 - para ficarmos só em uma década. Atualmente, acompanhamos tensões políticas na Argentina, Venezuela, Chile, Peru, Colômbia, Honduras e México - além da crise no Brasil.
Para além do que foi levantado acima, Dilma, assim como Jango, é herdeira política de um estadista com apuradíssimo faro político, está diante de um congresso conservador e sua base de sustentação nele é limitada. Recentemente, os movimentos sociais - cujos ânimos arrefeceram após a ascenção de Lula - retomaram parte da pauta da sociedade, via Movimento Passe Livre e Movimento de Trabalhadores Sem Teto; enquanto os panelaço anti-PT, assim como a Marcha da família com Deus pela liberdade, são marcadamente manifestações de uma elite (branca) e aspirantes a. Na economia, observa-se uma guinada à direita na economia - então com o Plano Trienal, adesão à ortodoxia proposta pelos EUA para ajuda externa, agora via (Anti-)Plano Levy. A semelhança mais importante a se levantar talvez seja o conluio feito pelas elites locais com apoio do capital internacional, capitaneada por uma direita pouco comprometida com a democracia e seus valores e defendida, justificada e estimulada pela Grande Imprensa - essa descaradamente anti-democrática.
Há, contudo, diferenças, e muitas soam bastante fortes para inibir um golpe de fato - restando a alternativa de golpe via mídia para influenciar as urnas. A primeira e mais visível é que os militares - no Brasil e nas vizinhanças - não têm intervindo diretamente na dinâmica política. Diante das manifestações de março, por exemplo, eu apostaria antes no exército atuando conforme ordens da presidenta Dilma a debandar para o lado golpista - poderiam, com isso, cobrar o fim de investigações sobre a ditadura. Outra diferença: conforme Toledo, no governo Jango, a partir do segundo semestre de 1963, "uma pergunta passou a dominar a cena política: Quem dará o golpe?". Atualmente, amplo espectro da esquerda defende a democracia - inclusive prega seu aprofundamento -, e tanto o governo Dilma quanto o PT já deram reiteradas mostras de respeitarem as regras do jogo democrático, diferentemente do PSDB, que aprovou a ementa da reeleição em benefício próprio e agora fala em destituir a presidenta sem qualquer base legal (não apareceu qualquer escuta em que o principal ministro do chefe do executivo combinava com um subordinado, "no limite da irresponsabilidade", quem seriam os vencedores das privatizações da telefonia, por exemplo). Por fim, outra diferença marcante é que, enquanto o prógono de Goulart havia dado um tiro no peito uma década antes, o de Dilma segue vivo, ativo e forte - mesmo com a campanha cerrada da Grande Imprensa contra Lula há mais de uma década. Inclusive, seu nome é reiteradamente ventilado, tanto pela direita quanto pela esquerda, como candidato a ser batido em 2018 - e seria parte do golpe midiático mudar esse panorama até lá.
Não vejo, portanto, condições para um golpe de Estado neste momento, como apregoam muitos analistas de esquerda - e apologistas de direita. O que não quer dizer que esteja tudo tranqüilo: há um intenso movimento para enfraquecer a presidenta e tirar o PT do comando do executivo federal, se aproveitando do poder desproporcional que a direita possui, graças ao oligopólio da mídia - com o qual tenta reviver a questão de 1964, sobre quem dará o golpe -, e aos aliados na presidência das casas legislativas federais, dois personagens sem qualquer pudor nem respeito pela democracia. Com esse panorama, o PSDB, o Cunhistão e os barões da mídia não deixariam passar a oportunidade de um golpe "dentro das regras democráticas", como foi feito para a aprovação da reforma política ou da maioridade penal. Esperar a tentativa de golpe para então reagir é um modus operandi típico de nossa esquerda super-intelectual. A esquerda está numa situação bastante delicada: precisa defender a democracia sem defender as atuais regras de eleição, que geram esse parlamento abjeto, e sem defender o atual governo - ao menos enquanto enquanto Dilma não decidir dar uma guinada à esquerda e se aproximar dos movimentos sociais, como defende Boulos. É preciso nos anteciparmos: cerrar fileiras pela democracia e pelo seu aprofundamento, defender políticas sociais e principalmente, neste momento, combater a direita dentro do seu próprio campo.


15 de julho de 2015

terça-feira, 17 de março de 2015

15 de março de 2015: o fracasso da nossa democracia [Qual gigante acordou?]

