Até
esta semana havia conhecidos que mantinham sua capacidade de reflexão
e pensamento em um nível mínimo para não serem confundidos com um
papagaio ou um cão adestrado, e que não estavam de todo convencidos
de que se articulava um golpe jurídico-policial-midiaresco contra a
presidenta e o Partido dos Trabalhadores. Não eram ingênuos a ponto
de acreditar que todo o mal do Brasil e da Terra tem origem, meio e
fim no PT, mas achavam que a idéia de golpe era teoria conspiratória
- as evidências do golpe eram evidências, não provas, diziam. No
máximo admitiam que havia uma cobertura desproporcional contra o PT,
que seria justificada pelo fato de ser o partido no poder federal - o
fato do PSDB ser poder estadual em São Paulo e ter acusações mais
graves que as contra o PT, que em mais de vinte anos de prevaricação
desviaram mais milhões do que as petistas, isso nunca entrou na
conta.
Não
os culpo de todo: o monopólio das concessões de rádio e TV por
parte de algumas poucas pluto-famiglias, verdadeiras máfias
espetaculares (ou pós-modernas, apesar de serem-na desde quando não
se ia além da Modernidade), impede o desenvolvimento da democracia -
em que o contraditório é condição necessária - nestes tristes
trópicos: convivendo num meio em que as pessoas se limitam a
assistir a Globo e afins, ouvir Band e CBN, ler Folha, Estadão, Veja
e congêneres, é-se bombardeado a cada cinco minutos com notícias
do "descalabro" da nação perpetrada por petralhas,
comunistas, negros, nordestinos, ateus, putas, gays e favelados de
toda sorte, de modo que não há como não ser convencido da sua
verdade - a Grande Imprensa tem Goebbels como seu Manual de Redação
-, ainda que a esses seres pensantes mal localizados seja perceptível
certo exagero.
A
situação mudou radicalmente de figura nesta sexta, dia 4 de março,
com a condução coercitiva do ex-presidente Lula. A partir de então,
não aceitar de que há uma tentativa de golpe de Estado em curso é
burrice grande, ou má-fé exagerada. Má-fé do nível da do juiz
Sérgio Moro, que hipocritamente justifica que visava com isso
preservar a imagem do ex-presidente - afinal, é claro que a imagem
de um dos principais líderes do Brasil de todos os tempos (concorde
com ele ou não) sendo buscado em casa pela polícia não tem nenhum
simbolismo.
Má-fé
que tem pautado a operação Lava Jato e sua cobertura desde o
início: prisões preventivas sem fim com o intuito de assinar uma
delação premiada em troca de afrouxamento da pena - apesar de ainda
não ter havido julgamento para que houvesse pena -; delações
sigilosas aos advogados de defesa mas que são de conhecimento da
Grande Imprensa; aviso prévio à imprensa sobre a prisão de Lula -
como deixou claro o tuíter do editor do panfleto semanário Época,
Diego Escosteguy -; descarte de toda evidência, ou mesmo prova, que
atinja políticos ligados ao PSDB ou aos partidos de oposição -
ignorando, inclusive, que FHC admite explicitamente em seu livro
Diários da Presidência que sabia da corrupção na Petrobrás
desde 1996.
Não
adentro as evidências contra Lula alardeadas pelo juíz Moro e pela
Grande Imprensa, afinal elas são meras formalidades em busca de um
pretexto que justifique o golpe.
Um
dos argumentos que tenho ouvido e lido tudo o que está acontecendo é
amparado pela lei, logo, não é golpe. Para esse sofisma, convém
rememorar que em 1961 o Congresso aprovou o golpe de Estado
(super-brando, diria a Folha de São Paulo?), com a mudança do
regime de governo o país de presidencialismo para parlamentarismo -
ou seja, um golpe feito dentro da mais estrita legalidade. Um exemplo
mais recente, ainda que adventício: Fernando Lugo foi afastado da
presidência do Paraguai, em 2012, em processo legal de impeachment,
que durou 24 horas e não enganou ninguém.
