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sexta-feira, 19 de julho de 2024

São Luís: musical e dançante

O hostel em que nos hospedamos fica em um antigo casarão no centro histórico de São Luis. Nosso quarto dá de frente para a rua e as janelas não possuem vidros - logo, o isolamento acústico é precário. Como dito em crônica anterior, isso não foi exatamente um problema, visto que a região tem bem pouco movimento. Na terça, voltamos no início da noite e me irrito com a cantoria gospel a que somos submetidos. Cerca de quarenta minutos depois de iniciado ela se cessa, mas não tarda muito escutamos a cantoria de Nossa Senhora do Carmo - desconfio que fosse alguma procissão, já que é o dia da santa. Ela é mais breve, mas tão logo se encerra entra um batuque. Percebemos que está próximo e vamos em busca: trata-se, na verdade, de uma roda de tambor de crioula, que está acontecendo na Fonte do Ribeirão. Ficamos um tempo a assistir, e mais pessoas se achegam para o tambor - já tarde da noite o tambor terá terminado, mas um batuque ameno segue. 

Não parece que essa musicalidade toda seja uma excepcionalidade no dia a dia ludovicense, antes seu quotidiano.

No domingo da crônica anterior, ao sair para conhecer o Reviver havíamos trombado com um palco onde se apresentava o Boi da Madre Deus, o primeiro a ser registrado, mais de cem anos atrás, ainda pela manhã. À tarde, numa praça nos deparamos com um grupo dançando cacuriá - isso depois de passarmos por tambores sendo aquecidos numa fogueira para o tambor de crioula a que iríamos, sem querer também, assistir a seguir. No mercado das Tulhas, onde degustamos várias cachaças de graça - deu a impressão que o dono tinha a loja com o intuito de bater papo, não de vender -, uma roda de samba; na escadaria que paramos para tomar sorvete, um DJ tocava reggae - e sequer era a escadaria do reggae, que evitamos por estar apinhada de gente, e acredito que a minoria fosse turista - e fora do Reviver nos deparamos com outra roda de samba.

A primeira impressão, do sábado à noite, vai se desfazendo rapidamente - e eu chego a ter vergonha de ter tido conclusões tão precipitadas: São Luís se mostra uma cidade viva e pulsante, mais que isso, musical e dançante, que sabe conciliar seu dia a dia com o turismo, sem se render a este.



PS: e olha que não estávamos junto com o casal de amigas com quem viajamos quando elas fora até a periferia da cidade, conhecer a casa de uma das lendas do reggae local - a história que elas contaram vale por duas crônicas!



19 de julho de 2024.


terça-feira, 16 de julho de 2024

Alcântara, suas ruínas e suas persistências

 


No Maranhão é um sol para cada um: assim me alertava Lia antes da viagem - ela que morou em São Luís na infância. Achei exagero dela - até chegar a Alcântara. Desembarcamos meio-dia, ainda um pouco grogues do dramin (para não enjoar na lancha), e nos deparamos com um mormaço e um sol que me fez, finalmente, entender a expressão do início desta crônica.

Nos arrastamos a Ladeira do Jacaré acima, suando feito chafariz, em ruas de pedras irregulares, que se estendiam pelas calçadas e, em alguns pontos, até as paredes das casas, como se rua e casa fosse uma coisa só - e talvez aqui ainda sejam.

Pela cidade, em especial na rua Grande, pessoas sentadas em cadeiras na rua, vendo o pequeno movimento - no caso, basicamente de turistas que fazem o bate e volta de São Luís. Quer dizer, era isso ou então uma enorme fila do Banco do Brasil. O comércio fechado - inclusive os restaurantes. Na pousada em que ficamos, perguntamos se serviam almoço, e junto com a resposta afirmativa veio a pergunta: o que querem comer?, como se fossem óbvias as opções. As aproximações para vender passeios guiados ou o passeio para ver a revoada das guarás foram feitas na rua, não raro em motos - na Colômbia tive abordagem parecida oferecendo drogas, e em São Paulo nesse tipo de situação é comum oferecerem integridade física em uma troca compulsória pelo celular. Alcântara tem seus pontos turísticos, mas falta um pouco de tato com o turista - e isto não é uma crítica, apenas uma constatação.

As ruínas são o grande ponto turístico para quem passa rapidamente pela cidade - há também museus e não sei se alguma das comunidades quilombolas possui estrutura para receber turistas. Havíamos lido que as ruínas eram obras inconclusas, e ficamos eu e Lia discutindo poeticamente o que seria isso: ruínas do que não foi, restos do futuro do pretérito. Na verdade, há dois palacetes nessa condição - que disputavam quem hospedaria o imperador na sua visita à cidade (na época que o Brasil era um império, só para ressaltar), visita essa nunca acontecida -; os demais palacetes, a igreja na praça principal, o convento, isso tudo são obras do tempo reafirmando sua superioridade sobre a obra humana. O pelourinho - um dos poucos que restaram no Brasil - está defronte o prédio atual da prefeitura, antiga câmara municipal e presídio de um lado, e defronte a ruína da igreja do outro, e só resistiu porque foi arrancado com o fim da escravidão e jogado em algum canto, sendo reencontrado décadas depois e posto no lugar original: aqui, o tempo ironiza sua capacidade de permanência, a despeito do desejo humano de esquecimento.