Trinta anos após a redemocratização, assistimos em horário nobre ao fracasso de nossa incipiente democracia. Esta conclusão pode soar contraditória quando a Grande Imprensa anuncia um milhão e meio de pessoas nas manifestações em todo país (metade disso, a se acreditar nos institutos estatísticos dessa mesma imprensa), neste quinze de março. Sem dúvida, se centrando apenas no fato, sem analisar o contexto, tivemos uma prova de política de massa e convivência democrática. Ao remontar as diversas causas que levaram essas pessoas à rua neste quinze de março, o que se vislumbra é uma farsa que se aproveita da democracia. A começar que uma manifestação democrática brada contra adversários, nunca inimigos - inimigos devem ser aniquilados. E o discurso das pessoas que foram para a rua - não digo todas, não sei nem se se pode falar da maioria, mas isso é mais assustador do que se fossem todas - era um discurso de guerra, de ódio, contra um inimigo, o PT, tratado como início e fim da corrupção no país, a besta do mal.
Mas o que tanto incomoda uma parcela da população para guardar tanto ódio frente um governo que não lhe tirou nada? Pois, vale lembrar, a grande mágica do lulo-petismo, desde 2005, foi fazer o bolo crescer já fazendo sua divisão - negando a receita de um dos grande chef da desigualdade tupiniquim, Delfim Netto. Se aproveitando do bom momento do comércio externo, primeiramente, e do bafo de dinamismo no mercado interno, depois da crise do capitalismo especulativo de 2008, os governos petistas promoveram a melhora das condições de vida dos mais pobres sem precisar com isso mexer com as classes média e alta, as quais não engoliram bem ficar com o pedaço maior do bolo, e não com ele todo, como soía acontecer até 2004. O ódio pelo PT se mostra, portanto, um mal-disfarçado ódio pelo pobre, a velha luta de classes, e ele nada tem de novo a não ser sua forma - explícita, incisiva, nada cordial.
Vale lembrar a grita contra Leonel Brizola à frente do estado do Rio de Janeiro, quando ele proibiu a Polícia Militar de agir fora da lei nas favelas, ou quando melhorou o acesso da população marginalizada ao centro da capital. O que Brizola fez então foi apenas uma versão condensada e evidente dos governos petistas na esfera federal: deu à população historicamente excluída uma primeira oportunidade de ser vista como cidadã e alterou a geografia dos "lugares naturais" sociais.
No caso petista, tento um breve resumo de como se deu essa alteração da geografia social a partir da ampliação da cidadania aos excluídos, um dos motores do ódio manifesto no quinze de março de 2015.
A redemocratização e constituinte de 1987-1988, com suas manifestações públicas e efervescência política, inverteu a curva de despolitização que a ditadura civil-militar havia imposto, à base de educação técnica, porrada, afogamento e pau-de-arara. Essa politização não conseguiu ter vida muito longa: ao desgaste habitual que ação política gera no cidadãos, acrescenta-se a educação formal que a negava, a avalanche midiática, principalmente via Rede Globo, que a deturpava, e a própria dinâmica institucional, que a desestimulava. O grande golpe para a subjugação da política foi o ideário neoliberal, trazido pela imprensa, pela academia, pela política, de substituição do politikon zoon pelo homo oeconomicus, com o mercado, e não mais a política, como paradigmática da sociabilidade contemporânea.
O governo FHC foi quem deu o golpe mais destruidor nessa disputa entre política e mercado. Curiosamente, para fazê-lo precisou de muita articulação política - outra prova de que, diferente do que prega, o mercado não é apolítico. Podemos dizer que foi uma mudança estrutural. 
E por ser estrutural, mudanças radicais tornam-se mais difíceis e mais complexas. Talvez por isso Lula e o PT se mantiveram nessa senda e desistiram de alterarem-na: o bordão "é só você querer, que amanhã assim será, bote fé e diga Lula" apresenta a política ao cidadão como se fosse algo não muito diferente da escolha de um sabonete, quando não fruto de alguma mágica sobrenatural, do qual o chefe do executivo tem o poder de transformar tudo em realidade - basta ter fé. Durante o governo, no seu início, a política seguiu abafada, ao menos para a população: vários analistas ressaltam o complexo arranjo de Lula na montagem de seu ministério, que teria trazido disputas que aconteceriam na sociedade para a esplanada dos ministérios. Foi somente quando acuado pelo chamado mensalão que a política foi trazida novamente à tona por Lula. A tática de se defender ameaçando partir para o ataque, pela reemergência da política, parece ter servido para que a mídia recuasse, ficasse dentro dos limites conquistados - o bordão da corrupção seria esse limite.
Ao mesmo tempo, o governo petista promovia a inclusão de uma massa até então à margem das benesses da civilização capitalista - o que trazia também benefícios aos detentores do capital. A classe operária ia ao paraíso das compras: carro, casa, televisão, shopping, faculdade, plano de saúde, tênis, fast food, computador, internet, celular, marcas, marcas, marcas. Os antigos habitantes do condomínio não gostaram de ver sua exclusividade invadida pela turba - em que sustentariam sua superioridade? Apesar do carro cinco vezes mais caro, ficam parados como qualquer um no trânsito; as roupas que compram em Miami agora são vendidas na 25 de março, diploma na parede e anel de bacharel são tão comuns quanto comprar picanha pro churrasco, e a conta personalité não garante a necessária visibilidade das diferenças. "Hipócrita consumidor, meu igual, meu irmão" - a nova classe média só não fez paráfrase de Baudelaire porque nem a nova nem a antiga sabe que raios é Baudelaire.
