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terça-feira, 29 de setembro de 2020

Da urgência de religiosos progressistas na política (ou, porque apoio Sheik Rodrigo Jalloul à Câmara de São Paulo)

Alguns amigos estranharam meu apoio a um candidato religioso à câmara municipal de São Paulo - o sheik Rodrigo Jalloul, do PSOL. Até agora ninguém veio me perguntar se eu me converti, como aconteceu quando comecei a colaborar com a Pastoral dos Migrantes, há cinco anos. Porém, antes que alguém distraído faça a pergunta, me antecipo: não, sigo ateu, e pra mim deus segue uma contradição lógica absurda, o que não me permite acreditar na sua existência. 

Também sigo achando que líderes religiosos não devem participar de política, tanto como candidatos quanto como cabos eleitorais. 

Falei em contradição logo antes, e a atenta leitora, o detalhista leitor pode logo disparar: e não há contradição em apoiar um líder religioso quando acho que religiosos deveriam se abster da política? Há - e nem precisa ser muito atento ou detalhista para notar. Contudo, como o que existe é o mundo real e não o que desejamos dele, e no real o que vemos são líderes religiosos reacionários tomando a política de assalto, seguir agindo como se vivêssemos uma situação ideal apenas nos deixa mais longe do ideal que almejamos.

A talebanização-cristã do Brasil torna urgente a presença de religiosos progressistas na política. Sua necessidade não é apenas a de fazer frente aos fundamentalistas cristãos: tem também uma função pedagógica, de dar voz a leituras alternativas das religiões (seja do cristianismo, seja das não-cristãs), que não encontram vez na mídia hegemônica, dominada pelo deus dinheiro - seja em sua versão com verniz cristão, seja na sua versão religiosa puro-sangue. Posso estar com a impressão errada, mas o que percebo é que a participação de Boulos na eleição presidencial de 2018 fez com que o MTST e congêneres, fora dos círculos mais extremistas, deixassem de ser automaticamente associados a "baderna" e "bandidos", ganhando direito de existir em suas reivindicações; o mesmo, penso, pode acontecer com os religiosos "comunistas", se tiverem a oportunidade de falar sem cortes: mostrar que o discurso social é pertinente, coerente e atraente, e que um deus amoroso e compreensivo pode existir sem abdicar de sua onipotência.

A esquerda, ao menos boa parte dela (em especial a esquerda acadêmica, limpinha e cheirosa, que deve ter conversado com alguém da periferia pela primeira (e última) vez em 2018, no vira voto), precisa relembrar sua história e a história das resistências populares na construção do Brasil, e repensar a questão religiosa (me senti no século XIX agora, falando em questão religiosa, sendo que outra questão que merece ser abordada seriamente é a questão militar), compreendendo que muitos movimentos populares costumam ter a religião como um amparo - da resistência dos escravos aos movimentos messiânicos do início do século XX, até chegar às CEBs e ao PT -, e aceitando que a religiosidade popular não é inferior à sua (me chama a atenção a proliferação de "religiosidades" individualistas na última década e meia, criadoras de uma pseudo-comunidade que faz sentido somente a uma classe média diplomada, individualista, preconceituosa e carente: astrologia, sagrado feminino, constelação familiar, reiki e uma miríade de crenças que não são capazes de criar uma rede de solidariedade como as religiões estabelecidas o fazem), e mesmo que a crença em deus é uma demanda legítima e que merece ser não apenas respeitada como satisfeita - isso eu demorei pra entender, inebriado pelo cosmopolitismo iluminista-liberal; e noto que a própria igreja católica, em seu braço social, preocupado em respeitar a opção de quem ajuda, e sem exigir contrapartidas, tem muita dificuldade em dar acolhida religiosa; os neopentecostais reacionários, por seu turno, bem atinados ao mercado, perceberam que onde há demanda convém prover oferta. 

Ou a esquerda volta a unir religião com política, ou mercadores e milicianos da fé seguirão avançando celeremente tanto na política institucional quanto na micropolítica dos corpos e hábitos, indiferentes aos princípios que gritamos que devem ser respeitados por serem avanços civilizatórios, além de cláusulas pétreas da constituição - não teve juiz federal que disse que o livro que ele seguia antes de qualquer outro era a bíblia e não a constituição?


Há uma série de religiosos comprometidos com a palavra de amor que as religiões trazem, o que os impele a agir com veemência diante da obscena injustiça social que vivenciamos. Notei o sheik Rodrigo Jalloul há um tempo, nas postagens do padre Julio Lancelotti, a quem tenho enorme admiração (pra mim, é o Eduardo Suplicy da igreja católica); além do apoio aos moradores de rua, junto com padre Julio e outros religiosos, também tem trabalho em comunidades carentes e com animais abandonados; tem o apoio de vários líderes religiosos, defende o estado laico e - condição imprescindível para uma eleição proporcional - disputa por um partido comprometido com as causas sociais, o PSOL (ou seja, se não for eleito, meu voto pode ajudar a eleição de alguma outra candidatura progressista, como o Juntas). 

Diante do contexto que presenciamos no país, ter na política institucional uma voz religiosa dissonante, comprometida com a democracia, a laicidade do estado e as causas sociais pode trincar o discurso fundamentalista cristão sobre o diferente, ajudando a gerar uma dissonância cognitiva em parte da população, de modo a reverter o quadro de talebanização-cristã para o qual caminhamos. 


29 de setembro de 2020

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Eleições paulistanas 2020: retrato de momento (à espera de Marta)


Ainda que desperte interesse da mídia, por ser a principal cidade do país, a eleição paulistana este ano tem gerado menos “frison” que em 2016. A explicação parece simples: além da questão sanitária do coronavírus (e nossa eterna disputa sobre se é gripe ou pandemia, se se combate com ozônio no reto e cloroquina ou com medidas sérias de isolamento social), o atual prefeito é do PSDB e favorito, e o perigo vermelho, por ora parece distante, com as esquerdas ainda enfraquecidas por anos de macarthismo midiático-judiciário.

Pesquisas recentes (RealTimeBigData, de 12 e 13 de agosto, e a sempre suspeitíssima Paraná Pesquisas, de 15 a 19) indicam empate entre Russomano e Covas, com França e Boulos distantes.

Primeiro ponto a destacar sobre estas eleições: se estamos analisando e discutindo como se estivéssemos dentro do jogo democrático é porque as esquerdas estão fortemente enfraquecidas, ainda no rescaldo de 2016, capazes de almejar uma ou outra vitória - seja em praças importantes, seja em locais secundários -, mas com baixíssimas chances de uma votação expressiva que dê algum recado, algo como em 1974 (temos uma pandemia em curso e um despreparado em Brasília, não sabemos o que isso pode gerar).

Segundo ponto: tal qual as eleições de 2016, estas devem tratar de temas federais também, não tão centradas apenas nas questões locais. Se lá estávamos no auge da criminalização da esquerda, já um tanto desgastada por anos no poder, para além do bombardeio midiático-judiciário; com golpe de estado em curso, crise econômica começando e mudanças em cima da hora sobre as regras da campanha (o que prejudicou Haddad e favoreceu Doria Jr. Creio que se houvesse segundo turno, o tucano teria muita dificuldade para se eleger); agora temos as esquerdas ainda na lona, precariamente tentando se recompor; um neofascista ocupando o Palácio do Planalto há pouco e jogando politicamente sem se preocupar com custos humanos, e uma enorme crise econômica, potencializada e obnubilada pela pandemia. E a pandemia, para além da mudança da data do pleito, deve trazer uma nova dinâmica às campanhas, diminuindo o corpo a corpo dos candidatos, dando ainda maior destaque à internet e televisão. No caso paulistano, quem tem tempo de tevê são os candidatos do sistema, quem tem conhecimento da internet são as equipes dos candidatos de extrema-direita e quem tem, a princípio, maior possibilidade de corpo a corpo é o candidato de direita. As esquerdas, bem... ainda estamos tentando nos desapegar do mimeógrafo.


Extrema-direita: o tamanho do fascismo na cidade

Discurso de ódio aberto, preconceito contra pobre, instrumentalização da democracia e do estado de direito (eufemismo para não democráticos) e projeto ultraliberal marcam essas candidaturas. São azarões, mas azarão também era Doria Júnior em 2016. Claro, há a diferença: Doria Jr tinha dinheiro para pagar uma competente equipe de marketing e tinha a estrutura (e a grife) do PSDB. Provavelmente um deles deve ter alguma votação um pouco mais de relevo, mas será interessante notar que os votos dados a esses candidatos (salvo um movimento de migração de voto no fim do primeiro turno para evitar um segundo turno com a esquerda) servirão para mostrar o tamanho do neofascismo puro e sem disfarces na cidade. Tem conhecimento e financiamento para uso das redes sociais - e um judiciário tímido em coagir abusos -, o que pode favorecer Hasselmann, Athur do Val ou Sabará (Fidelix e Paiva apenas completam o grupo, sem qualquer chance de destaque, me parece).


Direita: Russomano, o eterno cavalo paraguaio?

Russomano tem fama de cavalo paraguaio: bom de largada, ruim de chegada. Não se deve subestimá-lo, contudo. Classifico-o como direita apenas por conta de ter algum traquejo político e por seu discurso, tanto o econômico quanto o de ódio, ser mais mitigado (e discurso não é irrelevante, palavras, ainda mais de líderes, têm poder de induzir comportamentos). Disputando pelo partido da Igreja Universal, tem púlpito onde fazer campanha presencial com mais facilidade, o que pode lhe dar grande vantagem, além de cobertura favorável da tevê do partido, digo, da igreja. Por conta disso, tem forte penetração entre os evangélicos (o candidato do PSC não me parece ter chance). Se agir como bom político da direita e fugir dos debates (como fizeram, nas presidenciais, Collor, FHC e Bolsonaro), pode evitar tropeçar nas pernas e chegar forte no fim da campanha, com chances de segundo turno.


Centro-direita: Covas favorito

A princípio, Bruno Covas é favorito na disputa, não tanto por mérito próprio, mas por falta de um adversário à altura. Sua ascensão seguiu o modelo tucano de formação de novos quadros em São Paulo: o “vicismo” - rompido por Doria Jr pelas condições excepcionais de 2016. Destoa bastante de quem o pôs no cargo, e remete ao velho e finado PSDB de Montoro e seu avô Covas - uma centro-direita progressista (ou, dadas as cores locais da política, poderia ser até mesmo tido por centro-esquerda). Cometeu algumas falhas (eleitoralmente falando) na gestão da pandemia, como o rodízio radical, mas em geral se portou discretamente, retomando muitas das ações de Haddad no campo de direitos humanos e seguindo o projeto de privatização e criação de agências de controle do PSDB, sem apelar para o discurso de ódio. Tem no novo Anhangabaú (projeto de Haddad) outra provável vitrine - ou telhado, a depender de como mídia e redes sociais explorarão o fato. Com apoio da grande mídia, de vários partidos e a tendência do eleitorado paulistado a clicar 45, é improvável que fique fora do segundo turno. E muito provavelmente será o nome do partido em 2022 (supondo que nossa anormal normalidade democrática atual se mantenha), mas abandonar o cargo não parece ser um problema ao eleitorado da capital, até que isso se realize.

