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quarta-feira, 5 de junho de 2024

Uma trilha no feriado [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

Meu irmão convidou, em cima da hora, para fazer uma trilha na praia este feriado. Questionei o horário, se daria tempo - sairíamos depois do almoço -, e ele alegou que sim, que se tratava de uma trilha leve que ele já fizera uma dúzia de vezes. Foi bem específico: iríamos em sentido contrário ao habitual, para encarar o primeiro terço com subidas e descidas mais acentuadas e o último terço mais tranquilo, por um caminho de areia. Ademais, com o tempo frio, apostou (corretamente) que a trilha estaria vazia, assim como a praia. Fomos eu e o Brotinho - a esposa de meu irmão preferiu ficar em São Paulo, com meu sobrinho.

A trilha começou levando a um mirante. Esse trajeto está todo ladrilhado - e desconfio que falta pouco para asfaltarem. Do mirante, uma bela vista - e quase nenhuma pessoa onde o olhar passasse. É dali a trilha vira uma trilha de verdade - uma picada. Meu irmão estava com roupa e calçados próprios para o momento. Eu fui de calça jeans com um calção por baixo e sapato de segurança, para não ter risco de escorregar. O Brotinho, apesar de eu ter sugerido uma roupa mais rústica, foi de legging branca e tênis de corrida. Não estaria de todo ruim se a trilha não estivesse molhada e seu tênis deslizasse e, pior, com várias poças de lama - potreiros - no caminho. 

Meu irmão passou boa parte da trilha se desculpando, alegava que não imaginava que a chuva do final de semana ainda estivesse empoçada. Isso é uma trilha tranquila? eu só pensava, preferindo não tensionar. Querendo mostrar toda sua habilidade, num potreiro mais inclinado, caiu e se enlameou todo. 

O Brotinho, cuidadosa, não caiu, mas em compensação se abaixava para descer as pedras do caminho - até fez um poeminha parafraseando Drummond: “no meio das pedras tinha um caminho, tinha um caminho no meio das pedras” - e não tardou para sua calça ficar preta - parecia que estava fazendo treinamento no banhado. No segundo terço da trilha, quando os potreiros aumentaram, além da calça, seu tênis era torrão de lama irreconhecível. 

Eu era o único que conseguia manter alguma dignidade. Mentira. Estivesse com uma calça de linho clara, ia me sentir puro um malandro do início do século XX, que mantém as roupas intactas, apesar do barro das ruas (no caso, da trilha) e dos percalços da vida (no caso, da trilha de novo). Só ia faltar a navalha. E um sapato típico de malandro - mas se não fosse meu sapato de segurança, eu teria caído também (EPI salva trilhas, fica o aviso). 

Ao fim do segundo terço, paramos para descansar um pouco e curtir o fim de tarde - a outra praia estava completamente deserta, havia apenas um grupo de cavaleiros passando por ela.


O último terço era na areia, sem nenhuma dificuldade, alegou meu irmão. Entramos e não avançamos muito quando demos numa propriedade privada. O dono já sabia e avisou: a trilha é para adiante. Voltamos e seguimos, fomos pelo caminho que os cavalos haviam entrado. Caminhar na areia fofa pisoteada por meia dúzia de equinos não é muito fácil, mas seguíamos contentes - chegaríamos para ver o pôr do sol da praia original. Foi quando apareceram duas mulheres no sentido contrário, dizendo que estavam perdidas e se podiam seguir conosco.

Perdidas? É só seguir por aqui que sai na praia.

Não, moço. Seguindo por aqui vem aviso de propriedade privada e logo a seguir um rio.

Rio? Não tem rio na trilha.

Pois aqui tem um rio.

Meu irmão tirou o celular - havia sinal - e logo viu que, de fato, estávamos fora da trilha. Vulgo, perdidos.

Precisamos entrar naquele pedaço de mato - disse, apontando para umas árvores que havia depois das dunas.

Ele foi na frente, como chefe dos escoteiros. Conseguimos chegar até a beirada do mato, difícil foi achar uma brecha para entrar. Na primeira que encontramos, entramos - não era muito propícia, tanto que deixou um corte na perna de uma das garotas. Ao menos estávamos na trilha.

Agora, é seguir por aqui que não tem erro.

Perguntei de potreiros, as garotas perguntaram do rio. Meu irmão alegou que havia apenas um filetinho de água, que dava para passar sem molhar os pés.

Quando chegamos ao tal filete, era um pequeno rio, impossível de passar sem molhar os pés e as canelas - Brotinho ainda escorregou não sei como e só não molhou a cabeça. 

Mais um tempo de caminhada sob luzes dos celulares e chegamos ao ponto inicial. Meu irmão, enlameado; Brotinho enlameada, molhada e se queixando de dor nas coxas; eu com os sapatos molhados e cheio de areia - em casa descobriria três bolhas nos pés e uma bosta de cavalo na sola. 

Seguimos a viagem de volta em silêncio, cada um pensando que havia programas mais interessantes para o feriado que não uma trilha feita às pressas por causa da iluminação, cheia de obstáculos, que mais parecia uma excursão na selva. Eu já imaginava toda a discussão que não teria depois com o Brotinho, e me lamentava de não ter ido a um motel: gastaria quase o mesmo, terminaríamos discutindo quase igual, mas ao menos teríamos nos divertido. Eu estava nesse ponto do pensamento quando meu irmão quebrou o silêncio, deixando à mostra seu ego machucado:

Não fosse aquelas duas gurias, e a gente não teria se perdido.

Como não?

A gente não estava na trilha, mas uma hora chegaríamos. Foram elas que nos fizeram ficar perdidos, ao nos avisarem.

Chegaríamos na rodovia, umas sete ou oito da noite, a seis quilômetros da praia e do carro.

Mas não estávamos perdidos. Fiz essa trilha uma dúzia de vezes.

Preferi não discutir, já que ele queria culpar o mensageiro, que culpasse, eu teria muito o que conversar quando chegasse em Éssepê.


05 de junho de 2024


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.