Essa inclusão fez emergir a política justo no local onde ela, teoricamente, estaria ausente: no mercado. Jacques Rancière comenta sobre a política:
"Há política quando existe uma parcela dos sem-parcela, uma parte ou um partido dos pobres. Não há política simplesmente porque os pobres se opõem aos ricos. Melhor dizendo, é a política - ou seja, a interrupção dos simples efeitos da dominação dos ricos - que faz os pobres existirem enquanto entidade (...). A política existe quando a ordem natural da dominação é interrompida pela instituição de uma parcela dos sem-parcela".
Os sem-parcela, até a vitória do PT, silenciosos e cientes do seu lugar na distribuição econômica, laboral, geográfica e arquitetônica social, petulantemente passam a buscar novos espaços, fazer reivindicações, querer compartilhar das mesmas maravilhas até então destinadas exclusivamente à Casa Grande - como comentou a professora universitária do Rio de Janeiro, foi-se o glamur de viajar apertado em bancos que não deitam comendo gororobas semi-prontas, agora qualquer mulato de regatas e chinelos tem dinheiro para uma passagem dessas. Inversamente à tese de Rancière, a instituição dos sem-parcela foi instituída por uma certa elite, acuada em seus míseros privilégios (os realmente grandes, esses não batem panelas nem viajam em classe turista). Ou seja, na primeira vez que a corja teve respingos de visibilidade social para além da polícia, um mínimo de cidadania, de direitos, de existência para a sociedade (como consumidores), caiu o velho mito do brasileiro cordial: a cordialidade perdurou apenas enquanto o negro, o nordestino, o pobre aceitavam que seu lugar era na cozinha ou na favela, não no asfalto, na praia, no avião (no avião, deus meu, no avião!), no avião, nas concessionárias, comprando carros que vão poluir o mundo, no facebook, emporcalhando a rede social com seu uso animalesco - como haviam feito com o orkut.
Com o governo Dilma, o arranjo político lulista caiu. "O Brasil precisa de um gerente, Dilma presidente" - o bordão só não foi usado na campanha porque o PSDB o utilizara quatro anos antes. Sem os medos de não ter sequer para as necessidades básicas, o populacho foi aos shoppings - "a gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte" -, e as elites se horrorizaram, passaram a xingar muito no tuíter. Sem as disputas sociais canalizadas nos ministérios, a política vazava para a sociedade. Inicialmente nas redes sociais e veículos da Grande Imprensa. Faltava ocupar as ruas - Virilio há muito diz que quem tem o poder real é quem detem o poder da rua. Estas surgiram na cena política nacional com as nomeadas "jornadas de junho de 2013", um movimento originalmente espontâneo, de contestação (por isso a reação agressiva da Polícia Militar), sem ser massa de manobra de parte da oligarquia (como no Fora Collor). Como disse: originalmente.
A manifestação por mais direitos e de contestação da ordem estabelecidade - social e geográfica -, a Grande Imprensa deturpou em território seu: da exigência de mais cidadania para a revolta contra a corrupção. Desemprego, saúde, violência, educação, mobilidade urbana, moradia popular, tudo isso passou secundário diante da corrupção. E corrupção, é sabido desde 2005, é culpa do PT. Saliento aos leitores binários: não sou a favor da corrupção, nem acho que deva ser relativizada, porém corrupção, mais que causa, é conseqüência: conseqüência de uma educação que não ensina para a cidadania, de um lugar onde direitos - inclusive os direitos humanos - são desrespeitados, em que saúde, violência, violência policial, desemprego são preocupações permanentes, onde a desigualdade social é absurda e ainda assim defendida.
15 de março foi isso: atiçados pela Grande Imprensa, por formadores de opinião absolutamente desqualificados pro debate público, pelas redes sociais que espalham o ódio e a boçalidade a um ritmo impensável, um milhão de pessoas foram às ruas do país bramir contra Judas, por mais que não houvesse Cristo.
E como conseguiram juntar um milhão de pessoas (a maioria devia se dizer cristão, ainda por cima) para uma passeata de ode ao ódio? Porque a estrutura do estado de excessão montada pelos militares não foi alterada: da propriedade dos meios de produção e seus oligopólios, em especial o oligopólio da mídia - a rede Globo é o veículo oficial da ditadura e dos interesses que ela representou -, à estrutura educacional, que não apenas não ensina a pensar como desestimula o pensamento e o raciocínio - e estou falando das escolas particulares, fascistóides como colégio Bandeirantes, Fundação Bradesco ou as franquias para vestibular. Foram trinta anos que passamos brigando por direitos fundamentais e acabamos por não conseguir mexer nas estruturas da nossa sociedade desigual, corrupta, injusta, inepta: torturas militares continuam, execuções extra-judiciais são rotina ("você também pode dar um presunto legal"), a intolerância recrudesce, o ódio aumenta, os donos do poder permanecem os mesmo - os faxineiros também -, a democracia consiste em votar a cada dois anos (na ditadura também tinha eleição), o raciocínio louvado pelos donos da voz e da grana ainda é o da lei de Gérson. 
A principal mudança, mudança radical nesses trinta anos, parece ser que os mitos vão caindo, e o Brasil vai mostrando suas verdadeiras faces. Algumas delas me orgulham, outras me enojam. Sete a um foi é pouco.