Márcio França é outro que emergiu com o vicismo tucano: foi receber de Alckmin o governo estadual que ganhou a projeção que permite pleitear a prefeitura paulistana - lembremos que no segundo turno de 2018 ganhou de Doria Jr na capital. Flertou com o bolsonarismo mas recuou, e se alia ao PDT de Ciro, provavelmente de olho no Palácio dos Bandeirantes em 2022. É com o “recall” de 2018, se equilibrando entre um “progressismo sui generis”, um discurso de endurecimento penal, que vai tentar pintar como candidato anti-tucano que não é nem de esquerda nem de extrema direita. Se chegar ao segundo turno, tem alguma chance, por poder aglutinar votos das esquerdas - mas não devemos esquecer que o não-voto em Doria Jr foi antes por este ter não cumprido a promessa de campanha.


Esquerdas: para o PT aprender por bem ou por mal

Acho horrível a expressão “se não aprende por bem, aprende por mal”. Geralmente os aprendizados que vem por mal chegam tarde e servem apenas para lamentação de quem aprendeu e regozijo impotente de quem avisou. É o caso do PT, ao que tudo indica: vai aprender por mal - resta saber quão tarde terá vindo esse aprendizado.

O nome do campo da esquerda nestas eleições, não resta dúvida, é o de Guilerme Boulos, do PSOL. O partido, por sinal, acerta, finalmente, ao ampliar sua base, antes restrita à esquerda acadêmica sectária, e dialogar mais de igual pra igual com movimentos populares menos escolarizados. Com Erundina como vice, deve conseguir algum apoio dos mais velhos e das periferias - os que vivenciaram sua gestão. Tem alguma chance de ir para o segundo turno, a depender do quanto estará fragmentado a direita e centro-direita: uma fragmentação média, com dois nomes fortes, podem tirá-lo do páreo; vários nomes ou um nome muito acima dos outros, dão-nos esperanças.

Há dois problemas principais para o PT ter candidatura própria em São Paulo este ano. O primeiro é a escolha do nome: em tempos de calamidade de saúde, na escolha entre um médico e alguém ligado aos transportes, optaram por este. Jilmar Tatto anima apenas a base mais sectária do PT e tem uma plataforma política coerente para 2013 - estamos em 2020, não sei se precisava lembrar. O segundo: ele tem tudo para passar mais vergonha que Alckmin em 2018, com a diferença de quem vai sair como grande perdedor não é ele, mas o partido: a insistência na candidatura, sem um argumento válido que a justifique, servirá, para analistas comprometidos com os donos do poder, como evidência do enfraquecimento do PT - salvo caso o partido consiga vitórias expressivas em outras cidades importantes do estado e do país.

Sua candidatura seria justificável se entrasse como candidatura de denúncia e se pusesse (abertamente) como linha auxiliar da candidatura de Boulos; contudo, para isso seria preciso abandonar anos de moderação do PT em favor de um discurso incisivo, de ataque aos adversários da direita e às instituições; contudo, se em 2018 Haddad ainda fazia elogios à Lava Jato, não parece que será Tatto, em 2020, quem elevará o tom. Para dificultar a vida de Tatto: o PT também vem um tanto rescaldado nas periferias, por conta da administração Haddad, que fez uma boa administração - mostrando que o velho PSDB poderia ter feito uma boa gestão da cidade -, mas bastante distante das periferias e muito voltada à classe média e à região central. A tentativa de Ana Estela Haddad como vice é a tentativa de ganhar essa classe média “haddadiana”, mas que dificilmente se empolgará com seu nome.


A grande incógnita: Marta

Todo esse cenário acima pode ser drasticamente mudado se Marta Suplicy (ou ex-Suplicy, não sei) entrar na disputa, seja como cabeça de chapa, seja como vice. A ausência de um nome convincente no PT, e seu apelo nas periferias da cidade podem lhe render votos. Sua saída do PT, da forma como foi feita, foi um passo bastante infeliz nas suas pretensões eleitorais: sem nunca deixar de ser vista como petista pelos antipetistas, passou a ser vista (justificadamente) como traidora pelos petistas e pela esquerda em geral - diferentemente de Erundina.

Se entrar na disputa, cresceria tirando alguns votos da centro-direita, do PT e do Boulos, porém depende de uma boa estratégia de marketing para que esse crescimento seja suficiente para pô-la no segundo turno. Ainda assim, mesmo se chegasse no segundo turno, nada garante que teria força suficiente para vencer o estado em 2022.

Se optar por ser vice de Covas, com tem sido alentado, além de trazer ao atual prefeito o voto das periferias, permite que ela assuma a prefeitura daqui dois anos, tenha outros dois para impingir sua cara na gestão e volte a disputar com força em 2024. A questão que ao ter uma “petista” como vice, Covas pode perder alguns dos votos para outros candidatos do espectro político - provavelmente menos do que ganharia, mas não convém subestimar as filiais do gabinete do ódio.


No fundo, parece mais que presenciamos uma eleição café-com-leite, que fingimos ser pra valer, impotentes de levar adiante a denúncia do estado de exceção que estamos vivendo - com beneplácito de PSDB, judiciário, grande mídia, grande capital, etc.



28 de agosto de 2020

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

A foto da reforma do Vale do Anhangabaú e as críticas precipitadas e tardias

Foto de como está ficando o Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo, gerou uma série de reações, de críticas, e algumas poucas reflexões. Como sói com críticas basicamente reativas, são rasas e pouco acrescentam, além de ressaltar a ignorância no assunto de quem a faz - há quem consiga fazer uma crítica com mais refletida, mas aí cai numa idealização que perde um bom tanto do contato com a realidade, como o caso do artigo “Como era verde o meu Vale: o Anhangabaú e o paisagismo inóspito de São Paulo”, por Antonio Hélio Junqueira, publicado no Jornal GGN, e falo isso como usuário pedestre frequente do Vale entre 2012 e 2018.
A crítica com base na foto atual é ao mesmo tempo precipitada e muito atrasada. Precipitada porque o vale ainda está sendo reformado. Poderia se questionar onde estão as árvores que constam no projeto. Contudo, para tal pressuporia o conhecimento do projeto - e nisso se mostra o quanto é tardia. Porque o projeto não é do Bruno Covas, e sim do Fernando Haddad. Foi pouco discutido com a sociedade, apresentado sem a mesma grita da esquerda que vejo agora em minha bolha branca-classe média-universitária-de esquerda, e desde o início era medonho, com poucas árvores, muito cimento - e centrado na gentrificação do centro.
Para agora, a grande questão - que chega a ser abordada muitas vezes, mas raramente como principal crítica - é a necessidade de uma reforma dessas, essencialmente cosmética (uma vez que não inaugura nada marcante, como um centro cultural ou esportivo), em um momento de crise econômica (mesmo antes da pandemia) e com uma série de problemas importantes e mais urgentes, inclusive no próprio centro - como a questão da moradia. Mas não deixa de suscitar outros temas importantes para o debate.
Para além da moradia, desde quando o projeto foi apresentado, ficou escamoteada a discussão dos usos - atuais e desejados - do centro da cidade e da população que o frequenta, e da qual se deseja que o frequente também. Pergunta mais que pertinente: esses novos frequentadores querem estar no centro, querem estar em contato com “gente diferenciada”? Porque dificilmente será apenas uma praça - ainda mais num país que costuma vê-las como mero locais de passagem ou de moradia de população marginalizada - que fará com que certas porções da população passem a ocupar um espaço (o exemplo do Largo da Batata citado por Junqueira não parece condizente, uma vez que se localiza numa região já devidamente habitada e gentrificada). Há um exemplo logo ao lado: o Sesc 24 de maio, na República, atraiu pessoas novas apenas o restrito espaço do seu interior super policiado, tanto que oferece transporte para o metrô e estacionamentos, como forma de evitar que seu público entre em contato com o populacho da região. 
Quais os usos que se quer do centro: moradia popular, moradia hipster, lazer para quem pode pagar? Lazer popular já há (ou havia, antes da pandemia), com vários bares com som ao vivo e grupos de pagode; e mesmo boa oferta cultural, com Galeria Olido (antigamente, andou sendo posta de lado, infelizmente), Centro de Referência da Dança, Trackers, cinema de rua, além do novo Sesc. Se é para lazer da classe média - poderia ser uma alternativa para a vida noturna, aproveitando que já é subaproveitado para moradia -, caberia pensar a reforma do Vale a partir do seu uso efetivo - mesmo que em transição - e não de uma ocupação idealizada e pouco factível no momento - a gentrificação por ora está (estava) centrada na região da República próxima à Vila Buarque e Santa Cecília, não aponta na direção da Sé. 
E, claro, outro ponto a se criticar: se é para gastar dinheiro público em praças e afins, é no centro que esse dinheiro deveria ser aplicado? Não faria mais sentido ampliar as áreas verdes e de convivência nas regiões de moradia já densamente povoadas?
As críticas que vejo na internet, via de regra, são de quem já não frequentava o Vale do Anhangabaú, desconhece que há muito não é arborizado (talvez tenha sido enquanto durou o projeto de Bouvard, de cidade jardim), e que nada ali convidava a estar, a permanecer, a ser local de convívio - quem a ocupava de fato eram os moradores de rua, como costuma acontecer nestes Tristes Trópicos. Não sei se o novo Anhangabaú mudará essa topologia humana, de qualquer forma, não vejo muita possibilidade de piorar - pode, quem sabe, ser uma alternativa menos radical à praça Roosevelt para skatistas, patinadores e afins. De qualquer modo, cabe criticar o momento em que se está executando e mais que isso, o projeto desde seu início; e isso implica em criticar a conversão do PT a ideais classe média hipster, em detrimento das necessidades e anseios das classes trabalhadoras das periferias.