Mesmo
sem aprovar mudanças constitucionais oportunistas e sem extrapolar
as leis, abuso de direito é tipificado na nossa legislação, no
artigo 187 do Código Civil: "comete ato ilícito o titular de
um direito que, ao exercê-lo excede manifestamente os limites
impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa fé ou pelos bons
costumes". Sérgio Moro está descaradamente excedendo os
limites impostos pela lei, a ponto do ministro do STF Marco Aurélio
Mello, que está a anos-luz de distância de ser petista, se
assombrar com o destempero do juiz paranaense. Disse o magistrado a
Monica Bergamo: “só se conduz coercitivamente, ou, como se dizia
antigamente, debaixo de vara, o cidadão que resiste e não comparece
para depor. E o Lula não foi intimado". Ele compara a ação de
Moro à dos justiceiros - ou seja, à dos capangas que faziam a lei
do coronel imperar nos sertões do país nos séculos XIX e XX, ou
dos esquadrões da morte da segunda metade do século XX; nada mais
longe do Estado de Direito, portanto.
Não
é o que entende a Grande Imprensa. A colunista Miriam Leitão,
arauta de seus chefes, comemorou que não haveria mais intocáveis no
país. Primeiro que há aí uma mentira: a Grande Imprensa, para a
qual ela trabalha e que se orgulha de ser o "quarto poder"
da república (tem falado pouco nesse assunto, desde que começaram
as pressões pela sua regulamentação legal), resiste a qualquer lei
que vise enquadrá-la no arcabouço democrático e de direito, de
modo que é intocável pelas leis. Segundo que a questão não é
estar acima da lei: o que ficou evidente na fase Aletheia da Lava
Jato é que o juiz Moro veste toga mas age à margem da lei (a
exemplo de seu modelo, o ministro Gilmar Mendes, figura das mais
nefastas da história recente do Brasil). O argumento de que isso
seria preciso, pois de outra forma os acusados conseguiriam dar um
jeito de prejudicar as investigações, ou que já há provas
suficientes para medidas mais drásticas, é uma falácia das mais
perigosas. Que o diga o dramaturgo Nelson Rodrigues, por oito anos
grande entusiasta do golpe civil-militar de 1964 - o que significa
também aprovar prisões extra-legais, torturas, desaparecimentos e
ações do gênero -, até ter seu próprio filho preso e torturado
pelos militares, em 1972. Só então ele se deu conta que fora do
Estado Democrático de Direito todo mundo é potencialmente um
inimigo prestes a ser abatido. Marco Aurélio Mello deixou isso claro
na sua entrevista: “o atropelamento não conduz a coisa alguma. Só
gera incerteza jurídica para todos os cidadãos. Amanhã constroem
um paredão na praça dos Três Poderes”. Ironia: a direita
brasileira, que grita vai para Cuba, e acusa o regime da ilha de
assassinar opositores, é quem se aproxima de construir um paredão
bem aos moldes do que ela diz haver em La Havana.
Dia
4 de março de 2016 é, portanto, um ponto de inflexão nesta crise
institucional brasileira. Infelizmente, neste momento não é
possível permanecer neutro: não se trata de disputa entre esquerda
e direita, entre governo e oposição; é disputa entre democracia e
ditadura, entre Estado de Direito e Direito de Estado - no primeiro,
todos, inclusive juízes, procuradores, políticos, presidentes,
governadores, donos de emissoras de tevê devem se submeter às leis;
no segundo, o Estado, na figura de seus representantes políticos,
judiciais, policiais ou militares tem direitos sobre os cidadãos que
julguem inconvenientes ao "serviço do Brasil" (para usar o
lema de um jornal golpista), e não precisam se submeter às mesmas
leis que as pessoas comuns.
Dói
ter que defender o governo Dilma: um governo que entrega o petróleo
a multinacionais, que não faz reforma agrária, que aumenta juros
para benefício de uma minoria, que aprova lei anti-terrorismo, que
não altera nenhuma estrutura do país, beira o indefensável.
Contudo, é preciso defender a democracia - sistema que permite não
só que esse projeto de governo não perdure para além de quatro
anos, como que permite que a pressão das ruas impeça a tomada de
medidas que prejudiquem o grosso da população -, e neste ponto
crítico defender a democracia é defender o mandato da presidenta.
Entretanto, ao garantir a democracia política-formal, não é
possível se acomodar: é preciso pressionar por reformas que
implementem uma democracia de fato, a começar pela democratização
da mídia. Ou então teremos crise institucional toda vez que os
interesses dos poderosos do Brasil e do mundo foram minimamente
contrariados.
06 de março de 2015.
Imagem do justiceiro Moro achada na internet. Fica a dúvida: o que significa "todos"? |
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