17 de março de 2015.

domingo, 15 de março de 2015

O Quarto Poder para além do Estado Democrático de Direito no Brasil

Do século XV ao século XVIII a burguesia, ao mesmo tempo que financiou, se utilizou do Estado pré-burguês – as monarquias absolutistas de união nacional – para deitar as bases para seu crescimento e para a consolidação da sua influência e do seu poder. Uma vez certa do seu poderio, a burguesia pôde, finalmente, tomar o Estado, de forma a não ser mais seu principal financiador, assim como fazê-lo servir aos seus interesses. A grande preocupação na implementação desse novo Estado burguês foi que ele fosse forte o suficiente para controlar a turba (que se mostrava pela primeira vez ferramenta útil e eficiente para convulsionar Estados), mas não o bastante como o era o anterior, capaz de prejudicar o bom andamento "natural" dos negócios. Ou seja, um Estado, sim, forte, mas limitado – garantidor da ordem e respeitador da declaração dos direitos do homem e do cidadão.

Dentro dessa lógica de controle do Leviatã, ganha destaque o modelo mais bem apresentado por Montesquieu, em fins do século XVIII, da divisão dos três poderes – legislativo, executivo, judiciário –, criando assim um sistema de pesos e contrapesos garantidor de um equilíbrio entre os poderes estatais que pode não ser perfeito, mas ao menos evita o perigo de arroubos despóticos do executivo. Tal modelo tripartite, cuja justificativa ainda hoje é essa de equilíbrio entre os poderes, pode ter funcionado realmente conforme proposto enquanto os cidadãos eram apenas uma pequena parcela do povo. Conforme o populacho foi conseguindo adentrar no sistema político, sem que este se adaptasse à nova realidade, dando peso desiguais ao voto dos desiguais – como desesperadamente propunham os liberais, crentes de que o povo ignaro, inculto e incapaz iria utilizar desse poder injustamente ganho para usurpar legalmente a propriedade alheia, tal qual hoje a classe-média burra-porém-diplomada fala do Bolsa Família –, esse equilíbrio entre os poderes foi também se alterando. Quando, finalmente, o Estado foi adquirindo a forma necessária para atender aos desejos da burguesa, com o cidadão sendo identificado primeiramente com o eleitor, o aumento quantitativo destes implicou também na sua mudança qualitativa, surgindo o fenômeno da chamada democracia de massas. Nesta, o legislativo deixou de ser um contrapeso ao executivo, sendo antes um freio a ele. O governo da maioria é o governo da fração que possui o controle de toda a máquina representativa do Estado, executivo e legislativo, sendo a cisão dessa representatividade, a divisão real dos poderes, vista como a paralisia da administração. Esse freio é feito via oposição parlamentar, em especial pela necessidade de maioria qualificada em matérias fundamentais. É assim no Brasil com seu executivo hipertrofiado. Mas é assim também nos parlamentarismos europeus, em que executivo e legislativo estão umbilicalmente ligados. É assim nos EUA, em que o aparente sistema de contrapesos implica antes no imperativo de maioria do partido que controla o executivo tê-la no legislativo.

É de se questionar se apenas essa oposição parlamentar é capaz de frear a maioria. Institucionalmente, é claro que sim. Porém me parece haver um outro elemento capaz de influenciar a disputa entre os poderes de situação e oposição: o da comunicação de massa – que mesmo estando no século XXI, ainda se apresenta como "opinião pública".

A comunicação de massa surgiu pouco depois da democracia, mas é fruto da mesma sociedade de massas. Como a democracia, trouxe profundas mudanças nos hábitos e parece ter tido uma influência muito mais profunda. “Me parece” porque não sou entendido nos assuntos, e é claro que, bombardeado pela indústria cultural, é difícil não aceitar sua versão de que ela foi muito penetrante. Tendo a aceitá-la, mas não me comprometo tão cegamente.

Não falo aqui da opinião pública do século XIX, temida por Stuart Mill, por ser capaz de dar poder à massa para que esta pressione politicamente – já não bastasse a turba poder votar de igual para igual! Opinião pública, tal como é usada pela indústria cultural nos séculos XX e XXI, é uma sutil corruptela daquilo que foi teorizado no início do Estado Moderno e Contemporâneo, muito útil aos propósitos dos donos do poder – não só do Brasil, que fique claro.

Desde o início opinião pública tem ligação com a idéia de sociedade civil e, assim como esta, tem sido empobrecida em favor de uma noção de mercado - um empobrecimento paralelo não poderia deixar de acontecer com o conceito de opinião pública. Ora, no mercado não há opinião pública simplesmente porque não há a noção de Público. Ademais, mercado não tem opinião, tem apenas o pensamento utilitário de maximização de utilidades.

Partidos políticos, originalmente espaços de discussão e formação de opinião, há muito – uns cento de cinqüenta anos – são prioritariamente espaços de formação de quadros burocráticos – atualmente apenas isso. No espaço privado, a discussão é cortada pelo calaboca! da tv e agora da internet. Calaboca! necessário para evitar questionamentos não somente ao conteúdo como ao próprio meio, o que poderia perturbar o trabalho de adestramento e amansamento público.

Já a imprensa, dada sua estrutura industrial, unidirecional, não-dialogal, hierárquica, burocratizada – tanto quanto o Estado –, ao se arrolar o papel de formadora e divulgadora da opinião pública tem razão em assim afirmá-lo apenas na medida em que opinião pública passa a significar a opinião da mídia, a opinião de um segmento muito pequeno da sociedade, com interesses muito específicos, precisos, e nada interessados em dar voz à sociedade civil, a vozes destoantes. Em suma, em nada interessados em tornar o que eles chamam de opinião pública próximo daquilo que de fato significa opinião pública – e que é o conceito com o qual eles dizem trabalhar e que nos forçam a engolir.