06 de agosto de 2020

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Vagabundos, bandidos, zumbis - o vocabulário conservador entranhado nas hostes progressistas

Desde que tive que começar a trabalhar presencialmente, em fins de abril, faço ao menos um dos trajetos (ida ou volta) até o trabalho à pé, como forma de me exercitar (são 9 km) e acompanhar como vai a cidade. Semana passada, o trajeto pela manhã parecia que saímos não de uma quarentena (que nunca foi efetivamente), mas de um feriado frio e chuvoso, em que o não deu para correr no parque, então o pessoal aproveita para fazer o jogging, o cooper, o footing na ciclovia ou na calçada. No mais, trabalhadores se encaminhando para seu tripalium, os "espaço imantados" dos ambulantes de café da manhã, os nacos de conversas que pego pelo caminho. São Paulo volta ao normal e seu "novo normal" não parece ir além das máscaras - se me é novidade, não é fruto de pandemia, um grupo de três jovens da periferia pelo qual passo, máscaras no queixo, que caminham com uma caixa de som de onde extrapola rap gospel a quem queira e não queira ouvir: a salvação da alma, já que, ao que tudo indica, os pastores já vaticinaram nossa danação na terra (atualmente em coro com cientistas e gente sensata).
Se no início do meu trabalho presencial a única rua em que eu precisava esperar pelo sinal para atravessar era a avenida do Estado, isso às seis da tarde, pouco a pouco meu tempo de espera foi se alongando até que agora é preciso esperar o sinal de pedestre abrir para atravessar, como no velho normal.
Foi esperando num momento desses que pego um fio de conversa entre dois moradores de rua. Questiona um deles: "e por que que dar dinheiro pra vagabundo, se ele não acrescenta nada para a sociedade?". O sinal abre e eu atravesso, sem saber se ele reproduzia aquele pensamento para fazer a crítica a seguir ou, como parecia pelo tom que usava, se reproduzia aquele discurso por ter incorporado como verdade. Quem ele vê como vagabundo? 
Lembro que vagabundo não é quem não trabalha, vagabundo é termo usado para desqualificar o outro, desumanizá-lo. Assim como bandido: um bandido é um homo sacer, alguém que não é mais digno do tratamento dado às pessoas e pode, portanto, ser morto sem as considerações formais, como julgamento ou direito à defesa, e sem remorsos de quem o mata. E isso me faz recordar de Jean Wyllys, e o tamanho do desafio que ainda temos pela frente.
Admiro Jean Wyllys, concordo com muitas de suas posições, discordo de algumas, como acontece com todas as pessoas que conheço e desconheço - comigo próprio, inclusive. Desde muito acho que o twitter não deveria ser material para discussão política: aquilo não é uma arena política, não é a nova ágora pública: é um ringue virtual para rinha de egos e pouca coisa além. Porém, foi alçado a um dos principais meios de comunicação política da atualidade (a estreiteza dos seus 240 caracteres é bem significativo do nível do debate político mundial). Enfim, em 13 de maio, quando o presidente da República finalmente divulgou seu resultado de coronavírus - negativos -, para descrença geral da nação, o político do PSOL escreveu: "Só tenho a relembrar o seguinte: os Bolsonaro me levaram ao Conselho de Ética com um vídeo CRIMINOSAMENTE ADULTERADO (segundo perícia da Polícia Civil do DF). Quem adultera vídeo criminosamente adultera também resultado de exame pra COVID-19. Uma vez bandidos sempre bandidos." (sic)
O texto foi escrito no calor do momento, talvez sem a devida reflexão, e justo por isso ele acaba trazendo cristalino o tamanho do nosso o problema, o quanto a mentalidade conservadora permeia até ativistas os mais progressistas do país. Quando Jean Wyllys generaliza a fala aos Bolsonaro com o "uma vez bandidos sempre bandidos", ele está reproduzindo dois elementos centrais do pensamento mais reacionário e violento do Brasil: primeiro o uso do termo bandido. 
Poderia ter dito criminosos, falsificadores, gângster, mafiosos, ou qualquer outro termo do tipo, bandido há muito não tem mais essa função no léxico comum brasileiro, não serve para apontar alguém que cometeu um crime, mas para marcar alguém que não merece viver em sociedade, ou melhor, não merece viver. Bruno, ex-goleiro do Flamento e assassino de Eliza Samudio, foi cristalino nessa percepção, quando disse: "Cometi um erro grave, mas não sou bandido", tanto que a seguir ele pede uma oportunidade [https://bit.ly/3fzjoPV]. Se bandido fosse sinônimo de alguém que cometeu crime, ele poderia se assumir um bandido e pedir a oportunidade; contudo, por ser bandido ele não tem mais direito algum, conforme nossas leis do senso comum - e ele sabe disso.
O segundo ponto é a inefabilidade: "uma vez, então para sempre". É o argumento de qualquer policialesco, dos defensores da pena de morte, do bandido bom é bandido morto, do excludente de ilicitude. Ainda que direcionado ao presidente e seus familiares, sua frase reforça que bandido é bandido de nascença, por natureza, é irrecuperável e, portanto, não merece outra chance, não merece tentar recomeçar a vida, não merece viver em sociedade, no limite, novamente, não merece viver. É reforçar a marca que um ex-condenado, um ex-presidiário traz no corpo, reiterar o estereótipo, estimular a ideia de que prisão não recupera e nem serve para isso - digo aqui não na prática, não no que seria seu ideal pronunciado -, e que bem faz o Brasil em manter masmorras, pocilgas sem qualquer estrutura para os criminosos.
Passo pela Sé, abarrotada de moradores de rua. É muita gente! Como assinalou uma colega, vez que voltamos juntos do trabalho: muitos dos que estão ali são neófitos (talvez seduzidos pelos atrativos das ruas, como julga a primeira dama do estado?), como dá para perceber pelas roupas, pelas mochilas e pelas barracas, ainda não gastas pelo uso e pelas intempéries. Os pastores voltaram e atraem pequenos grupos de desvalidos abandonados por deus, pelas autoridades públicas e pela solidariedade. Vejo o rapa passar, acompanhando da GCM, recolhendo os pertences de quem nada tem: é feito de tal modo que parece um trabalho burocrático, tão natural quanto o nascer do sol. Afinal, ali os que não são bandidos são vagabundos, e os que não são vagabundos são "zumbis das drogas". E nesse trecho de um quilometro quase completo as categorias dos sub-humanos tupiniquins autorizados a serem mortos - ficou faltando os indígenas, desde 1500 sem direito à humanidade plena (e temos os esquerdistas, que ainda resistem a entrarem no grupo, a despeito do desejo do presidente e de seus seguidores, mesmo os arrependidos, como Sérgio Moro). 
Sigo meu trajeto. Ambulantes vendem máscaras, o hispanohablante vende suas cinco paçoquinhas por um real no lugar de sempre, bares oferecem salgados nas suas portas, funcionários da assistência social, GCM, PM, trânsito, o novo normal é a velha ordem, com a sutil mas capital diferença, sensação do que senti quando visitei a Venezuela, ano passado: nosso tecido social está roto - talvez ainda tenhamos um fiapo para romper de vez, como presenciei lá. Isso parece secundário, ou invisível: agimos como se fôssemos uma nação, como se ainda houvesse solidariedade, como se não estivéssemos todos tomados pelo ódio: de um lado, fascistas que pregam a morte de todo mundo que não pense como o mito; do outro, aqueles que se não desejamos agir com as próprias mãos, por uma questão moral, torcemos para o destino dar cabo o quanto antes dos fascistas, como se fossem todos eles irrecuperáveis (ok, admito que alguns o são mesmo, vide nosso presidente, mas poderia falar de alguns parentes), "uma vez fascista, então sempre fascista" - um acréscimo progressista (?) aos bandidos, vagabundos, zumbis e indígenas.

15 de julho de 2020

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Em meio à pandemia, uma cidade habitada por pessoas invisíveis

Foto de André Conceição.
Instagram: @andre.conceicao.ac
Salvo duas idas ao mercadinho da esquina, a última vez que havia me afastado de casa tinha sido dia 18 de março, por conta de trabalho. Ainda que as ruas estivessem um pouco mais vazias, o comércio seguia aberto. Novamente por conta de trabalho, quarta dia 22 precisei sair de casa. Tinha três opções: a tradicional, tomar um metrô ao lado de casa e ir até a estação Tietê; chamar um motorista por aplicativo ou uma caminhada de uma hora e meia. Claro, não perdi a oportunidade de fazer o "trekking urbano" que tanto gosto.
Álcool gel no bolso, coloco a máscara e me lembro de quando fazia yoga, a hora da meditação: quando precisava ficar parado e concentrar, coceiras pelo corpo todo, como se pulgas surgissem do nada e avançassem famintas. A mesma coisa com a máscara: coça nariz, coça queixo, coça bochecha, coça, coça, coça, e eu sem poder pôr a mão. E segue coçando.
Isolado em casa, numa rua sem saída e sem movimento, não tenho noção do que acontece pela cidade. Imaginava-a mais movimentada, pelo que leio de quem saiu por esses dias. O movimento não é grande, mas também não é pequeno. No trajeto que fiz, São Paulo tinha um ar muito estranho.
Desço a rua Vergueiro e a avenida da Liberdade. Exceção à proximidade do Hospital do Servidor, pouco, muito pouco movimento, até chegar na praça da Liberdade. Não tem cara de domingo tampouco: aos domingos as lanchonetes estão abertas, há mais bicicletas na ciclovia, mais carros.
Na praça da Liberdade acontece uma feira livre, há um pouco de movimento, nada que se pareça com a Liberdade em qualquer dia semana. Há mais pessoas sentadas pela praça, para usar a internet (lembro no início da quarentena que se discutiu oferecer internet grátis, como forma de ajudar as pessoas a ficarem em casa, mas diante de um governo que não foi capaz de disponibilizar a contento dinheiro e meios de sobrevivência, discutir internet é luxo).
O movimento começa de fato na praça da Sé. Perto de um dia comum, há mais GCMs, há mais moradores de rua, há menos pregadores, menos transeuntes e turistas. Uma viatura da GCM vai em direção a uma fumaça que sai do centro da praça. Passa por ela como se fosse algo banal. Ao me aproximar, vejo uma mulher num fogão improvisado esquentando água, batatas doce ao seu lado. Um outro morador de rua comenta: "vão ficar boas essas batatas". Me lembro do conto da sopa de pedra, que li quando era inocente puro e besta de pouca idade, em um livro com contos e lendas da América Latina. Não entendi: por que o homem jogava fora as pedras da sopa? Precisei que meu pai explicasse a esperteza do protagonista. A sopa da mulher não tem nada de esperteza, nem de ingenuidade: é sobrevivência, é a estética da fome desprovida de toda arte. Ao avançar, descobrirei que essa uma nova tendência do centro menos nobre de São Paulo: fogões improvisados para preparar refeições possíveis - se até 'chefs' estão tendo que se reinventar durante a crise, como várias reportagens não cansam de mostrar esse "drama", que dirá dos esfomeados...
Desço a General Carneiro até a 25 de março. Alguns poucos ambulantes vendem meias e máscaras. Quase ninguém na rua, mas ainda assim a 25 tem um ar de estar movimentada: como se seu tropel habitual fosse um moto perpétuo que acontece independente das passadas serem reais ou apenas espectros. Nas proximidades do mercadão noto mais de movimento - inclusive de carros -, nada que aproxime de um domingo. Com boa vontade, metade das pessoas está de máscaras, muitas delas deixam o nariz de fora, para melhor respirar, outras protegem do vírus entrar pelo cavanhaque ou pela papada, as orientais são disparadamente os mais diligentes no quesito de precaução. Avançando depois da Senador Queiros, pessoas na porta de seus estabelecimentos brincam com conhecidos que transitam: "não vai ficar em casa?", "saí, mas é rapidinho".
O que mais chama a atenção nesse trajeto do centro, sempre tão movimentado, é como emergiram os invisíveis: são muitos e muitos, mais que nos dias de antanhos, que hoje chamamos de "normais" - apesar dessa anormalidade sempre estar presente na Sé. Esse tanto de mendigos e moradores de rua sempre esteve ali? Talvez sim, mas diluídos no mar de gente que transita, a proporção faz perdermos a noção de quantos realmente são. Talvez porque muitas pessoas estejam em sua casa, eles, nas deles - a rua -, surja tão gritante aos meus olhos. Ou talvez mais pessoas hoje residam na rua, não sei. Pelo jeito, o rapa da GCM contra moradores de rua também anda em baixa: vi várias casas improvisadas, com razoável estrutura montada. Novamente me lembro da minha infância, minhas cabanas de cobertor, almofadas e caixas de papelão. Já no Canindé, passo por uma que aparenta ser um cantinho bastante aconchegante, admito. A dona da "casa" está do lado de fora, acende o fogo com o qual vai preparar seu almoço. Pouco adiante, cruzo com alguns adolescentes que caminham despreocupadamente, com a soberba imunidade autorizada pelo presidente da república. O clima de férias destoa deles destoa do que presenciei em todo o resto do trajeto, onde uma pinta de preocupação é notável, mesmo que se faça piada da pandemia.
Cumpro minhas obrigações laborais e volto pelo mesmo trajeto. Na casa que havia comentado antes, a panela já está no fogo, a entrada do barraco está fechado com algo que faz a vez de uma precária porta, reparo que há um tapete na entrada: a mulher tirou os chinelos para entrar em casa. Ao passar pela feira livre que acontece no Canindé, pego um resto de conversa entre dois homens, o sem máscara está terminando sua frase "...um irresponsável!", ao que o mascarado complementa: "alguém tinha que chegar e matar esse filho da puta, que não deixa a gente trabalhar". Desconfio que falem do governador do estado, mas o que mais me chama a atenção é ao que foi reduzida a política: solução é via derrubada ou - melhor ainda? - assassinato puro e simples. O mundo não será o mesmo, dizem, depois da pandemia. Também creio nisso, e sou otimista. Porém ao ouvir coisas como essa sei que o trabalho não será pouco e não será breve para a reconstrução de um mundo onde a convivência pacífica seja um direito, não um privilégio.

