domingo, 25 de abril de 2004

A política do umbigo

Falei na crônica passada de meu cepticismo quanto à política passada, exponho agora o ponto principal dele.
O objetivo primeiro do poder é o próprio poder. Já dizia Maquiavel quinhentos anos atrás, e se eu não enxergava antes era por ingenuidade. Basta uma passada de olho em qualquer lugar em que há poder para ver que, salvo raríssimas exceções, quem ocupa algum cargo de poder o faz antes de mais nada porque faz bem pro ego. Presidente, deputado, prefeito, reitor, movimento estudantil, é difícil fugir à regra. Interesse coletivo? Isso é questão secundária, que o detentor do poder irá tratar se o tempo que ele gasta para vislumbrar consigo mesmo e com o poder que detem não ocupar o dia todo.
O Lula é um “tipo ideal” de pessoa que não consegue olhar a coletividade para a qual deveria trabalhar porque não consegue tirar os olhos da sua imagem com a faixa presidencial refletida no espelho. Não se trata de nenhuma novidade, visto que seu antecessor também pode ser considerado um tipo ideal. Isso ajuda a explicar, inclusive, porque não existe diferença entre um e outro. O pessoal que orbita ao redor do poder, tanto neste quanto no governo passado, já deixou explícito que o objetivo deles era o poder (alguém lembra dos 20 anos de poder do Sérgio Motta?). E as brigas entre governo e oposição não passam de dor de cotovelo, porque uns tem pote de doce na mão e os outros não.
Mas não é preciso ir tão alto quanto a presidência da república para verificar como o poder vicia. Vejamos o caso do reitor da Unicamp. O movimento estudantil na universidade pode até fazer barulho mas tem uma força muito pequena nos órgãos deliberativos em que possui representantes (como o conselho universitário), mas mesmo assim o reitor tenta enquadrar totalmente os estudantes à sua vontade. Primeiro tentou assumir o DCE (Diretório Central dos Estudantes), lançando a chapa “Bons tempos júnior” (a sua campanha para reitor era a “Bons tempos”). Fracassado, ele ignora as eleições realizadas pelos alunos para a escolha dos representantes discentes e promove uma eleição subordinada à reitoria, com regras explícitas para enfraquecer a organização dos estudantes (como o voto por pessoa e não por chapa, a impossibilidade de se eleger mais do que dois alunos por instituto, entre outras). Isso para se tornar o rei da Unicamp.
Mas não precisa ser poder oficial, como o do presidente da república ou do reitor da universidade. Um caso bem emblemático aconteceu no DCE da Unicamp, destituído há dez dias. Nessa novela três grupos: os dissidentes da gestão, os remanescentes dela (o seu “núcleo duro”, grupo que está há três anos a frente do DCE) e os seus opositores. A crise começou com uma auditoria pedida pelos opositores, pois o DCE não havia prestado conta nos dois últimos anos. Essas suspeitas foram o suficiente para que os opositores fizessem o julgamento do desvio de verbas da gestão atual e passada. Nesse rebuliço, o grupo dissidente, acusando o “núcleo duro” de autoritarismo, pulou fora do barco, criando uma baita crise. No fim, acabou que as suspeitas dos opositores não foram comprovadas, o núcleo duro era realmente bastante autoritário, mas os dissidentes em compensação quase não participaram das atividades do DCE enquanto membros deste. Veio a assembléia dos estudantes, na pauta a destituição da gestão. Os opositores querendo a qualquer custo tirar os remanescentes da gestão, e os remanescentes, mesmo já sem legitimidade, querendo a qualquer custo permanecer com a máquina. O clima foi de combate e ganhou a oposição: a gestão foi destituída e foram chamadas eleições para trinta dias. Quando questionei um dos opositores – ainda antes da crise dos dissidentes – porque não se tentava uma conciliação entre os Centros Acadêmicos e o DCE (o que não significava abdicar da auditoria das contas, mas simplesmente não fazer um julgamento antes dela terminar), a resposta dada por ele foi: “Marx já dizia: política é conflito”. Esqueceu-se meu interlocutor, de que para Marx política é conflito ENTRE as classes e não DENTRO dela. Mas é difícil encontrar bom senso e discernimento num lugar onde a satisfação do ego fala em primeiro lugar, como no movimento estudantil. Encerrando a história: na assembléia destituinte, tanto os remanescentes da gestão quanto os seus opositores pensaram unicamente em ganhar a briga (uma solução bem ponderada seria eleições para trinta dias sem destituição da gestão). Deram uma banana pro movimento estudantil na Unicamp, que pelo menos por dois meses não conseguirá se articular na defesa dos seus interesses. Ótimo para o reitor Brito, que já tentava tratorar os estudantes com as suas eleições discentes do dia 28, e agora não encontra sequer resistência, sem contar que caminho livre ele tem também para instalar o Cartão Universitário (vulgo CU), com parceria com um banco privado. Mas numa briga de egos, como é a política, quando é que se vai ter tempo pra pensar no conjunto?