Bem, nada de novo até aqui. E provavelmente nada de novo a partir daqui. Tudo tão gasto quanto as novidades da indústria cultural.

Indústria que desde a década de 1920 tem um poder fortíssimo – Hitler seria o melhor exemplo dessa época, porém não o único –, mas que só a partir da década de 1960 não conseguiu mais disfarçar sua hegemonia – o marco é a eleição de John Kennedy nos EUA.

Apesar de ser uma indústria, a indústria cultural guarda importante diferença para as demais – ao menos no que aqui nos interessa. A indústria automobilística em boa parte do século XX, e a indústria financeira desde o último quartel do século passado, são as indústrias motrizes do sistema capitalista. Isso não as impede, claro, de correr o risco de quebrarem – por culpa delas, como a crise de 2008, ou de terceiros, como as crises do petróleo na década de 1970. Quebras que não ocorrem de fato, porque o Estado é avalista dessas indústrias, por uma singela questão de auto-sobrevivência. E no caso da mídia, o que ocorreria no caso da quebra da indústria cultural? Eis uma pergunta que não faz sentido: apesar de ser uma indústria, não parece haver possibilidade de quebra, nos moldes das demais indústrias, porque o papel da mídia no jogo de forças de sociedade é outro. Nestes tristes trópicos, por inabilidade, ela acabou escancarando que outro papel é esse nos últimos anos, e o fez de maneira grosseira nas últimas eleições: é o que tentarei tratar a partir de agora, me atendo ao caso brasileiro. Antes, um parênteses: outra indústria que não quebra é a bélica, por razão similar à da cultural.

Com base nos ensinamentos de Goebbels, a mídia conseguiu construir uma mitologia acerca de si mesma – especialmente para seu braço chamado jornalismo –, de que é porta-voz da opinião pública (o conceito do século XIX), e que com base nos interesses da sociedade civil (que ela sabe melhor do que ninguém) fiscaliza o governo e o Estado. O Quarto Poder, como ela mesma se nomeia. E está correta. Mais correta do que admite quando pressionada. 

As últimas demonstrações da Grande Imprensa deixam à mostra que se trata realmente de um poder institucionalizado de fato – como o Executivo, o Legislativo, o Judiciário –, ainda que não de direito. E a briga desse Quarto Poder é justamente poder permanecer à margem da lei – o que significa, na prática, acima dela. Há, claro, uma série de leis e regulamentos que recaem sobre a imprensa, a mídia, o jornalismo, pondo-os sob o Estado Democrático de Direito. Ocorre, porém, que ao ignorar o real poderio desses veículos, a real função na sociedade, o estatuto de fato no jogo de forças e no equilíbrio entre os poderes, o Quarto Poder acaba por se tornar um poder independente, paralelo, “auto-regulado”, além do Estado Democrático de Direito, na prática acima da Constituição Federal.

Os exemplos do poder da imprensa tupiniquim e de como se imiscui nos outros poderes são fartos. Proconsult e Collor são exemplos de como se interfere (ou tenta-se) nas eleições, logo, no legislativo e no executivo diretamente – para não falar indiretamente, como nos arrastões de 1992, ou em reportagens de capa da Veja. Escola Base, caso Nardoni e caso goleiro Bruno, são exemplos do quarto poder assumindo o poder legislativo e judiciário: queda do princípio da presunção de inocência e julgamento “sumário em capítulos” ou novelesco (todo mundo sabe o final, mas vai enrolando para ter audiência e garantir a venda de espaço publicitário): nestes casos mais recentes tem-se mostrado impossível ao poder judiciário inocentar, mesmo que não haja provas suficientes para incriminar os suspeitos, porque a imprensa, com base na “opinião pública”, já incriminou os culpados. Ponto, está decidido. No primeiro caso, ainda que a justiça – anos depois – tenha notado o equívoco do julgamento da imprensa, a polícia da imprensa – o povo – já havia destruído a escola, e a vida dos donos havia sido bastante prejudicada pelo fato não-acontecido-mas-a-imprensa-disse-logo-aconteceu. Pode-se entrar na justiça pedindo direito de resposta. Uma palavra contra mil imagens, de que vale? Se apareceu na Globo.

