quarta-feira, 24 de abril de 2002

Crônica de um dia qualquer

Eu poderia começar esta crônica com "Querido Diário", fosse ela escrita em um. Mesmo não tendo esse fim, eu poderia começá-la assim. Mas, como estamos na era capitalista pós-industrial e não na Idade Média, prefiro começar com "realizando o balanço deste 23 de abril"...
Cria eu, ingenuamente (a cada dia mais me admiro com o tamanho da minha ingenuidade), que havia chances (por favor, controle a gargalhada, olha o vexame) de os EUA não conseguirem destituir o diplomata brasileiro José Maurício Bustani do cargo de diretor-geral da OPAQ (Organização para Prescrição das Armas Químicas, da ONU). Qual não foi a minha decepção ao abrir o jornal e ler que os EUA conseguiram o que queriam. Não se trata de anti-americanismo meu; explico rapidamente o episódio àqueles que não estão a par.
Os países membros da OPAQ permitiriam (teoricamente) o monitoramento, por parte da Opaq, do desmantelamento do seu arsenal químico. Um erro de Bustani foi dizer que os EUA poderiam ser inspecionados, uma vez que fazem parte da organização. Os EUA, "por supuesto", não gostaram, afinal, isso infringe a liberdade e a igualdade do mundo, aquela do "O mais forte manda, o resto baixa a cabeça e obedece". Porém o grande nó se deu na postura "confrontacionsita" e "autoritária" de Bustani, nas palavras do Tio Sam. O confrontacionista Bustani tentava convencer o Iraque a se tornar membro da OPAQ, o que permitiria a inspeção da ONU no seu arsenal, sem a necessidade de usar o aparato militar estadunidense. Ainda bem que os EUA, ao contrário de Bustani, querem a paz e não o confronto!
Eu tinha esperanças de que Bustani conseguisse superar o impasse no Iraque de forma pacífica, através do diálogo, ainda por cima peitando os donos do mundo. A notícia do afastamento de Bustani – opção que teve 87% dos votos válidos, graças aos esforços dos EUA, que se utilizaram de compra de votos, chantagem e coação, à omissão dos humanitários europeus e dos cucarachos, e à atuação medrosa da diplomacia brasileira, foi um balde de água fria nas minhas esperanças. Lutar contra o Sistema, contra os poderosos, contra "o que está aí" parece ser lutar contra a Lei da Gravidade, tentar voar por conta própria; é ter os sonhos, os ideais, sendo, todos os dias, atropelados, arrasados como Jenin.
O jeito é "cuidar da própria vida", me disseram. Como se morar em casa com muros de cinco metros de altura, cerca eletrificada, seguranças, cachorros e andar só de carro blindado fosse seguro (mais, como se isso fosse humano). Querer melhorar o mundo é questão de egoísmo, de sobrevivência de si próprio! Não adianta se armar, se prender, se mudar para um país "de primeiro mundo", para uma ilha deserta no meio do Pacífico. Violência, problemas ambientais, é impossível fugir do mundo morando nele. Vejo apenas duas soluções: tentar melhorá-lo ou, como sugere Pessoa, "se te queres matar, por que não te queres matar? Ah, aproveita!".
Se, pela manhã, tudo me indicava rumo à fossa, à tarde, no encontro dos alunos de filosofia da U$P (por sinal, deprimente o prédio da FFHCH), um estudante da UFPR sinalizou o caminho contrário. Se chamava Roberto, tinha problemas físicos, caminhava de maneira estranha, era coxo, "quebrava" um lado do corpo, os braços finos, de mãos caídas, sem muito movimento, não conseguia pôr água em um copo, e não era a tarefa mais simples levá-lo à boca. Era uma pessoa que tinha tudo para ficar em casa, escondendo sua deficiência, blasfemando contra a natureza. Ele não apenas não fez isso, como foi além. A natureza ele já superou, e hoje briga contra o Sistema. Saiu de Curitiba para dormir em alojamento, e quando reclamou não foi das dificuldades físicas que ele poderia ter tido, mas, em nome dos colegas da UFPR e de quem mais endossasse a crítica, da falta de apoio financeiro da U$P, aos alunos de fora e do preço diferenciado cobrado pelo Bandejão.
"Mas Bustani enfrentava os EUA por uma causa coletiva, enquanto ele reclamava por uma pequena causa, que dependia quase que somente dele e era para ele", pode objetar alguém. Vale lembrar que a luta contra si próprio costuma ser a mais difícil. No caso do Roberto, a afronta ao Sistema ocorreu desde o início: ele venceu o preconceito de que portador de deficiência é incapaz e passou por cima de uma sociedade que aceita somente o corpo perfeito; se expôs, com suas mãos caídas e seu andar estranho, enquanto a maioria se esconde, por ter uns quilos a mais, uma cicatriz na perna, ou qualquer outro detalhe insignificante. Se ele conseguiu superar pré-conceitos enraizados e difundidos, ele pode mudar o mundo; e, eu também, uma vez que tenho a mesma capacidade que ele.
Porém, apesar desse alento, o balanço final do meu 23 de abril de 2002 fica por conta do Radiohead: "Don’t get any big idea, they will not gonna happen".
Amanhã eu melhoro.

