Mostrar mensagens com a etiqueta Alcântara. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Alcântara. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 16 de julho de 2024

Alcântara, suas ruínas e suas persistências

 


No Maranhão é um sol para cada um: assim me alertava Lia antes da viagem - ela que morou em São Luís na infância. Achei exagero dela - até chegar a Alcântara. Desembarcamos meio-dia, ainda um pouco grogues do dramin (para não enjoar na lancha), e nos deparamos com um mormaço e um sol que me fez, finalmente, entender a expressão do início desta crônica.

Nos arrastamos a Ladeira do Jacaré acima, suando feito chafariz, em ruas de pedras irregulares, que se estendiam pelas calçadas e, em alguns pontos, até as paredes das casas, como se rua e casa fosse uma coisa só - e talvez aqui ainda sejam.

Pela cidade, em especial na rua Grande, pessoas sentadas em cadeiras na rua, vendo o pequeno movimento - no caso, basicamente de turistas que fazem o bate e volta de São Luís. Quer dizer, era isso ou então uma enorme fila do Banco do Brasil. O comércio fechado - inclusive os restaurantes. Na pousada em que ficamos, perguntamos se serviam almoço, e junto com a resposta afirmativa veio a pergunta: o que querem comer?, como se fossem óbvias as opções. As aproximações para vender passeios guiados ou o passeio para ver a revoada das guarás foram feitas na rua, não raro em motos - na Colômbia tive abordagem parecida oferecendo drogas, e em São Paulo nesse tipo de situação é comum oferecerem integridade física em uma troca compulsória pelo celular. Alcântara tem seus pontos turísticos, mas falta um pouco de tato com o turista - e isto não é uma crítica, apenas uma constatação.

As ruínas são o grande ponto turístico para quem passa rapidamente pela cidade - há também museus e não sei se alguma das comunidades quilombolas possui estrutura para receber turistas. Havíamos lido que as ruínas eram obras inconclusas, e ficamos eu e Lia discutindo poeticamente o que seria isso: ruínas do que não foi, restos do futuro do pretérito. Na verdade, há dois palacetes nessa condição - que disputavam quem hospedaria o imperador na sua visita à cidade (na época que o Brasil era um império, só para ressaltar), visita essa nunca acontecida -; os demais palacetes, a igreja na praça principal, o convento, isso tudo são obras do tempo reafirmando sua superioridade sobre a obra humana. O pelourinho - um dos poucos que restaram no Brasil - está defronte o prédio atual da prefeitura, antiga câmara municipal e presídio de um lado, e defronte a ruína da igreja do outro, e só resistiu porque foi arrancado com o fim da escravidão e jogado em algum canto, sendo reencontrado décadas depois e posto no lugar original: aqui, o tempo ironiza sua capacidade de permanência, a despeito do desejo humano de esquecimento.

Já a revoadas das guarás, motivo que nos motivou a dormir em Alcântara, o calor nos venceu e preferimos nos enfurnar na pousada o resto da tarde, até para ter um primeiro descanso em uma semana de viagem.

À noite - quando o calor arrefece - é que a cidade ganha mais vida. Ou então tivemos sorte. Saímos para tomar a fresca - como meus pais faziam em Pato Branco - e defronte a igreja do Carmo, um grupo de dança portuguesa - Flor de Portugal - se apresentava para um considerável público, levando em conta que a área urbana deve ter cerca de dois mil habitantes. Ironia: dança portuguesa, dançada por negros, para negros, na cidade com o maior número de comunidades quilombolas do Brasil - e que seguem na luta, diga-se de passagem e não sem propósito. Depois da apresentação, crianças brincavam pelas ruínas e um pouco mais afastados os namorinhos de adolescência tinha vez nos becos mal iluminados.


Na manhã seguinte, a cidade estava mais movimentada, mas nas lojas nos avisaram: do meio-dia às três estariam fechadas. O grupo que vimos defronte o Banco do Brasil no dia anterior estava agora com suas cadeiras do outro lado da rua, aproveitando a sombra - a tarde trocariam novamente de lado, sempre em busca da sombra e do movimento na rua. Visitamos os quatro museus da cidade, e fomos em busca de um lugar para comer - tarefa difícil, pois os locais que oferecem almoço é preciso reservar com antecedência, para dar tempo de comprar os ingredientes. Por sorte, encontramos um simpático restaurante que funciona como estamos acostumados - de entrar e pedir na hora -, e pudemos, de quebra, provar o licor de jenipapo típico da cidade, distribuído na Festa do Divino (quarenta dias depois da páscoa).

Apesar de pequena e de termos percorrido quase todas as ruas da cidade, saímos de Alcântara com a sensação de que ela ainda escondia muitas coisas entre ruínas e memórias - talvez seja isso o que desponte na Festa do Divino.





16 de julho de 2024