Toda tentativa de dar à imprensa um estatuto legal condizente com seu tamanho, contudo, é encarado por esta como tentativa de censura, um retorno à época da ditadura, o aflorar de idéias stalinistas que perduram na esquerda que domina o subcontinente sul-americano. Curiosamente, dos principais veículos da Grande Imprensa alérgicos a qualquer regulamentação externa, dois deles foram entusiastas apoiadores do golpe militar de 64, Folha e Estadão – se hoje reescrevem sua história, a la 1984, é outra história. O outro, é quase uma BBC brasileira – porém para-estatal e sem a mesma qualidade –, criada já tendo em vista a força estratégica do quarto poder: a rede Globo de televisão. Somente a Veja não esteve nessa festa, mas que com o tempo, por conta própria, se tornou uma revista neofascistóide (com as peculiaridades que haveria num fascismo do século XXI, o qual mereceria um novo nome, deveras). Na América do Sul, Cháves se mostrou um ditador ao fazer uso de prerrogativas constitucionais ordinárias e não renovar a concessão pública de uma emissora de tv. Os Kirchner, na Argentina, há muito mostram seu caráter autoritário ao bater de frente com a imprensa – característica do casal, que fez o mesmo com os militares, por exemplo. No Brasil, todo e qualquer questionamento de uma autoridade pública à imprensa é tentativa de censura. A criação do Conselho Federal de Jornalismo foi uma tentativa de censura sem paralelos na história da humanidade e sem direito a ser discutido – deveu simplesmente ser combatido. A criação de uma tv pública pelo governo federal foi considerada como absurdo sem tamanho – enquanto PSDB deixar a qualidade da TV Cultura definhar por conta de ingerência política na emissora não é problema. A pulverização do orçamento publicitário do governo federal, antes concentrado na Grande Imprensa, foi outro sinal de ingerência em assuntos que não competiam ao executivo. Por fim, vem agora o ataque do legislativo ao quarto poder, por intermédio do Controle Social da Imprensa, tentativa de censura que partiu de deputados “stalinistas do PT”, como já denunciou em editorial o jornal Valor Econômico, e que teve início no Estado do Ceará e vem se alastrando por todo o país – inclusive um deputado stalinista do DEM de São Paulo fez proposta similar. Veja a audácia: executivo e legislativo se unindo para calar a voz do povo! Curiosamente, toda tentativa de discussão que o governo abre, a Grande Imprensa democraticamente se recusa a participar. E toda auto-regulação o governo democraticamente não tem o direito de passar perto.

Tudo isto é muito novo no Brasil: de 1964 a 2002 não houve conflito grave de interesses entre os poderes. A única tentativa, a criatura contra o criador, Collor, não conseguia sequer agir em nome do poder executivo. Assim, as eleições este ano no Brasil, principalmente a presidencial, além de uma disputa entre partidos e entre egos – porque entre projetos de país e mesmo de governo, essa disputa foi bem marginal –, acabou assumindo também – e de maneira consideravelmente visível – a disputa entre poderes. De um lado o poder executivo, do outro, o quarto poder da Grande Imprensa – nada muito diferente dos últimos oito anos, em suma. A imprensa muito criticou Lula por este não ter seguido a liturgia do cargo, e saído pelo Brasil fazer comício junto com sua candidata. Não nego que Lula adora um palanque, coisa que FHC não era tão afeito: preferia uma tribuna, um jantar solene, uma honraria qualquer no primeiro mundo. Mas FHC só seguiu a tal liturgia do cargo em 2002 porque ninguém além de Ruth Cardoso queria ele por perto – e isso porque ela não era candidata. Deixemos de lado o palanquismo do presidente, e nos centremos na presença dele na imprensa, ou como a imprensa lidou com a presença dele na eleição. Me centro no episódio da bolinha de papel.

A reação exagerada do candidato da oposição, não precisava falar, foi patética – quase teve um traumatismo craniano por causa de uma bolinha de papel? Nem FHC mandando o exército fazer exercícios com ovos chegou ao mesmo nível. Covas, com a cabeça sangrando por causa de uma paulada, não fez drama parecido, se recusou a se vitimizar desse tanto. Porém, mais impressionante foi a dimensão dada ao episódio: mais de uma semana de noticiário sobre, com microfones abertos ao ferido acusar livremente o partido adversário de inimigo da diferença, da democracia, da liberdade, da ordem, da paz social – um passo para o fascismo, em suma. Episódio parecido ocorrido com Dilma, o dos balões d'água em Curitiba – cidade que congrega vários grupos neonazistas, diga-se de passagem e sem relação –, mereceu bem menos destaque. Curiosamente, Lula foi um dos personagens que fez questão de que o episódio seguisse em relevância. Havia, por um lado, o cálculo político de expôr Serra ao ridículo por mais tempo, e este não poderia voltar atrás, deveria reiterar sua versão, sua vitimização por conta de uma bolinha de papel. A Grande Imprensa, contudo, fez marcação serrada (com o perdão do trocadilho) no presidente. Não lembro qual foi a comentarista de política (ou era de economia?) da CBN que disparou que o presidente, tendo traquejo no lidar com a mídia, deveria maneirar no tom de agressividade, que não cabia a ele fazer o tipo de crítica que vinha fazendo nem ao candidato Serra nem à cobertura do episódio. A nada imparcial Eliane Cantanhêde, da nada imparcial Folha de domingo, 24 de outubro, fez a mesma crítica: Lula não deveria ter dito nada sobre o episódio – outro fato que só faria com que saísse menor do que entrou na eleição. Para a Grande Imprensa, essa é a versão: um presidente diminuído por ter feito sua candidata vencer. Para a vida para além do quarto poder, a história muda um pouco.

