terça-feira, 27 de janeiro de 2009

O Lino

O Lino. Conversava eu com um amigo dia desses e de repente lá estava eu prestes a falar do Lino novamente. Estávamos quase nos despedindo, ele tinha compromisso em breve, consegui me segurar e não falar dele. Tenho a impressão que depois do Paulo o Lino é a pessoa que mais tenho citado nos últimos tempos (não entram nesta estatística, por motivos assaz razoáveis, citações feitas em terapia). O Paulo é um amigo meu que tem o dom de saber contar histórias, de transformar tragédia em causo divertido, e ainda tem como herança de família um repertório de anedotas e casos incríveis, bizarros, engraçados (piada para o Paulo entender daqui dois volumes. Se mais alguém entendeu, fico feliz). O Lino é parte dessa herança. Trata-se do “filho do primo do Paulo”, como eu sempre o apresento. É um garoto que hoje deve ter seus nove anos, mas que sempre se fala em subversão, criatividade, quebra dos parâmetros, ele me vem à mente. Culpa dos pais, também, é claro.

Conheci o Lino no final de 2004, ele tinha seus cinco anos, se tanto. Foi quando me tornei fã dele. Infelizmente, foi a única vez que tive contato com o figura. Depois disso, tudo o que soube foi por intermédio do Paulo. Por sinal, era casamento deste nesse dia do final de 2004. Na ida do cartório para o local onde seria a festa fui de carona com os pais do Lino, acompanhado do próprio. Antes de entrar no carro a mãe do garoto tirou um papel de propaganda que estava no pára-brisas. Com a curiosidade típica da idade, perguntou o que era o papel que ela tinha pego, quem tinha deixado ali. “Você quer a verdade ou uma história”, perguntou a mãe. Ele parou, olhou para mim, para o outro Daniel que estava no carro, pensou um pouco e escolheu, contente: “uma história”. “Foi um coelho quem pôs ali”. Pronto, foi a deixa para ele se divertir o casamento todo, tentando encontrar o dito coelho. Eu mesmo aproveitei pra me divertir um pouco com ele – não que o casamento estivesse chato, mas não tinha procura ao coelho.

Por um problema no olho que eu não sei dizer qual era, o Lino precisava usar tampão (parece que não precisa mais). Era de se esperar que uma criança entrando na escola com um tampão fosse motivo de chacota por partes dos colegas, e que acabaria complexada, algo do gênero. Tenho a forte impressão que com ele foi ao contrário, e imagino que os pais de muitos dos seus colegas devem ter olhado um tanto perplexos para seus pimpolhos pedindo para usar um tampão. Isso porque o Lino não se limitava a usar um simples tampão, mas um tampão animado, feito pelo pai, ilustrador profissional. Durante a festa o pai me contou da alegria do filho em escolher o personagem que iria usar no dia seguinte, e dos apertos de quando esquecia qual era o personagem pedido. Contou também que quando a professora do moleque o devolvia com uns papos religiosos que os pais não simpatizavam muito, nos dias seguintes podia ter certeza que o Lino iria com o próprio Demo, em diversas versões, estampado no rosto. Isso para não falar das fantasias com que seguidamente ia à escola.

Lá pelas tantas os pais resolveram se mudar. Foram para Londres, tentar ganhar a vida no que gostavam e para o que haviam estudado. Lá o Lino bem que tentou manter a rotina que tinha no Brasil e ir fantasiado para a escola, por exemplo. Porém chamaram os pais e avisaram que na Inglaterra a escola é coisa séria e nada de ir fantasiado para a aula. Repassaram o recado ao filho, explicaram a situação. Não havia nada a fazer a não ser aceitar: e o Lino aceitou. Mas ele queria escolher a roupa que usaria. Os pais aceitaram, nada mais justo. Depois de passar por algumas modas ele finalmente encontrou seu modelito: sapato, calça (ou bermuda) de linho, camisa, colete, gravata borboleta e boina. E lá foi o Lino para a escola... fantasiado de criança do início do século XX! E desta vez não tinham como barrá-lo, afinal, muito provavelmente se tratava de um dos alunos mais bem arrumados da turma.