Já a revoadas das guarás, motivo que nos motivou a dormir em Alcântara, o calor nos venceu e preferimos nos enfurnar na pousada o resto da tarde, até para ter um primeiro descanso em uma semana de viagem.

À noite - quando o calor arrefece - é que a cidade ganha mais vida. Ou então tivemos sorte. Saímos para tomar a fresca - como meus pais faziam em Pato Branco - e defronte a igreja do Carmo, um grupo de dança portuguesa - Flor de Portugal - se apresentava para um considerável público, levando em conta que a área urbana deve ter cerca de dois mil habitantes. Ironia: dança portuguesa, dançada por negros, para negros, na cidade com o maior número de comunidades quilombolas do Brasil - e que seguem na luta, diga-se de passagem e não sem propósito. Depois da apresentação, crianças brincavam pelas ruínas e um pouco mais afastados os namorinhos de adolescência tinha vez nos becos mal iluminados.


Na manhã seguinte, a cidade estava mais movimentada, mas nas lojas nos avisaram: do meio-dia às três estariam fechadas. O grupo que vimos defronte o Banco do Brasil no dia anterior estava agora com suas cadeiras do outro lado da rua, aproveitando a sombra - a tarde trocariam novamente de lado, sempre em busca da sombra e do movimento na rua. Visitamos os quatro museus da cidade, e fomos em busca de um lugar para comer - tarefa difícil, pois os locais que oferecem almoço é preciso reservar com antecedência, para dar tempo de comprar os ingredientes. Por sorte, encontramos um simpático restaurante que funciona como estamos acostumados - de entrar e pedir na hora -, e pudemos, de quebra, provar o licor de jenipapo típico da cidade, distribuído na Festa do Divino (quarenta dias depois da páscoa).

Apesar de pequena e de termos percorrido quase todas as ruas da cidade, saímos de Alcântara com a sensação de que ela ainda escondia muitas coisas entre ruínas e memórias - talvez seja isso o que desponte na Festa do Divino.





16 de julho de 2024


segunda-feira, 15 de julho de 2024

São Luis: primeiras e segundas impressões

Chegamos a São Luís no início da noite de sábado, cruzamos a parte nova da cidade e fomos até o centro histórico, perto da Fonte do Ribeirão, onde fica nosso hostel (que eu ainda chamo por albergue). Não foi possível ver muito nesse trajeto, mas a sensação foi de um pedaço de cidade bonita, com seu casario antigo, mas mal conservado - reforçado pelo comentário de Lia, que me mostrou uma foto da Fonte com um azul forte, ela que hoje está desbotada quase branca -, e sem viv'alma nas ruas. Na hora me lembrei de Cartagena de las Índias, na Colômbia, seu centro antigo super movimentado - de dia e à noite [bit.ly/cG230301]. Na ocasião lamentei que a cidade havia sido usurpada de seus moradores para ser entregue aos turistas. Aqui, nesse instante, me questionei se, diante das condições impostas pelo capitalismo, não seria essa mesma a alternativa para alguma espécie de conservação das cidades e algum tipo de vida - mesmo que artificial - em centros históricos (penso também na região da Sé, em São Paulo).

Na manhã seguinte saímos cedo para conhecer o centro, passar na feirinha de domingo e no Reviver; depois encontraríamos Dedé, tio de Lia, iríamos ao mirante da cidade, no prédio da secretaria da fazenda; ao Palácio Dos Leões, sede do governo do Estado; e ao mercado das Tulhas. De início, reforçou a impressão da beleza da cidade, da necessidade de conservação, e de pouca gente a frequentar o centro. Eu seguia a me questionar: seria o turismo a solução (sem negar sua importância na economia, mas vale lembrar que o turista é antes de tudo um predador)?

Encontramos Dedé - que é geógrafo - na hora da visita ao mirante da cidade. Ele, além de mostrar diversos pontos da cidade e explicar sua formação, desde os séculos passados, até as tentativas de intervenções urbanas recentes, como o Palácio do Comércio, prédio de art decó, próximo à catedral da Sé, a expansão para o norte com a ponte, a partir dos anos 1950, e para oeste, com a expulsão da população mais carente da região central para a abertura das vias expressas. 

O mais interessante nessa apresentação da cidade foi saber que a conservação foi não obra de depressão econômica, como Cartagena de las índias, mas de luta popular pela manutenção de sua cidade também como local de memória; contra a entrega da cidade como um território abstrato para valorização e auto-louvor do capital e enriquecimento das elites de sempre. 

Sem querer ele respondia ao meu questionamento: não, não é só o turismo que é capaz de conservar uma cidade, as lutas populares também o fazem, e fazem-no de maneira ainda mais interessante - porque cheio de vida e histórias, ainda que eventualmente menos aprazível aos olhos dos turistas que por ela passam.


15 de julho de 2024