24 de abril de 2020

segunda-feira, 16 de março de 2020

São Paulo no primeiro dia de quarentena

Acordo com o sinal da escola em frente da minha casa. Porém hoje o Mozart do sinal toca sozinho: não havia a tradicional algazarra que o acompanha e vai aos poucos arrefecendo - que me lembra minha infância, a Escola Dona Frida na esquina. Sem víveres suficiente para uma quarentena mais longa (que sequer sei se cumprirei, dado obrigações de trabalho), me aventuro pelo centro de São Paulo, na zona cerealista - eu poderia, talvez, ter comprado pela internet, terceirizando, assim, meu risco, mas quis também ver como estava o clima da cidade, para além do calor seco da manhã.
Em tempo: não costumo entrar nesses temores coletivos com muito afinco - a gripe suína, por exemplo, não achei que valia a pena me vacinar -, mas tenho me preocupado um pouco mais com o coronavírus por conta do impacto na saúde pública, da necessidade de internação, apesar da baixa letalidade - e com minha mãe, que não parece, mas é do grupo de risco.
Para minha surpresa, no centro, o dia transcorria sem grandes mudanças: movimento normal nas ruas e nos comércios da região, alguns transeuntes com máscaras, a grande maioria orientais (creio eu que chineses e taiwaneses, cujo senso de comunidade, desconfio, ainda está mais arraigado - ao menos é minha experiência com o círculo da minha ex-namorada). Também eu estava sem máscara, e nem me dei ao trabalho de procurar em uma farmácia, dada duas conversas que ouvi no caminho do metrô, pessoas ansiosas perguntando aos mascarados onde haviam conseguido (ao regressar, achei uma perdida, que recebi para assistir ao excelente espetáculo A Parede, do 28 Patas Furiosas). Me assustou, contudo, o fato dos atendentes estarem todos - salvo uma oriental no mercado municipal Kinjo Yamato - sem máscara: oito horas em contato próximo com centenas, talvez milhares de pessoas, cada comércio é um foco de propagação da doença. Em um dos estabelecimentos, um funcionário comentava em tom jocoso que ali todos tinham seguro de vida - como se isso assegurasse a vida de quem parte e não apenas recompensasse quem fica. Mas é o ponto onde estamos: dinheiro vale mais que vidas, e as próprias vidas descartáveis aceitam isso como natural.
O mais estranho, entretanto, é a sensação de andar na rua, desprotegido e sem saber se a pessoa que parou ao seu lado para esperar o sinal abrir não estaria contaminada, se não é na hora que eu recebi o bom dia da caixa que terei contraído o vírus. Uma sensação estranha e muito desagradável e incômoda de se sentir ameaçado e não saber por quem, sendo obrigado a desconfiar, a temer todos. Algo que nunca havia sentido antes, em minhas muitas andanças por São Paulo, nem mesmo quando me aventurei de madrugada pela chamada Cracolândia, onde ao menos se tem noção de por onde fugir. Já hoje, no quente sol do meio dia, não como antever de onde vem o perigo e, portanto, as rotas de fuga - uma sensação mais que propícia para que o estado ou algum ente equivalente lance mão de controle de toda a população, como forma de aplacar essa vulnerabilidade extrema. Biopolítica sentida na pele.
Ao regressar a minha casa, em minha bolha virtual de classe média, meus conhecidos aderiram à quarentena, abnegadamente, e faziam da experiência uma espécie de reality show para instagram, de performance medíocre de exposição do ego: dois dias e reclamam de tédio, como se não passassem três dias trancados em casa, fazendo maratona de seriados; "momento faxina", como se fosse algo genial fazer uma faxina na casa; vontade absurda de começar a fazer sexo grupal - justo agora que não dá pra sair de casa -, e uma miríade de exemplos de como classe média sofre. Sofre e é consciente: porque, claro, o que não faltou foi defesa de que se dispensasse e pagasse as diaristas, e muitas críticas a quem ousou sair de casa com o coronavírus no ar - como as mães que largaram seus filhos (já que não tem aula) para ganhar o pão do dia, ou os entregadores dos produtos que eles compraram pela internet.

16 de março de 2020

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Uma criança brinca na cidade plúmbea

Nos últimos quatro anos, com o passar do tempo que parece que não passa e o suceder das crises que não se resolvem, apenas são suplantadas por novas crises, o Brasil vai lentamente se desenhando com as cores do Ensaio sobre a Cegueira, do Saramago. Zanzar por Ésse-Pê prestando atenção às insignificâncias da cidade é ver emergir um cenário pós-apocalíptico enquanto ainda se espera pelo apocalipse. Talvez o Metrô seja onde isso possa ser visto com mais clareza. O meio de transporte que meia década atrás emulava a imagem idealizada da Europa, com seus trens limpos e frescos e seus usuários bem vestidos, é hoje um micro retrato do país - e de projeto de país, ou melhor, de destruição de.
Em meio a atrasos e interrupções da rede - parte por causa do sucateamento promovido por Alckmin-Doria Jr, parte por usuários dando cabo à própria vida embaixo de um trem -, ambulantes interrompem o anúncio de seus (sub)produtos de cinco reais para brigar entre si sobre quem teria o direito de vender naquele vagão, mulheres clamam misericórdia feito leprosos na Idade Média europeia, crianças disfarçam de prata o preto de sua pele e se exibem algo como um Chaplin imberbe e precocemente envelhecidos em sua desesperança, artistas tocam músicas animadas e deixam escapar seu presente despedaçado - todos em busca de qualquer esmola, uma moedinha, um alento para sobreviverem até amanhã e recomeçarem sem pensar que depois de amanhã o futuro será igualmente claustrofóbico, tal qual um Sísifo míope e mutilado. Nos corredores das estações, violinistas do Titanic, arautos do fim do mundo, balas de côco por um real, guarda-chuvas com sotaque francês-africano, pessoas que dormem cobertas com o que têm à mão, enquanto outras ficam paradas em posições estranhas, olhando para o nada, catatônicas - as primeiras esperam a chuva passar, as segundas parecem esperar que o tempo passe, tão somente, até que chegue o nada. Me lembro que cada sociedade produz seus tipos específicos de "loucos" - quais serão os dos próximos anos?
Na estação República, vejo uma cena ao mesmo tempo bonita e triste. Talvez a tristeza não exista, seja projeção minha, de quem ignora a realidade - assim como a beleza que enxergo também é o aflorar de clichês de minh’alma. É um menino negro, cerca de doze anos, roupas simples - mas que indicam que não mora na rua -, uma coroa de princesa na cabeça e uma boneca loira (estilo Barbie). Está muito entretido, os olhos brilham, tem um sorriso sincero de quem realmente se diverte. Brinca alheio aos adultos que passam encharcados de chuva, pressa e angústias (passado a catraca parece haver espaço seguro para que se brinque ou se perca, sem ser perturbado por estranhos ou seguranças). Na sua mão a boneca voa como um super-herói para logo em seguida rodopiar feito bailarina. A beleza está nessa alegria pueril, despreocupada, centrada apenas em brincar. A tristeza que me bate é imaginar quais preconceitos e empecilhos o garoto não teve que enfrentar para poder vestir uma coroa e brincar de boneca, desde o menino não brinca de boneca até a própria dificuldade em adquirir uma, chegando à mais atual: poder ser a criança que desejava apenas já pré-adolescente, quando o esperado seria negar, ao menos em público, que se é criança. Me parece significativo que seja numa estação de metrô, anônimo, e não em um ambiente de família - e emblemático que a poucos passos do Museu da Diversidade. Tanto tempo esperando por um prazer simples.
Reflito um pouco menos melancolicamente a cena vista. Que haja idade certa para viver começar a ter experiências, não discuto, mas que não se possa voltar e fazer coisas que não são consideradas da idade, isso é tão absurdo quanto o quotidiano claustrofóbico dos miseráveis e dos funcionários do Metrô. A criança com coroa de princesa que brinca com a boneca, apesar de já um pouco além da idade que se brincaria assim, talvez seja uma prévia para o que vem depois da epidemia de cegueira, um ensaio sobre a lucidez que, se insistirmos com nossa luta, lograremos encontrar, um pouco fora do tempo certo, mas ainda no tempo de ser aproveitada.

08 de abril de 2019

domingo, 10 de março de 2019

Emergência negra no teatro [Diálogos com o teatro]