Campinas, 25 de abril de 2004.

sábado, 24 de abril de 2004

Sobre a política

Desde que voltei das férias, no início de março, uma sensação de descrédito e cepticismo muito grande quanto à política se abateu sobre mim. No início esse cepticismo foi total: desacreditei qualquer tipo de política, da institucional àquela quotidiana, como reciclar lixo ou boicotar o produto x ou y. Nesse clima parei também com o pequeno ato político de escrever (a única crônica que escrevi foi no dia 3 de março sobre terrorismo na Espanha, mas não a enviei). À minha descrença no capitalismo (do qual nunca fui adepto e nunca acreditei na sua viabilidade), e do comunismo (o qual me deixa dúvidas se é viável ou não), somou-se a descrença na social-democracia européia, e pra completar no partido da esperança (frustrada) brasileira, o PT. Teve gente que perguntou porque não aderi logo à pregação do ‘nada vale a pena’, mas achei que isso também não valia a pena. Enfim, fui tomado de um cepticismo hiperbólico quanto à humanidade e o mundo. Mania de filósofo.
Como permanecer em tal estado por muito tempo é impossível, saí à procura de subsídios para decidir o que fazer (ou se mata ou se mexe). Disso dois momentos me ajudaram muito a superar parte desse cepticismo. O primeiro foi uma conversa com um amigo marxista. Se (por enquanto) não acredito no prognóstico marxista de uma sociedade sem classes e sem estado, não há como refutar a profundidade e veracidade de muitas das análises por ele empreendida. Conversávamos eu e esse amigo sobre este que parece ser o período mais sombrio da história brasileira até o momento, o governo Lula. Dizia ele que o PT não tinha um projeto de governo, e ignorava Marx por completo, se limitando em atuar (mal e porcamente diria eu) na superestrutura, sem fazer qualquer alteração na base material da sociedade. Completou dizendo que não há esquerda marxista no Brasil, já que nenhum partido tem um projeto de governo que ao menos questione a base material. O “radical” PSTU, com sua bandeira contra a ALCA e o FMI (dois fenômenos superestruturais), contribui para esse vazio; e o novo partido de Heloísa Helena e cia. não parece trilhar caminho diferente. Daí decorre que a chance desses partidos quando assumirem o poder fazerem o mesmo é muito grande. Para meu estado de espírito essa análise serviu como um alento, uma pequena esperança num futuro longínquo: se surgir um dia realmente um partido marxista, quem sabe ele não realize a mudança social necessária.
O segundo momento foi a leitura de Microfísica do Poder, do filósofo francês Michel Foucault. Diz ele, num texto de 1972, que a forma de se lutar contra um poder totalitário (no sentido de possuir uma visão da sociedade em todos os seus aspectos, uma visão da sociedade como uma totalidade bem delimitada), tal qual o instituído pela “elite” (uso aspas porque este termo não é muito fiel ao pensamento do filósofo), não é um contra-poder totalitário que possua uma outra visão totalitária da sociedade, mas as lutas travadas em nível local, regional ou pontual: uma associação de moradores, um grupo feminista ou ecologista, sem hierarquização ou líderes centrais (alguém sabe de algum “núcleo do duro” do Greenpeace ou algum grupo similar?), que não fala pelos seus membros, mas dá voz para que eles falem. Qual o alcance de atuações desse tipo na mudança da sociedade, não sei, mas elas me parecem evitar que se repita a fracassada experiência soviética de uma sociedade mais igualitária, já que a questão do poder muda de foco: questiona-se o seu porquê, e não com quem ele está.
Passou, enfim, meu período de cepticismo político extremo, mas ainda sigo com as barbas de molho, principalmente no que diz respeito à política institucional (tenho sérias dúvidas se ela é possível de trazer mudanças reais, me parecendo mais uma força de reação do que de revolução). Mas vislumbro mudanças significativas e profundas provocadas por movimentos diversos advindos da base da sociedade, seja de pessoas, seja de grupos, cada um questionando um “nicho” específico: o movimento de software livre, o de rádios livres, o trabalho de pessoas como o do escritor Ferréz ou do cineasta Paulo Sacramento. Essa política de formiguinhas, enfim.

Continua...

Campinas, 24 de abril de 2004