Fracasso.
É essa a sensação que me abate, depois de uma noite mal dormida e
um dia mal acordado, ainda atordoado com os acontecimentos recentes
do país. Fracasso. Eu fracassei, você fracassou, eles fracassaram,
nós, nós fracassamos. Ainda que o golpe encabeçado pela Rede Globo
seja revertido por Lula - com apoio dos movimentos sociais e das
pessoas democratas do país -, o que resta deste episódio - cuja
última cartada foi o atendimento à conclamação, por parte de um
casal de ventríloquos biltres e canastrões, do homem-gado e da
mulher-vaca para tomar a Avenida Paulista, em louvor ao fato de um
justiceiro togado ter escarrado sobre as leis do país e sobre os
direitos individuais - é a certeza de que o Brasil fracassou, de que
nós fracassamos. Fracassamos enquanto nação, pois, tal qual nos
últimos 516 anos, uma parcela majoritária da população segue
invisível aos donos do poder, que apregoam que "todos os
brasileiros" estão cansados disso e daquilo. Fracassamos
enquanto Estado de Direito, ao permitir que presidente da República
seja grampeado por qualquer juiz de província. Fracassamos enquanto
Estado de Direito também quando o judiciário - juízes, promotores,
analistas, técnicos - vestem preto como a milícia de Mussolini e
tiram uma foto para defender que a constituição fique à mercê do
casuísmo de ocasião de um grupo de plutorepresentantes. Fracassamos
enquanto Estado de Direito quando um juiz da corte suprema do país é
um coronel que usa o cargo para fazer proselitismo político e
demonstra tanto apreço pelas pessoas, pela Constituição e pela
justiça do País quanto Franz Gurtner na Alemanha Nazista.
Fracassamos. Fracassamos
enquanto país capitalista, ao vivermos de fato em uma sociedade de
castas, com baixíssima ascendência social à casta dos donos do
poder e do dinheiro, os primeiros encrustados na burocracia do
Estado, cujos cargos são hereditários (por meritocracia, claro), os
segundos encrustados nas entranhas do poder, feito chopins atrás do
tico-tico (e eu custo a entender porque Macunaíma matou o
tico-tico), a viver de concessões públicas, rendas do Estado,
quando não de pilhagem pura e simples (mas tornadas legais pelos
seus representantes legislativos, claro). Fracassamos
enquanto civilização, ao formarmos milhares de doutores analfabetos
e absolutamente incapazes de pensar, que dirá de refletir.
Fracassamos ainda mais enquanto civilização ao querermos comparar
pessoas com base em seus títulos burocráticos e não em sua
inteligência, competência e respeito pela coisa pública, seu
respeito e seu tato com o Outro. Fracassamos enquanto democracia ao
deixarmos grande parte do povo sem direito a voz. Fracassamos
enquanto democracia quando parte desse povo decide falar e
reivindicar e é recebido a balas de borracha, bombas de gás,
cacetetes, prisões arbitrárias por uma Polícia Militar autorizada
a execuções extra-judiciais pelo governador do Estado - isso quando
nosso Estado Democrático de Direito não deixa essa tarefa a
jagunços e pistoleiros. Fracassamos enquanto Estado quando este se
mostra muito aquém do crime organizado na sensibilidade às questões
sociais e à distribuição equânime da justiça. Fracassamos
enquanto democracia quando a Rede Globo comete sete golpes brancos à
democracia em trinta anos (para ficarmos nos escancarados, sem
possibilidade de dúvidas, 1982, 1984, 1989, 1994, 1998, 2005-2012,
2014), até que se cansa e parte para o golpe aberto, com Sérgio
Moro como ator principal. Fracassamos enquanto democracia quando
apenas uma geração é suficiente para parte do país esquecer o
horror de uma ditadura (eu e meu irmão estamos na casa dos trinta
anos, nascemos na transição da ditadura para essa nossa democracia
capenga, e somos obrigados a conviver com um golpe de Estado!).
Fracassamos enquanto civilização ao ver os tais homens e mulheres
de bem defenderem o pau-de-arara, numa completa alienação da sua
própria humanidade e absurda indiferença pelo Outro. Fracassamos
enquanto civilização ao não conseguirmos garantir direitos
elementares aos cidadãos - nem mesmo à presidenta da República!
Fracassamos de maneira retumbante enquanto Estado Democrático de
Direito, enquanto civilização, enquanto nação, enquanto pátria.
Temo que nosso fracasso seja tamanho que não haja qualquer
possibilidade de civilidade num futuro breve. Digo isso não por
vermos pais acharem lindo o filho de cinco anos escrever "morra
Lula", "morra Dilma" em um trabalho de escola, não
por presenciarmos pessoas sendo espancadas por estarem de vermelho,
não pelas panelas batidas no anseio de calar o diferente; digo isso
pelos 50 mil assassinatos anuais, pelas outras 50 mil vítimas anuais
da nossa guerra sobre rodas, pelas centenas de vítimas em conflitos
agrários todos os anos, pelas vítimas que sequer merecem ser
transformadas em estatísticas, assassinadas em aldeias indígenas,
em prisões, em autos de resistência; fracassamos ao saber que há
pessoas vitimadas por serem negras, por serem mulheres, por serem
pobres, por serem "nordestinas", por serem haitianas, por
serem putas, por serem periféricas, por serem moradoras de rua, por
serem faveladas, por serem gays, por serem trans, por serem
diferentes (que o diga todos os suicidas da Unicamp).
À
tarde resolvi dar uma espairecida do golpe, fui dar uma volta no
centro de São Paulo - bem longe da avenida Paulista. Largo do
Paissandú, 25 de Março, Zona Cerealista, Luz. Tirando na cantina
onde almocei, em que o assunto passou rapidamente por uma conversa ao
meu lado, não ouvi nenhuma vez os nomes de Lula, Dilma, Moro, Globo
- mas soube que o Coringão ganhou e o São Paulo, não. Elogiei a
moça do caixa, garota muito simpática, que esbanja vida - pouco
importa quem seja o dono do butim estatal. Fiquei sem saber, mas
desconfio que ali, nessa área bem "povão" de São Paulo,
as preocupações são as contas a pagar, o quanto vai conseguir
ganhar no fim do mês, se o rapa está vindo, se vai conseguir um
lugar sentado no ônibus ou no trem, na volta para casa; se ama e se
é amado; se o seu time vai ganhar o campeonato, se a crise vai
ceifar seu emprego, ou "apenas" seu salário. Moro, Lula,
golpe? Ali está o Brasil fracassado - nosso fracasso - que
insistimos em não enxergar. A certa altura, três ambulantes gritam
e fazem algazarra; não tardo a entender: tiram sarro de dois
africanos que passaram por eles vestidos com roupas tradicionais (que
acho muito legais, por sinal). Sem idealizações, vejo ali o Brasil
fracassado, o nosso fracassamos.
Ainda
assim, de fracasso em fracasso, amanhã sairei à rua, sem camisa da
seleção ou a bandeira que tanto me envergonha, lutar pela
democracia, pelo Estado de Direito, pelo respeito aos direitos
individuais e aos direitos sociais - pelo direito desses que hoje vociferam e agridem quem pensa diferente. Porque ainda é possível que
nesse golpe eles fracassem, e isso nos permita tentar corrigir os
efeitos de nossa herança de fracassos.
17 de março de 2016
ps: Fracassamos ao ter como alíquota de Imposto de Renda mais alta 27,5%.
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