A arte negra, produzida por pessoas negras, sempre existiu, ainda que nem sempre visível aos detentores de capital cultural: uma arte de união e combate, que reúne povos diferentes emigrados para a América sob essa marca generalizante - "negros" -, que faz combate de guerrilha contra a opressão estatal e paraestatal, uma arte que resiste contra quem nega seu direito de existir e afirma sua potência de ser.
Presente e marcante na história brasileira, ainda que pouco reconhecida, essa arte e esses artistas quando valorizados - depois de muita luta - costumam ficar restritos aos rótulos de "tradicional" ou "popular", ou seja, para consumo de estrangeiros (nos quais se inclui nossa elite) ou expressão artística menor. Nosso carnaval de rua é um exemplo dessa desvalorização e dessa tática de guerrilha - diferentemente do bem adestrado carnaval do sambódromo, em sua estética rede Globo, por mais que tenha ousado algumas críticas nos últimos anos (algo que os entendidos no assunto dizem que é contingente). As denúncias do "verdadeiro carnaval" por parte de nosso presidente em seu Twitter é a assunção de que essa festa tão preta, tão periférica, tão pobre está sendo valorizada por frações da elite, ocupando bairros nobres, atraindo gente branca e endinheirada, e afrontando os valores da "família", as intenções de domesticação da população por outra parte da elite, que quer formar "cidadões" de bem, bem resignados a uma vida amarga de semi-escravidão.
Se afirmando na base da luta, a "cultura negra" ainda é olhada como tendo potencialidade se está na música, na festa, na dança - populares. Erudição teria a ver com pigmentação cutânea. Artistas que romperam essa barreira branca, não raro acabaram sendo branqueados pela história, como Machado de Assis. Músicos, atores de filmes ou novelas (afinal, é preciso alguém para fazer papel de empregada ou porteiro) que ganharam destaque, que rompera o asfalto como a flor de Drummond, parecem antes reforçar um discurso de que negro realmente está aquém do branco, e esses poucos seriam prova disso: um ou outro que tem a mesma qualidade de um branco.
Recentemente tem emergido uma impressionante "cena negra de teatro paulistano" (não sei em outras cidades). Algo que deve soar "Bichos escrotos", dos Titãs, para parte dos cidadãos de bem: "Bichos escrotos/ Saiam dos esgotos/ Bichos escrotos/ Venham enfeitar/ Meu lar, meu jantar/ Meu nobre paladar!". São dramaturgos, diretores, iluminadores, sonoplastas, cenógrafos, atores e atrizes negros que se juntam para fazer uma peça, invadir esse recinto tido por sagrado que é o teatro, invertendo completamente o "natural" das "artes superiores". 
Os racistas de plantão logo vão duvidar que saia algo que presta de um grupo todo (ou quase) negro (ouço as vozes de meus tios médicos nessas horas). A esses, nunca sei o que responder, minha vontade é de cuspir na cara e mandar beijar o presidente na banheira, enquanto jogam roleta russa com o tambor cheio. 
Mas mesmo os céticos poderiam questionar, legitimamente (movidos pelo preconceito que circula na nossa sociedade sem que percebamos), se essa escolha baseada na cor da pele não afetaria a qualidade da obra, já que se escolheria por critérios outros que artísticos. O que chamei de "cena negra de teatro paulistano" prova que em nada afeta uma escolha baseada na cor: há artistas e profissionais negros talentosos o suficiente para prescindir dos brancos (como iluminador cênico frustrado (e branco), admito que gostaria muito de trabalhar em algumas dessas peças, ao mesmo tempo que reconheço que não seria meu lugar ali, não nesse momento de afirmação positiva); inclusive, ela faz questionar o quanto não são as escolhas dos brancos baseadas na cor da pele e não no talento (exemplo mais evidente que me vem é a peça Branco: o cheiro do formol, do branco Alexandre Dal Farra, para falar do racismo sofrido pelo negro, escolhido pelos seus amigos da MITSP de 2017).
Outra linha de céticos poderia questionar se uma peça toda negra não viraria algo muito específico da realidade negra, periférica, e perderia a universalidade que a grande arte deve almejar. A ideia profundamente arraigada de que seria a humanidade, o universal humano, sempre branco, sempre europeu-ocidental, sempre judaico-cristão, sempre totêmico. Como se os dramas pequenos burgueses de um branquelo de Manhattan fossem universais, qualquer pessoa se identificaria (em maior ou menor grau), mas os de uma criança negra da periferia de São Paulo fosse um caso isolado, específico de negros periféricos de países subdesenvolvidos (da peça Buraquinhos ou o vento é inimigo do picumã, de Jhonny Salaberg [bit.ly/cG180702]). O que tais peças tem deixado muito óbvio é que o negro é universal tanto quanto o branco (e tanto quanto o muçulmano, que desponta como o novo condenado da Terra): há especificidades, sim, como são muito específicos os dramas retratados por Woody Allen ou Luigi Pirandello. Já fui além, em afirmar, após assistir a Três pretos: valor de uso, de José Fernando Peixoto de Azevedo, que nestes tempos de ascensão neofascista os brancos podem muito bem se preparar para seu devir-negro junto de toda a humanidade [bit.ly/cG181125].
Todo esse preâmbulo para indicar a peça Gota d'Água {Preta}, dirigida por Jé Oliveira, em cartaz no Centro Cultural São Paulo até o fim do mês. Jé Oliveira que foi o primeiro dessa "cena negra do teatro paulistano" a que assisti, com seu Farinha com açúcar, em homenagem aos Racionais MC's [http://bit.ly/cG170721]. O texto de Chico Buarque e Paulo Pontes ganha uma montagem de impressionante qualidade, impecável em todos os aspectos (ok, para ser chato (ATENÇÃO, SPOILER!): eu tiraria a última cena, a que dá um gran finale, que me pareceu uma gordura desnecessária, e terminaria na cena anterior, deixando no ar o continuum da que a vida segue, com suas festas e lutos), dando cor (óbvia nestes Tristes Trópicos) aos personagens periféricos escritos por Chico Buarque, pondo em diálogo vivo 1975 e 2019, trazendo os Racionais MC's para um merecido lugar de destaque na crônica quotidiana do Brasil. Ao final da peça, resta o arrebatamento, o entusiasmo, e a única coisa a comentar é como foi bom, sempre seguido de palavrões entusiásticos, e tentar em vão decidir quem seria o melhor ator ou atriz (até mesmo Juçara Marçal, em sua estreia como atriz, que num primeiro momento parece estar ali para emprestar apenas sua voz a Joana, tem uma atuação primorosa)!
Mesmo sem saber dos detalhes, é de desconfiar que essa emergência negra em São Paulo não tenha surgido de repente, antes fruto de muita luta (e luto), com algumas frestas durantes os governos petistas nas esferas federal e municipal, que permitiram uma afirmação positiva do ser negro (e periférico) - mesmo dentro de valorações dadas por brancos. Parte de nossa elite e seus asseclas de classe média, ao verem as populações periféricas - bichos escrotos que vivem nos esgotos? - ocupando os mesmos ambientes,  como se fossem pessoas "normais", ganhando prêmios e editais que antes ficavam sempre com os brancos (este escriba teve sua peça na primeira suplência no edital em que Buraquinhos... foi contemplado, e reconhece que a escolha foi mais do que justa), mostrando que ou os brancos se esforçam de verdade ou serão devorados pelos valores meritocráticos que hoje defendem, superados por quem até ontem acusavam de inferiores (como tem sido o caso do rendimento dos cotistas nas universidades públicas), esboçam alguma reação - simbólica, política, estatal. Reação baseada no medo. Medo de perder privilégios - de ser branco, de ser o universal, de ser o melhor independente da qualidade -, medo de ter que se encarar no espelho sem máscaras, sem filtros do Instagram. Bolsonaro, Doria Júnior, Witzel, Zuma são algumas faces mais visíveis que esse medo ganhou. Ironicamente são o próprio espelho dessa classe que vê sua impotência diante da emergência negra - broncos, chulos, torpes, desqualificados, mas detentores do poder. Por isso, por causa do medo de ter sua impotência escancarada para os seus e para o mundo, a necessidade de um pacote anticrime que cala o negro com a morte, de cenas escatológicas a desmerecer o carnaval de rua, mirar na cabecinha negra e atirar, de acabar com a cultura, de trucidar com a educação (já tão capenga) e entregar as crianças às igrejas evangélicas (por mais precária que seja, a escola ainda é minimamente crítica, e permite a elaboração de rotas de fuga da normopatia que o poder deseja).
Gota D'Água {Preta}  é tragédia contemporânea nestes tempos trágicos; e se na cena os personagens caminham para seu destino implacável, o que o palco faz vibrar é o devir em aberto para as lutas que todos - negros e brancos, homens e mulheres, cis e trans, privilegiados e renegados - temos pela frente se desejamos de fato viver numa sociedade democrática, plural e igualitária.

10 de março de 2019

terça-feira, 5 de março de 2019

Cabeças que sangram (é carnaval)

Me aproximando de uma das entradas da estação Ana Rosa do Metrô, vejo um homem no chão e outro sobre ele. Há um grupo de pessoas que recém saiu do ônibus que dificulta minha visão. Imagino que o homem deitado no chão tentou algum furto e está imobilizado, enquanto esperam as forças da "ordem". Assim que o ônibus parte, reparo que há um carro da polícia e dois militares assistem impassíveis aos dois homens. O homem no chão tem a cabeça sangrando, uma poça de sangue ao seu redor, está bastante agitado e é amparado pelo que está sobre ele. Cabeças que sangram. A imagem me traz a lembrança de cena vista rapidamente do carro, em Florianópolis, em janeiro. Voltávamos do Pântano do Sul, próximo ao meio dia do dia mais quente dos últimos noventa e oito anos (segundo noticiou a imprensa). No acostamento da estrada, no meio do nada, um carro da polícia - dois militares conversam com um homem que sangra pela cabeça. Pode ser que o homem, diante daquele calor e daquele sol, tenha caído, batido a cabeça e os policiais estejam ali a auxiliá-lo. Igualmente possível é que o ferimento tenha sido causado pelos policiais. Cabeças que sangram. Uma polícia de confiança. Certa feita, passava em frente o Edifício Wilton Paes de Almeida (o que desabou em maio do ano passado), e um homem alcoolizado tinha um ferimento na cabeça que vertia sangue. Em desespero se esforçava para afugentar os conhecidos que tentavam facilitar a vida de um bombeiro que chegara para ajudar - "calma, não é a polícia", diziam, sem serem ouvidos. Cabeças que sangram. A polícia que mais mata e mais morre. E os policiais militares, presos em suas viseiras de guerra, não veem ligação alguma entre matar e morrer - e acreditam piamente que a paz dos cemitérios trará uma vida de paz, apenas não atentam que então estaremos todos mortos. Assim como creem que pôr medo é ter autoridade - tal qual fazem os "bandidos" que dizem combater. Com a sensível diferença que se os "bandidos" usam da força para se impor inicialmente, não raro ganham o respeito dos que vivem em seus territórios não por medo, mas por autoridade mesmo - a PM, em compensação, só consegue se impor pelo medo, pelo autoritário, nunca pela autoridade, nunca pelo respeito. Cabeças que sangram. Um Estado que exclui parte de sua população, tida como inimiga. As elites - políticas, judiciárias, midiáticas, econômicas - hipocritamente ignoram que uma polícia que mata é uma polícia que pede também para ser morta - PMs são bucha de canhão para proteger seu patrimônio e seus privilégios, e a violência dificilmente os atinge diretamente para terem com o que se preocupar. Quem não reagiu está vivo. Mirar na cabecinha... e fogo! Cabeças que sangram. Quase sempre as pretas pobres periféricas. Às vezes, mais recentemente, também sangram cabeças brancas - junto com braços que quebram (mas há punição para policiais que são pegos pela imprensa agindo tal qual bandidos: afastamento para funções administrativas; alguns preferem virar motoristas de deputados). É carnaval e é proibido Lula Livre. É proibido Lula. É proibido. Máscaras e Black Blocs no passado, fantasias e blocos carnavalescos no futuro? Mas seguimos livres para festejar a morte, com ou sem sangue, inclusive de crianças, seja de Arthur, seja de Marcos Vinícius - necrossociedade fascista (e ainda assim Marielle Franco vive e resiste!). Cabeças que sangram. Polícia que observa. Porque nossos militares são tão confiáveis no trato com a pessoa, no respeito à vida, que há lei que impede a PM de socorrer vítimas. Polícia sempre suspeita. Um dos militares se aproxima de uma mulher que acompanha a cena e pergunta se ela presenciou algo. São cinco da tarde, pela hora e local, descarto que o sangramento na cabeça do homem tenha sido causado pela polícia: pode ser que tenha sofrido algum ataque homofóbico ou mesmo de algum grupelho neofascista "empoderado" pelo "mito", atacando aleatoriamente quem encontrasse na rua - afinal, é neofascismo -, pode ter sido simplesmente que, muito bêbado, tenha caído e se machucado - afinal, é carnaval em tempos de neofascismo. O homem agita a cabeça como meu gato quando foi atropelado - a cena me perturba, eu sigo meu caminho. Nunca vi PM fantasiado de palhaço assassino portando machado para abordagem nos Jardins*. Cabeças que sangram. 