Não que Lula não erre, não possa ou não pudesse cometer erros. Mas ele está escolado demais para erros tão grosseiros a uma semana da eleição, sendo O pilar de sustentação de uma candidata que disputa contra um candidato que tem toda a máquina do quarto poder a seu favor – como Collor tinha em 1989 contra ele. "Nunca o povo foi respeitado como agora, e a gente não pode jogar isso fora por um bando de mentira que está sendo contado (...). É uma vergonha a farsa que tentaram jogar na cabeça do povo”. Lula não acusou diretamente Serra de armar uma farsa, porque se tratava de um recado para Globo, Folha, Veja e companhia: “povo avisado de que foi tentada uma farsa, em eventual nova tentativa, não será preciso convencer ninguém, basta dizer 'eu já havia avisado daquela farsa, e está aí uma nova prova de tentativa de golpe nas eleições, porque eles não querem o povo no poder'”. O quarto poder teve que engolir o andamento normal da eleição, sem um novo Xerife Tuma como diretor de figurino de seqüestradores ou nova antológica edição no Jornal Nacional do último debate para, democraticamente, tentar alterar o resultado.

Porém, fica a pergunta: se Lula é tão sagaz no seu trato com a imprensa (ao menos após a derrota de 1998, ele, que já sabia fazer bom uso do palanque, aprendeu a dominar de maneira impecável o palanque eletrônico), por que não conseguiu segurar a Grande Imprensa durante seu governo? Por que o quarto poder segue como um poder extra-legal? Por que não fez aquilo que falou que era imprescindível fazer com relação à imprensa, em 1993, no documentário Beyond Citizen Kane?

Vejo durante o governo Lula um jogo um tanto ambíguo com relação à imprensa. Parece haver uma estratégia de longo prazo para diminuir a concentração de mídia no país e colocá-la sob o manto legal. É, como disse, uma estratégia ambígua, um tanto medrosa, outro tanto sutil (e esperta) – e conservadora, de qualquer forma. Começa com o privilégio que Lula desde sua primeira entrevista deu à Rede Globo. Segue que dois de seus ministros das telecomunicações – Miro Teixeira e Hélio Costa – tinham fortes ligações com os Marinho. O Conselho Federal de Jornalismo foi uma das poucas, se não a única grande tentativa positiva do governo de limitação não da mídia, mas do seu braço jornalístico. O que houve foram ações de fortalecimento da pequena e média imprensa, da mídia alternativa, da mídia local. Isso implica em certa perda de poder da Grande Imprensa, mas não é democratização da informação ou da mídia, visto que essa mídia, via de regra, pertence a pequenos coronéis locais – salvo a imprensa alternativa da internet, mas este é um caso complexo. Também as concorrentes televisas da Rede Globo ganharam fôlego do governo federal – tudo via pulverização da publicidade oficial. Além de diminuição do poder da rainha do quarto poder sobre a sociedade toda – Band e Rede TV!, por exemplo, não boicotaram a Conferência Nacional de Comunicação, a primeira, inclusive, não se opôs ao Conselho Federal de Jornalismo –, são medidas que permitirão aos poderes executivo e legislativo, quem sabe, enquadrarem o quarto poder ao Estado Democrático de Direito. Nada revolucionário, nada questionador do status quo, nada que prejudique sobremaneira a indústria cultural instalada no país ou a que ainda vai se instalar – ao contrário do que acreditam e ainda apregoam boa parte de militantes ou apenas deslumbrados com o PT. Afinal, trata-se de um partido institucionalizado e bem adaptado ao sistema. Pode ter objetivos reformistas de melhorias sociais e maior democracia – tudo dentro do que está estabelecido. Porque medidas fora dos parâmetros significa dar um tiro no próprio pé, atacar o próprio sistema que o sustenta. E o quarto poder é parte que sustenta o próprio PT.

Quando Veja, Folha, Globo, Estadão e tantos outros estampam em suas capas e manchetes de domingo que as tentativas de regulação e enquadramento da Grande Imprensa vão favorecer o PT, estão corretos. Porém mente quando dizem quem perderá com isso. A liberdade? A democracia? Sejam menos hipócritas! Eles, apenas: os Marinho, os Civita, os Frias, os Mesquita, os Saad, os Abravanel, os Magalhães, etc. E a nós, o povo, o populacho, favorecerá ou prejudicará? Não sei dizer ao certo, fica ao critério do consumidor decidir o que acha. Ao menos teremos mais opções de mentiras para escolher.

publicado originalmente na revista Casuística. artes antiartes heterodoxias. Edição 101 (janeiro de 2011). pp 93-97. www.casuistica.net