Campinas, 24 de abril de 2002

sexta-feira, 5 de abril de 2002

Serão os índios humanos?

Minha intenção era hoje escrever sobre a crise na Venezuela. Estava, inclusive, enquanto esperava o ônibus na rodoviária de Ponta Grossa, lendo acerca do assunto. Foi aí que mudei meus planos. Tão somente se abre os jornais e é possível encontrar análises da esquerda, da direita, dos EUA, do Brasil, de Cuba e da própria Venezuela. O tema que abordarei é bem menos comentado e bem mais presente na nossa realidade de cidadãos brasileiros. Enquanto, como já disse, me debruçava sobre reportagens, análises, comentários e entrevistas sobre a Venezuela, uma criança índia que tinha, creio eu, três anos, me ofereceu uma cestinha, por dois reais. Eu havia, há pouco, repelido secamente outra criança, também índia, que me pedira esmola. Porém, como nesse caso não se tratava de esmola propriamente dita, recusei educadamente a pequena cesta que vendia. Na verdade disse "não, obrigado" com ar paternalista-comovido e um cordial sorriso. Eis minha "educação" (que, infelizmente, não é privilégio meu); uma frase polida, num tom de superioridade e um cínico sorriso: o único sorriso das classes abastadas, que pregam "dinheiro não é tudo", ao mesmo tempo que fazem tudo por dinheiro; o único sorriso de quem não passa e nunca passou necessidades e crê que basta sorrir para melhorar o dia dos outros, inclusive daqueles cujo estômago reclama e se retorce de fome.
Mas não é do cinismo das classes média e alta que quero falar. É sobre esse dejeto social que são, no Brasil e na América Latina, os índios. Voltando ao piazinho da cestinha. Já o tinha notado antes, quando brincava junto a outras três crianças (nenhuma delas aparentava mais de cinco anos). Observei-as por um certo tempo. Estavam (muito) mal vestidas, descalças, sujas, porém brincavam com uma ingênua e despreocupada alegria, rara ser vista nas amedrontadas crianças que brincam nos pátios murados e eletrificados dos prédios de classe média. Eu não sabia o que pensar da alegria daquelas quatro crianças. Seriam felizes? Ou seria aquele um raro momento em que riam, um intervalo na dor daquelas vidas que não serão vividas? E, caso fossem realmente felizes, teriam motivos para sê-lo? Até quando seriam? Uma índia adulta, que deles se acercou, respondeu-me a essa pergunta. Tão mal vestida quanto as crianças, porém sem os traços alegres delas. Será esse o futuro daquelas crianças? Está em voga a discussão de cotas e formas de acesso ao ensino superior para pobres e, mais especificamente, para negros. O respaldo para tais debates é a escravidão e o seu legado. E os índios, que tiveram seu "país" roubado e cuja lei os trata como crianças, incapazes, algo entre os animais e as pessoas, qual debate tem-se feito sobre seu acesso, não apenas à educação (primária), mas à cidadania? Que direito eles têm de fato sobre suas terras, seus costumes, suas crenças? Até quando os índios continuarão aceitando a idéia de que são inferiores aos brancos? E estes, até quando seguirão com o preconceito de que os índios são selvagens incapazes que precisam do auxílio dos brancos para tudo, inclusive para escrever crônicas falando da miséria indígena, sem, porém, a participação deles, sem sequer haver conversado com eles?
Outra vez me pergunto, qual o futuro daquelas crianças? Desço à plataforma. À minha direita, mais uma eloqüente resposta; crianças, adultos e idosos num canto, amontoados entre sacolas com roupas e com seu artesanato. Certa vez li num jornal sobre um índio que havia se formado em filosofia, numa faculdade particular de Palmas, Paraná. Que bom seria se esse fosse o futuro daquelas crianças que ali brincavam e dormiam. Entretanto, o jornal avisava, na mesma reportagem: tratava-se de um fato raro, excepcional, um índio com curso superior. O mais provável é que sigam sendo o dejeto social que sempre foram. Fui até aquele amontoado de pessoas, precisava de uma cesta de tamanho médio. Comprei por dois reais uma que, caso tivesse um selo "Made in China" e fosse vendida nas Casas Americanas, custaria quatro. A utilização que eu faria da cesta: lixeira para a escrivaninha. Isso poderia ser uma triste analogia da função do indígena na nossa sociedade mas, da forma como são tratados, a analogia se dá mais com o que vai dentro da cesta do que pelo seu uso.

Campinas, 05 de abril de 2002