05 de março de 2019

PS: fiquei sabendo após ter publicado a crônica, mais um exemplo dramático de "cabeças que sangram" neste país do neofascismo bolsonarista-evangélico http://bit.ly/2EOWQKY

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Um domingo preguiçoso me leva a outras paragens

Domingo, acabamos de almoçar. A tarde está quente, em especial o sol, porém o calor não chega ser desagradável, antes um convite à preguiça. Convite reforçado pela rede e pela própria casa de Natália.
Desde que ela se mudou fico tentando imaginar como seria quando o prédio foi construído, na década de 1950. A meia quadra da Domingos de Moraes, é o primeiro da proximidade, três andares - no mais, as construções antigas, mesmo as posteriores ao edifício, são sobrados de um andar. 
Lembro de quando, fins dos anos 1980, o primeiro prédio de quatro andares despontou na quadra da casa onde morava, em Pato Branco. Meus pais reclamavam da sombra, da falta de privacidade (o fato de se limitar a quatro andares, diziam, era que isso desobrigava de elevador). Lembro do gelo das geadas que passaram a durar até próximo do meio dia, no fundo do quintal - eu gostava. Logo subiria o segundo prédio, o terceiro, o quarto - no lugar da primeira escola da cidade, expulsando a moradora, uma das pioneiras de Pato Branco, que sofria de Alzheimer e vivia no passado -, o quinto, finalmente, tinha elevador e oito andares, acabando de vez com o sol da manhã na casa. Uma década e Pato Branco se tornaria uma cidade pequena que se acha grande: vertical (porém sem elevador), congestionada, pessoas isoladas em seus caixotes e nada - sequer as fofocas nas cadeiras das calçadas - para dissipar o tédio que se renova a cada nascer do sol junto às plantações cheia de agrotóxicos - doses homeopáticas de Napalm autorizadas pelo governo e regadas alegremente pelos colonos.
Na década de 1950 São Paulo já tinha seus arranha-céus, não a Vila Mariana. Qual teria sido o impacto deste predinho, colado na calçada. O começo do fim do bairro? Ou a escassez de televisores e as forças da ordem ainda não impondo a paz de cemitérios nas ruas, por um tempo mais forçavam as pessoas a se encontrarem, não importava quão acima do chão estivessem? 
A varanda está cheia de plantas, a rede com as cores do arco-íris fica para o lado de dentro. Ainda que haja muitos prédios nas cercanias, poucos atrapalham a visão do céu dali da sala. Acompanho as nuvens desfilarem pelo céu azul, como fazia em criança, deitado na grama, olhando para o céu, para nuvens ou estrelas, sem procurar nada, formas familiares ou constelações (nunca soube identificar nenhuma constelação além do Cruzeiro do Sul), apenas observá-las - no máximo, nas noites sem nuvens, eu gostava de ver aquele borrão branco que diziam ser uma galáxia. Pelo apartamento de Natália ser no primeiro andar, colado na calçada, a rua parece seu quintal. O pouco movimento, a preguiça do calor, o balanço da rede, o azul do céu, fazem com que me sinta em alguma cidade pequena de algum tempo de antanho, de forma alguma em um bairro central da maior cidade brasileira. Pato Branco? Ou São Paulo mesmo? Ou qualquer coisa entre as cidades que já me habitaram? Presto atenção na calçada, uma pessoa passa em ritmo de domingo: mais de seis décadas atrás, o antigo morador, aproveitando a preguiça de um domingo de fevereiro, teria visto Lasar Segall passado pelo outro lado da rua?

24 de fevereiro de 2019

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Uma aventura banal de almoçar na Liberdade num domingo


Para almoçar na Liberdade no domingo, faz-se mister alguns requisitos, além do elementar vil metal (não convém se fiar nas versões plásticas): estar com tempo, paciência, bem acompanhado e sem muita fome ao chegar (pois a fome estraga o humor, corrompe as boas companhias e retarda a passagem do tempo). Quer dizer, ou é isso, ou é um smartfone, que aí você esquece "naturalmente" do tempo, da fome, das companhias chatas (e das legais também) e, se não te cutucarem, esquece até que está num restaurante e pretende almoçar. Enfim, me filio à primeira tradição, e vou com um casal de amigos almoçar num conhecido restaurante chinês, espírito preparado para as aventuras que eventualmente nos aguardam - ainda que, decepcionante, hoje há um garçom e duas garçonetes que falam português nele, diminuindo potencialmente a aventura (como pedir para levar a sobra para viagem e ser servido de um novo prato, igual àquele que resta mais da metade na sua frente).

O casal de amigos queria ir à uma da tarde, bato o pé: ou onze e meia ou duas e meia. A contragosto, aceitam, e chegamos às duas e meia. Eu esperava quinze minutos de fila, eles imaginando entrar direto, cozinha prestes a fechar, e a realidade nos brinda com quarenta minutos para curtir o apetite. A fome aperta nessa espera, e ao vermos um casal que se levanta e sai, deixando o cardápio sobre a mesa, já nos antecipamos no que vamos pedir, para não termos o mesmo infortúnio de sequer conseguirmos fazer o pedido.
Sentamos à mesa e não tarda para uma garçonete se aproximar e perguntar se é dali que pediram frango com gengibre - negamos e ela sai com o prato para a frente do restaurante. Caçamos outra garçonete, ela praticamente atira o cardápio e se prepara para sair, sem nos dar tempo de fazer o pedido, quando é parada pela primeira atendente, carregando o tal frango com gengibre - que após breve conversa parte para o fundo do restaurante. Aproveitamos a deixa e não deixamos ela sair sem anotar nosso pedido. Não demora muito e chega uma garçonete perguntando se é ali frango e carne com legumes - nosso pedido é apenas frango (meu amigo é alérgico a carne bovina). Ela sai para a frente do restaurante, a moça com o frango com gengibre volta a passar, agora para o andar superior, a carne e frango com legumes passa também, em direção aos fundos do restaurante - e logo veremos novamente o frango com gengibre indo passear na frente do restaurante. Nosso pedido chega (o que faz com que nos distraiamos da saga do frango com gengibre), frango com legumes - simplesmente tiraram os pedaços grandes de carne do prato de carne e frango com legumes há cinco minutos trazido. Aviso que não faz sentido reclamar, até porque pode ser tarefa hercúlea que nos entendam; se for o caso, melhor ficar só com o segundo prato - tofu com camarão. Meu amigo olha desolado, eu comento: "avisei que aqui é com aventura", "mas quando viemos foi tudo certinho, trouxeram exatamente o que pedimos", "é que vocês deram azar, agora estão conhecendo o restaurante em toda sua plenitude". Ele opta por fazer uma seleção criteriosa do que por no prato, tentar aquilo que não estaria contaminado. Leva tempo nisso, bem mais que para tirarem as carnes, na cozinha, minha fome apertando enquanto ele analisa detalhadamente cada coisa que pega - é o momento em que o humor vai dar uma voltinha e só volta depois de comer um mínimo. O tofu demora, mas chega. E a última parte do pedido, o arroz branco, para acompanhar, nada. Pedimos a uma garçonete, "tá bom", ela diz e some. E logo passa por nós, e nada do arroz. Pedimos a outra. "Está faltando? Já trago". Mas não traz. Pedimos à garçonete brasileira, ela nos explica: "quando é assim, tem que pedir logo que trazem o prato, porque se não é capaz de esquecer". Agradecemos e esperamos pelo arroz... que não vem. Os pratos principais já estão pela metade quando pedimos a outra garçonete, e ela não tarda dois minutos para trazer três potes - havíamos pedido dois.
Se o arroz havia sido uma novela, pedir para embrulhar o que sobrou para viagem e pagar a conta foi tarefa ainda mais árdua. A terceira garçonete - uma das brasileiras - nos faz um gesto pedindo paciência de uma delicadeza que nos faz temer levar um soco. Na quarta garçonete a quem pedimos, ela sai do nosso campo de visão, para logo voltar, se dirigir ao armário que fica na nossa frente e pegar duas embalagens de isopor. Finalmente!, comemoramos, e ela então vai embrulhar a comida de outra mesa. "O restaurante está já pouco movimentado, não dá para justificar como com o arroz, que tinha movimento", meu ingênuo amigo tenta entender, eu explico: "eles tentam manter o padrão de qualidade, independente de muita ou pouca gente, ou então o restaurante perde mais uma boa parte do charme" (parte desse charme ele perder quando passou a se adequar às normas da vigilância sanitária, para evitar ser fechado de tempo em tempo). Ao cabo de vinte minutos e seis pedidos, nos fizeram o favor de embrulhar para viajem e nos dar a conta - estávamos libertos!

04 de fevereiro de 2019



segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Pequenas lembranças em uma tarde quente

Acompanho Luis até a rodoviária da Barra Funda. Comento com ele que o calor de São Paulo destes dias me faz lembrar do título de um filme que vi quando fazia curso de espanhol, em 1995, 1996, por aí: "El aliento del Diablo". Não lembro de absolutamente nada do filme - salvo o título -, mas esse bafo seco que sopra em SP me parece digno de relatos bíblicos infernais ou dos meus piores dias em Campinas ou Ribeirão Preto. Estou vestido todo esporte, mas a roupa não é fresca para os mais de 30°C. A camisa de futebol não é dry fit ou qualquer tecido especial, é do Putaquepariuprafora!, time da faculdade, do campeonato de 2004. A calça é um pouco mais nova, dois ou três anos, do tai chi, tactel, boa para dias de chuva, pois seca rápido - quando saí de casa ameaçava chover -, para agora, me gruda nas pernas suadas. O óculos que uso não é esporte e também já tem uns anos de uso - oito, para ser mais preciso -, e grau que não me cabe mais, descobri semana passada (minha miopia regrediu 0,75 em cada olho); está todo troncho porque Libertad, minha gata, o derrubou e vários livros em cima e ela em cima de tudo. O tênis, esse sim, é novo! Tem uma semana, é mais bonito, mais confortável e - alegria do mão de vaca aqui - vinte reais mais barato que meu anterior, comprado dois anos antes (isso dá 17% de economia, não é pouca coisa!). Luis toma seu ônibus e eu vou pegar o metrô. Estou na escada rolante quando o trem chega e resolvo apressar o passo - desejo de entrar logo em um ambiente com ar condicionado e de chegar logo em casa. Ao sair da escada rolante me vem uma lembrança anterior ao meu óculos com grau a mais, à minha calça grudada na pele, à minha camisa do Puta, ao filme da aula de espanhol do professor Erivelton. Lembrança de quando estudava no Colégio das Irmãs (não era o nome oficial, mas cidade pequena autoriza essas simplificações), meus doze, treze anos, o corpo começando a crescer mais rápido do que a cabeça era capaz de atualizar a auto-percepção, e o chão visto de perto reiteradamente, o que me fazia morrer de vergonha. Pois saí da escada rolante e corri para pegar o trem. Meu tênis novo enroscou na minha calça e enquanto meu óculos e meu celular (celular flip, com vibracall, me sinto um up-to-date de 1999) deslizam pelo piso ouço "uuuufffffs" e "aaiiiis" de pessoas empáticas às dores do outro que se estatela no chão - o piso do metrô é gelado, como era o do Colégio das Irmãs. Recolho meu óculos, meu celular, confiro que minha carteira segue no bolso e retomo o trote para o trem, como se não tivesse acontecido nada, apesar das dores dizerem o contrário. Foi só quando ele fechou as portas que me lembrei de ver se minha chave de casa também estava no bolso - estava. Já no aconchego do meu lar - onde faz falta um ventilador - me certifico que um quarto de século se passou, e se o joelho direito ralado não se fez acompanhar de vergonha pela queda em público, tampouco veio sozinho: uma leve dor no ombro direito e uma baita dor nas costas ajudam a recordar minha pequena desventura nesta segunda feira de bafo infernal.