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

PSDB, choque de gestão, gestão de choque e omissão de notícias

Um dos bordões mais usados pelos políticos do PSDB é o tal "choque de gestão". Acompanhando as recentes notícias nos estados e rememorando alguns governos de antanho, começo a perceber com mais clareza que o tal choque de gestão tucana é antes uma série de fios desencapados ao alcance do cidadão do que uma blitzkrieg na forma como o Estado é governado.
Fernando Pimentel, em Minas Gerais, reclama da herança maldita de vinte anos de tucanos à frente do estado. Alguém pode dizer que é retórica vazia copiada do ex-presidente Lula; convém lembrar, contudo, que a inflação - esse mal impiedoso que Leitões da vida falam como se fosse a única importância do mundo - estava acima de doze por cento quando o PT assumiu o governo federal. No Paraná, bastaram quatro anos para que Beto Richa montasse a bomba que explodiu em seu próprio colo. Tem agora menos de quatro anos para evitar que aconteça com ele o partido no estado o que aconteceu com o PSDB gaúcho após o choque de gestão da ex-governadora Yeda Crusius: o quase desaparecimento da legenda, agora com um deputado federal e quatro estaduais. Isso para não falar no estado mais rico da federação, em que o partido tenta se tornar um mini-PRI, sobrevivendo graças ao conservadorismo xenófobo da classe média do centro paulistano e dos grotões agrícolas do interior.
Será mesmo o PSDB tão inapto à gestão da coisa pública?
Em dois mil e um, com uma estiagem bem menos severa que a atual, em que sequer se levantou a possibilidade de racionamento de água nos grandes centros urbanos do sudeste, o país teve racionamento de energia, afetando a produção e o emprego - era o sétimo ano do governo de FHC. Agora, em dois mil e quinze, em São Paulo e no Vale do Jequitinhonha, no semi-árido mineiro, a pouca chuva é assunto recorrente. A diferença está que o paulistano não sabe se terá água, até quando e em quais condições, enquanto o morador do "vale da miséria" não tem esse tipo de preocupação: água limpa para beber e cozinhar está garantida, graças a um programa simples e barato de cisternas do governo federal petista. O governo de Minas era alertado há três anos pelos industriais sobre a iminência de uma crise hídrica. Em São Paulo o assunto também não era desconhecido, mas nem Anastasia, nem Alckmin fizeram qualquer coisa. É desse misto de omissão, incompetência e falta de transparência do governo paulista que um surto de dengue atinge na capital e o risco do cólera volta a preocupar os responsáveis pela saúde pública.
Curiosamente, a crise hídrica e o iminente racionamento de água em São Paulo só começaram a ser noticiados com um pouco mais de ênfase pela Grande Imprensa quando se levantou a possibilidade (por ora pouco provável) de racionamento de energia. Uma série de reportagens já mostraram e demonstraram todas as perdas que a indústria e o país terão no caso de um racionamento de energia, fruto do descalabro do governo petista. Ah, sim, no canto da página do meio de um caderno também se noticia que caso haja desabastecimento temporário de água em São Paulo podem ocorrer algumas externalidades negativas.
Ok, a gestão de choque dos tucanos é marcada por falta de planejamento, corrupção (a corrupção na Petrobrás, conforme um dos delatores da operação Lava-Jato, teria começado no primeiro mandato de FHC), desemprego, aumento de impostos, aumento de juros, crise na educação e na saúde, colapso da segurança pública, mas deve haver algo positivo feito em benefício da população.
Leio hoje na internet que em breve os estudantes da rede pública terão bilhete gratuito nos trens da CPTM e Metrô. Uma ótima notícia, sem dúvida! Entretanto, o PSDB levou vinte e quatro anos (!), mais ou menos uma geração, para tomar essa medida simples e só o fez depois que Haddad implementou para os ônibus. O mesmo vale para o bilhete único mensal: foi depois de Haddad ter posto em prática nos ônibus que o governador criou para os trilhos. Ah, sim, o bilhete único: outra boa medida do PSDB tomada só depois de implementada pelo PT (com a Marta).
É de se perguntar: se o PSDB é tão desastroso assim no comando dos postos executivos, como pode seguir ganhando eleições? Primeiro que há parcelas da população que saem ganhando - em geral uma minoria bem abastada. Segundo, que essa minoria bem abastada e satisfeita é amiga dos reis da comunicação - se não for ela mesma a sentar no trono. Seus porta-vozes estão vinte e quatro horas defendendo quem sempre defende seus interesses - os cristãos-novos do velho arranjo das oligarquias brasileira e internacional, esses podem pagar a penitência que for, dar as costas aos seus eleitores, que não são agraciados com a graça divina dos barões da mídia. Daí toda a notícia negativa ser culpa do PT e o PSDB aparecer sempre como o partido comprometido com a resolução do problema (divino, porque sempre se omite que foi o próprio partido quem o criou). Terceiro, porque há um preconceito de classe que desde a ascensão do PT ao poder federal faz a parte abastada da sociedade se roer de raiva, fazendo de forma cada vez mais agressiva - do ex-presidente por não ter curso superior (equivalente a analfabetismo) à presidenta por, por... porque sim -, deixando transparecer o ódio - estimulado pelos âncoras e comentaristas rádio-televisos - e pondo por terra a tese do brasileiro cordial, tão-logo a senzala usou o elevador social pela primeira vez (alguém lembra o alvoroço da Veja quando as domésticas ganharam direitos trabalhistas?).
Por fim, às acusações de que eu seria petista, que já antevejo, não nego simpatia muito maior pelo projeto do Partido dos Trabalhadores ao do Partido da Social Democracia Brasileira, porém tirando dessa relativização, sou crítico do PT, que me parece um partido mais interessado no discurso do que na prática em realizar mudanças profundas na estrutura social do país - Lula disse em algum canto que a mudança que ele fizera era a que o Brasil permitia sem cair em novo regime de exceção. Me parece que às vezes vale tensionar e tentar ir além dos limites aparentemente impostos.

23 de fevereiro de 2015.