17 de dezembro de 2018

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Sextou na marginal Tietê

Sextou! São quase dez da manhã de uma sexta-feira banal nestes Tristes Trópicos. Diferentemente dos últimos dias, o clima está ameno e o céu, nublado. À pé, atravesso a ponte Cruzeiro do Sul. Da marginal Tietê sobe o ruído do trânsito carregado. Da ponte, vislumbro a São Paulo das escolhas erradas: a retificação do rio de Ulhoa Cintra - e a própria negação de possível função paisagística (ou mesmo de transporte, que não de esgoto) do rio, dando um respiro ao cinza urbano -, a marginal de Prestes Maia, o metrô de Faria Lima que corre ao meu lado - cujo projeto do consórcio alemão descartou estruturas e espaços prontos ou reservados para o modal (como o que depois viria a ser a terceira pista de Serra, outra escolha errada para éssepê), em favor de uma rede de custos elevadíssimos. Na beira do rio, junto a uma saída de águas pluviais (quero crer), observo entre as tremulantes bandeiras do Brasil fixadas na ponte, um homem. Ele está terminando de lavar roupa. Está na última peça, que estende ao lado das demais, no concreto. Mais de uma dezena de pombas o rodeiam, acompanham sua lida. Ao terminar de estender, ele pára e fica olhando para algo que não percebo - outra bandeira atrapalha minha visão. Ou talvez olhe para o nada, para a São Paulo das escolhas erradas, para o Brasil de patriotas canalhas, que amam os "USA" e odeiam o brasileiro. A previsão é de chuva a partir do meio dia - temo que não dê tempo de sua roupa secar -, o trânsito segue pesado.

07 de novembro de 2018


segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Lost in Translation na Liberdade

Não sei por qual diabos, acordei com música dos Mamonas Assassinas na cabeça. Costumo brincar que tenho um DJ Interno que só toca podreira dos anos 80 e 90 - às vezes cantarolo para Natália a música que o DJ colocou e ela pergunta de onde foi que desenterrei aquilo, como se eu soubesse. Ela já até me fez assistir à animação Divertidamente para poder fazer piada com o tal DJ. Talvez Mamonas tenha sido vingança antecipada do DJ Interno por saber que o domingo prometia ser bom musicalmente - à noite iria à apresentação d'O Corpo (trilhas de Uakti e Metá Metá), e de dia, a um evento de Minyô, música folclórica japonesa, no qual cantariam Natália e Vinícius (além de outras 77 pessoas, as quais não vi todas, tendo perdido a parte principal, a do concurso que valia uma viagem para o Japão).
Ao chegar na Associação Kyôdo Minyô do Brasil, na Liberdade, me veio Legião Urbana à cabeça (por conta minha, não do DJ): “festa estranha com gente esquisita”, ainda que o destoante ali fosse eu, e sequer tenha sido a festa mais estranha que já fui na Liberdade - nada comparado a uma outra associação cultural japonesa, decorada para natal, onde serviam feijoada vegana em um evento indiano. Enfim. Num salão, o palco ao fundo tem uma discreta apresentadora à esquerda. Discreta quanto ao visual e ao local onde está, porque ela fala mais que apresentador de talk show empolgado com um assunto que gosta. Como só falava em japonês, não sei se o que ela falava era importante ser dito, ou seguia o padrão dos programas televisivos - só sei que falava e falava e falava. Num dos lados do salão, atrás de uma longa mesa, pessoas sisudas vestidas de terno com uma grande flor de origami na lapela, flores que me fizeram lembrar dos gibis da turma da Mônica, as medalhas de concursos nas histórias - desconfiei que eram os jurados da hora do concurso que perdi. As únicas coisas que eu realmente compreendia naquele salão eram a data, escrita em português, as bandeiras do Brasil e a do Brasil comunista que o PT queria impôr - conhecida no resto do mundo como bandeira do Japão. Nem mesmo o pavão ou fênix com cara de peru brincando um novelo de lã (símbolo do evento) me foram de clara compreensão. No início eu até tentei pescar algumas palavras, e achava que estava conseguindo: né, arigatô, uataxi, namastê - e sabendo que namastê é palavra indiana, passei a ter sérias dúvidas se eu entendera qualquer uma, além de Natária, quando chamaram Natália para o palco. Me senti Bill Murray no filme de Sofia Copolla, Encontros e desencontros ("tradução" medonha para Lost in Translation, só não pior que o nome dado em Portugal, O amor é um lugar estranho). As pessoas se levantaram e ficaram em silêncio, eu também; aplaudiam, eu também - inclusive os aplausos eram nos momentos mais aleatórios possíveis para minha compreensão ocidental. Como fiquei apenas na parte que não era concurso, foi interessante ver as reações do público, muito participativo e tolerante com falhas. Na primeira fila, duas senhoras marcavam com palmas o ritmo das músicas, para que nenhum dos amadores ali se perdessem. Alguns dos cantores esqueciam da letra - inclusive um que não parecia tão amador assim -, e a plateia cantava para ajudar. Outras horas acho que cantava junto só para cantar, mas pode ser que fosse outro lapso da letra ou do tom, não sei, estava bacana a festa, e estava boa a música. Na hora do almoço, quase todo mundo com seu isopor com o bentô - parecia recreio de escola infantil, cada criança com sua lancheira, com a diferença que eram um pouco mais velhos e não ficavam vendo e trocando o que cada um tinha, já que todos tinham o mesmo bentô (deixei para almoçar depois, já que Natália estava proibida de comer, pois iria cantar logo após o almoço). Enquanto almoçavam, homenagens a mais pessoas enternadas - uma tática esperta, deu pra cumprir essa formalidade sem incomodar a parte legal do evento. Após o almoço, os dois pontos principais a que vi: uma apresentação de taikô, a batucada japonesa, com um senhor que parecia o Henrique Meirelles cheio de vitalidade ao fundo (inclusive me fez pensar que uma cultura que não produz uma boa batucada deve ser olhada com certa suspeição); e uma senhora muito velha, de bengala e grandes óculos, cantando e dançando feito Liam Gallagher, ex-Oasis. 
E como quando assisti ao filme da Sofia Copolla, ao fim de duas horas pude sair de lá e tudo estava normal, pessoas falando português, a vida que segue, e o horário meio em cima para comer e ir assistir ao Corpo. Entretanto, por garantia, fomos a um restaurante onde todos os garçons falavam português. 

06 de agosto de 2018

PS: Aceito convite para algum evento de música folclórica e comidas gostosas da comunidade árabe (ainda que saiba que a imigração Argelina não é significativa para cá e não poderei desfrutar de música chaabi).

quinta-feira, 19 de julho de 2018

Entre fantasmas e ratos

Ainda que não tivesse horário marcado, sequer compromisso, saio atrasado de casa, vou em passos rápidos para o metrô. Quase chegando na estação cruzo com um homem que me lembra o Valdeni. A viagem é curta, duas estações, mas anda arrastada em meio à lembrança da angústia que me tomou ao saber da notícia, quantos dias passei fugindo dessa imagem, querendo pensar em outra coisa mas não conseguia parar de imaginar ele se atirando na frente do trem, de mochila, camisa vermelha (do Brizola?) e chinelo rider (hoje ele estaria na moda)? Vai, vai se gauche na vida - num mundo onde quem é diferente sofre bullying. Foi em 2004, janeiro. Não sei quanto tempo depois, Paulo comentou que o que o surpreendia não era uma pessoa se jogar na frente trem, era só uma fazê-lo. Deveras. Mais surpreso ainda quando Misson me informou que se suicidava uma pessoa cada duas semanas no metrô - eu imaginava a cada dois dias. Pior ter que ouvir de uma paquera que Valdeni era fraco, por não suportar calado a humilhação desde longa data sofrida - fácil ser dito por uma evangélica que se escora num narcisismo coletivo tosco. Desço do trem e antes de sair da estação passa por mim um homem que lembra outro amigo, Rodrigo. Não quis saber como foi e tenho dificuldade para lembrar o ano em que se matou. 2012? Não, 2012 acho que foi o Márcio se atirando de um prédio. 2013? 2014? Entro no restaurante para almoçar, o mesmo onde escrevi minha última crônica paulistana de 2012. Faz calor e o clima é seco, naquele dia de dezembro talvez fizesse calor, mas a chuva amainava o desconforto. Eu estava com um quê de melancólico então, apesar da vida nova que São Paulo representava. Valdeni não estava mais, meu avô havia partido há dois meses. Mas ainda estava Rodrigo - não sei se em 2012 ou 2013 havia trocado vários e-mails com ele, que tinha tentado suicídio pela primeira vez; "só quer chamar a atenção", acusou um amigo em comum -, estava meu pai, estava Misson. Havia um quê infantil de descobrir o mundo - São Paulo foi um mundo novo - com olhos ávidos e brilhantes de tantas novidades, havia um quê adolescente de achar o futuro ainda prenhe de todos os caminhos - e eu bem tentei, sempre acertando a trave, iluminação, dança, aula no ensino médio, doutorado, marcenaria. Talvez essa melancolia me pegasse aquela época, não sei, por ter levado tanto tempo, depois de ter deixado a cada de meus pais, para achar uma cidade onde finalmente me sentia em casa; pelos amores que aquele ano me deu, mas logo tirou - a morte então tinha antes um sentido figurado e era positivo, abria espaço para o novo. Agora a melancolia que me abate é desse futuro que se estreitou, nas amizades perdidas - não para o tempo, mas para a morte, sem qualquer conotação figurada. Ao menos quesito amor, nunca estive tão bem, com uma pessoa como a que agora compartilho meus momentos. Pela manhã havia recebido uma mensagem de uma  mulher que estava lendo meu livro sobre a perda da Misson. As mortes morridas doem mais que as "matadas", mas um amigo ou conhecido se suicidando por ano, com a regularidade de Cronos, também dói. A crônica daquele restaurante, em 2012, eu escrevi, houve uma outra, anotei os pontos de minha caminhada por São Paulo em um papel, mas nunca a transformei em texto. Era também melancólica, e eu temia o "arcaísmo tecnicamente equipado" que vira no Viaduto do Chá, onde jogadoras de búzios em seus banquinhos, mesas e conchas eram soterradas pelos alto-falantes de pregadores evangélicos anunciando o inferno a todos que não fossem como ele - alguns pastores e políticos anunciavam a morte breve para quem eles não gostavam (ou gostavam demais?). Saio do restaurante, receoso de passar por algum outro fantasma. Meu destino é próximo à antiga rua dos Turcos, a 25 de março. A rua Florêncio de Abreu sempre me traz certo deslumbre, fico tentando imaginar o que não era ali no início do século passado, casas chiques no caminho entre a estação da Luz e o centro da cidade. Algumas casas estão bem conservadas, outras, abandonadas, à espera do tempo derrubá-las para poder entregar o terreno à especulação imobiliária - como não é um lugar da modinha, como a Paulista, não há nenhuma comoção com esse desdém histórico. Defronte a uma dessas casas moribundas está sentado um morador de rua, ao lado dele há uma gaiola. De longe não consigo identificar que bichos traz preso, parecem duas ou três pombas rolas - e me questiono onde teria conseguido, não me lembro de ver desses pássaros em São Paulo. Pouco antes de passar por ele, mexe na gaiola, para melhor ajeitar a comida, três ratos ocres se movimentam no exíguo espaço. Sinto um aperto no estômago - no tal do plexo solar. Uma nuvem negra se põe sobre mim. Certamente muitos veriam ali quatro ratos. Eu vejo uma sociedade doente. Um homem em companhia de três ratos. Três ratos fazendo companhia a uma pessoa, que ajeita com cuidado a comida deles. Será que se sente irmanado dos ratos? Conversa com eles quando tem alguma ideia ou vê algo que precisa compartilhar com alguém? Quanto de afeto dedica àqueles bichos - e imagina ser a recíproca verdadeira -, afeto negado por outras pessoas? Talvez tenha sido uma escolha deliberada daquele homem e ele seja feliz - e eu não consigo captar isso da minha visão de mundo classe média-pequeno burguesa. Talvez seja uma cena banal, e eu faço um dramalhão onde há apenas mais do mesmo, a cidade e aquilo que não queríamos que existisse e por isso viramos o rosto. O que sei é que, em meio a recordações dolorosas e melancólicas, o homem e seus três ratos rasgam feito navalha meu estômago, eu me equilibro para parecer uma pessoa normal enquanto caminho na cidade, até chegar em casa e tentar desabafar de alguma forma - a forma de um texto.

19 de julho de 2018

PS: A PM passa correndo e cantando enquanto escrevo esta crônica. "Subi o morro e tomei um tiro/ mas quem morreu foi o bandido". Um homem alimentando seus ratos tem mais dignidade.

domingo, 15 de julho de 2018

A construção (e naturalização) da anti-cidade

Pelo (pouco) que conheço de Paulo Mendes Rocha, deve ter sido de caso pensado que a frente do Sesc 24 de Maio, no centro de São Paulo, seja apta para que personae non gratae do estabelecimento - mas assíduos viventes do entorno - pudessem se sentar. A primeira vez que me dei conta disso, o espaço era ocupado por humilhados do parque com os seus jornais - pedintes, moradores de rua - e imigrantes negros. Hoje, ao passar em frente, os imigrantes seguem ocupando parte do espaço, porém dividem-no agora com pessoas aparentemente inseridas na ordem produtiva, que ali descansam enquanto observam o movimento da rua Dom José de Barros - talvez seja por conta do horário que eu tenha passado. Com a prefeitura tendo retirado os bancos da quadra de baixo - além de toda a lógica (urbanística e ideológica) que marca as praças de São Paulo -, esse pequeno espaço se tornou um dos raros pontos de estar e não de circulação - de pessoa ou de dinheiro: pode-se sentar ali despreocupadamente, sem ser obrigado a consumir ou seguir para algum lugar. A ver quanto tempo o Sesc resiste antes de "enfeitar" o vão sob sua marquise com estacas ou grades, como sói acontecer na cidade, com exemplo da própria prefeitura (não nos esqueçamos das rampas anti-pobres do PSDB de Serra).
Por enquanto, quem dá o exemplo da "cidade linda" almejada pela nossa elite é o Metrô. Em comunhão com a prefeitura e o CCSP, o Metrô entrou na luta para limpar a região da Vergueiro de não-pessoas - esses homo sapiens que não tomam banho todo dia e não consomem o suficiente para terem direito à cidadania. O CCSP, ainda durante a gestão Haddad - dando continuidade ao que havia começado com Kassab -, limpara os seus espaços internos e corredores de quem está lá para usar o centro cultural sem promessas de consumo - mesmo que alhures. Acompanhei de perto o processo de limpeza social, do um real para assistir a um filme, passando pela exigência de RG para entrar na biblioteca, ao cerco da assistência social a todo morador de rua que se utilizava do local (para funções designadas, nada subversivo, nem mesmo desrespeitosa com outros usuários) - até fazer com que fossem para longe, ou trocassem de calçada, ao menos -, assim como os seguranças perseguiam negros desprovidos de crachá funcional (é certo que nada comparável aos atos de manutenção da "higiene e harmonia social" que presenciei próximo ao Colégio Bandeirantes, cinco quadras distante).
Ao lado da estação Vergueiro, entre o elevador e a construção privada mais próxima há uma mureta. Espaço para passagem de ninguém, costumava ser ocupado por alguns desses pobres expulsos do CCSP, além de grupos de amigos, pessoas sem nada para fazer e casais paquerando. Talvez por conta do perigo para a ordem pública que seja pessoas paradas em local (iluminado e visível) onde não se vai a lugar nenhum - ainda mais mendigos, sem poderem ser enxotados -, mal exemplo para as crianças pessoas se beijando (inclusive pessoas do mesmo sexo, olha a pouca vergonha!), o Metrô tratou de isolar o local. A questão é que um raro ponto público para se permanecer foi desativado, como um aviso: "este local é de passagem, esta cidade se presta unicamente à circulação e ao consumo. Quer ficar de boa? Fique em casa, consumindo programação televisiva".
A estação São Bento segue lógica semelhante, talvez menos explícita, porque "justificada" - conforme fomos adestrados a aceitar esse tipo de argumento como justificativa válida. Parte da estação vai se tornar um centro de compras, logo, "logicamente", precisa ser cercado - até para explicitar que ali agora é um local privado, aberto ao público por um ato de vontade do dono, não por direito dos cidadãos. Grades já foram fixadas nas entradas da estação. O quê mais perverso nesse processo do largo São Bento-transformado em metrô-transformado em shopping privado é o slogan da propaganda do futuro centro comercial: "um oásis no centro de São Paulo". Nada mais óbvio que a publicidade valorizar aquele que lhe paga para falar bem, e o faça muitas vezes depreciando concorrentes. O slogan do shopping do metrô São Bento, contudo, não apenas se diz melhor que a "concorrência": ele diz que o entorno, mais que desinteressante e pobre, é estéril, praticamente morto - mortal. E a tal concorrência a que ele se opõe não são outras lojas, é uma cidade, a cidade que abriga esse "oásis", garante seu funcionamento - e tolera ser desqualificado dessa maneira (imagino se a prefeitura passasse a fazer publicidade em termos parecidos, chamado shoppings de pulgueiros existenciais em favor dos parques e praças, isso nos próprios shoppings). Porque oásis, convém lembrar, não surge em meio à mata tropical, e sim em meio ao deserto, onde poucos seres vivos estão aptos a sobreviver - e o ser humano se encontra em situação extremamente vulnerável. 
Pode-se argumentar que se trata de força de expressão, o que estou totalmente de acordo: expressa uma concepção de cidade, preconceituosa e desqualificadora - e até um pouco desatualizada. Quem circula pelo centro sem preconceitos (e sem dar vacilo, é preciso admitir) sabe que São Paulo se parece com tudo menos um deserto: é rica arquitetonicamente (ainda que seja triste só haver construções recentes), é rica a "fauna" de tipos humanos, dos engravatados aos mendigos, é rica de situações banais a situações excêntricas, quase surreais - em compensação, é mais que conhecida a normopatia anódina que rege espaços privados de uso público como shoppings e Sescs, o que me faz perguntar se a propaganda não tenta justamente ocultar que se trata do exato contrário: o tal Pátio São Bento é, na verdade, um deserto em meio a uma abundante floresta tropical (de concreto e aço) que é o centro de São Paulo (nada diferente de golpistas que diziam, desde 2003, que o PT preparava um golpe). Em tempo: ainda que eu creia que um uso mais diversificado seria mais interessante - com comércio, área cultural (como salas de ensaio para teatro e dança), centros de referência a minorias ou migrantes, etc -, um uso comercial de todo aquele espaço da estação São Bento me parece muito melhor que o não-uso que dele era feito até pouco tempo atrás. O que questiono é cercar esse espaço público e ainda explicitar tal oposição com o entorno.
Cito esses exemplos - e o contraexemplo surpreendente do Sesc 24 de maio - da construção da anti-cidade, da cidade hypster, por serem mais facilmente visíveis - ainda que já estejam naturalizados. É possível a construção da anti-cidade de modo mais insidioso: a cidade hypster é essa cidade da pura positividade classe-média-alta que ofusca pelo brilho toda a sujeira que ela joga para debaixo do tapete - ou para as periferias. É a anti-cidade cuja assepsia social se faz (quase) sem grades e sem slogans toscos - basicamente com a força da grana e, vez ou outra, da polícia. 
É o processo que visualizo na Boca do Lixo, no centro de São Paulo, com seus novos barzinhos ajeitados se sobrepondo aos velhos botecos de gays de poucas posses e imigrantes que tentam a vida em SP, baladas descoladas fechando velhos puteiros, e novos edifícios para quem tem dinheiro - sem nenhuma contrapartida para quem trabalha nos serviços desvalorizados e não tem condições para pagar alugueis abusivos que filhinhos e filhinhas de papai podem. Crackeiros já foram expulsos da região, michês e travestis que faziam ponto por ali minguam - provavelmente porque os cliente se sentem intimidados diante dos conhecidos que agora frequentam o local, não porque essas pessoas encontraram empregos melhores. O ideal da anti-cidade hypster é Vila Madalena, Pinheiros, onde não fossem os porteiros, manobristas e pedreiros, poderia jurar que é Oslo, ou a novela da Globo: só gente branca com boas posses fazendo pose. Uma cidade que busca se ver limpa de diferenças sociais e raciais - não pelo fim das desigualdades, mas pela ocultação e exclusão dos diferentes não aceitos. 
A aceitação da anti-cidade hypster é um processo longo e permanentemente inculcado, via mídia e educação, segue à mesma lógica que nos anos 1980, 1990 e 2000 dizia que o centro da cidade era perigoso, porque habitado por pretos, pobres, putas, gays, drogados e gente "dessa raça", e chique era morar num condomínio fechado e passear nos fins de semana no shopping (porque a semana deve ser devotada ao trabalho em glória do deus dinheiro). Diante do fracasso desse tipo de vida - estreita, pobre e vazia -, volta-se para o centro da cidade - desde que ele seja limpo dos elementos perturbadores da harmonia social-racial, ou seja, desde que dada as condições para uma vida estreita, pobre e vazia, como a dos condomínios e shoppings. É exatamente a mesma lógica, que se não cativa exatamente os mesmos patos, cativa seus filhos, propondo basicamente a mesma solução. É a lógica da valorização do capital e exclusão dos sem-dinheiro-portanto-sem-direitos. Tão naturalizado que nós sequer vemos - quando não louvamos a "revitalização" do centro "degradado". E a anti-cidade vai se construindo com nossos aplausos, para usufruto apenas de alguns.


Reparem em como prejudicaria toda a cidade ter cinco ou seis seres humanos sentados nessa mureta recuada

15 de julho de 2018.