Outra das história do Lino foi quando ele pediu para o pai comprar um terno/casaco novo. O pai disse que não dava, pois a grana estava apertada. O Lino insistiu, garantiu que pagava o casaco. O pai, vendo que o filho falava sério, apesar da pouca idade, comprou o tal casaco. No final de semana ele chamou os pais para irem até um parque de Londres. Lá, subiu em uma espécie de pilar e passou a tarde brincando de estátua viva. Resultado da brincadeira: não só pagou o casaco como conseguiu dinheiro para comprar mais um.

Uma vez, contando as histórias do Lino para uma amiga, ela teimou que ele, assim como a família (os Kicakolino), eram invenção minha, personagens de alguma história que eu estava escrevendo. Felizmente há registros da existência deles, o que fez com que até essa amiga acreditasse – não sem certa resistência – que não eram frutos da minha mente um tanto desocupada (bem que eu gostaria de ter criatividade para tanto). Digo isso porque um desses registros é justo um vídeo do Lino brincando de estátua viva no parque. Está em: www.youtube.com/watch?v=k6zca0X8lXY

As últimas notícias que tive do Lino é que ele está trabalhando na indústria e que com esse trabalho está salvando o orçamento da família. Descoberto por um caça talentos, ia gravar um filme pipoca com a Una Thurman (é indústria cultural mas é indústria). Diz que não ficou muito contente com o papel que deram para ele: o de Lino. Segundo o Paulo, reclamou que era muito chato, que ele queria interpretar outra pessoa. Não adiantou, segundo vi na internet, ele interpretará ele próprio. É curioso que sempre que chego neste ponto dos causos do Lino lembram do Macaulay Culkin (por sinal, procurei pelo dito na wikipedia, até para saber como escreve o nome do infeliz, e não vi nada muito escabroso na vida dele. Parece que é mais fama). Da minha parte, admito que também fico preocupado com o futuro do garoto: por melhor que seja a educação que os pais tem dado, como será que ele vai encarar o fato de interpretar a si próprio em um roteiro que é dado de fora, ou seja, é ele, mas não é ele, já que o Lino, inspirado nele é o que dizem que ele é, ou deveria ser? Será que conseguirá manter sua subversão tendo sido absorvido de maneira tão voraz pelo sistema? Como será que lidará com o estrelato? Espero que consiga lidar bem com isso e mantenha sua subversão de quando era um garoto “normal”. E torço muito para não ter o desgosto de vê-lo dando entrevista no Fantástico no Natal do ano que vem.


Campinas, 27 de janeiro de 2009


segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

As prisões da miséria (breve comentário)

Tinha boas referências do livro. O tema parecia interessante. E não posso dizer que seja um livro ruim, pelo contrário. O autor, Loïc Wacquant, professor de Berkeley e com passagem em várias universidades do mundo no currículo, não depende disso para justificar a obra: tem-se a clara impressão de que domina o assunto. Isso porém não evitou minha irritação ao ler As prisões da miséria. O livro, muito resumidamente, trata da questão da mudança do Estado social para o que o autor chama de Estado policial e penal, cujas expressões melhor desenvolvidas são a política de tolerância zero – que tem em Nova York sua grande vitrine, a partir de onde foi vendida ao mundo todo – e o desenvolvimento da indústria privada carcerária.

O que o autor expõe é que as tais políticas de tolerância zero, além de não terem eficácia comprovada no combate à criminalidade – a criminalidade em Nova York e em San Diego caíram de maneira muito similares, ainda que utilizando de métodos distintos de lidar com o problema –, são antes uma máscara para encobrir uma política de segregação e perseguição às classes desfavorecidas, quase sempre marcadas pela questão racial. Trata-se de uma política de perseguição aos pobres, aos negros, aos latinos, aos imigrantes, aos moradores das periferias pobres, dos guetos, sob a justificativa de que a criminalidade é um traço individual de personalidade, fruto de problemas de formação moral ou deficiência no quociente de inteligência; e que são essas pessoas as responsáveis pela degradação da cidade, dos bairros, das condições sociais, e não as condições sociais responsáveis pela criação e manutenção desse exército de pequeno delinquentes que a polícia do tolerância zero visa com especial vontade.

Até aí, tudo bem. Concordo com boa parte da análise do autor. Seu livro, com bastante referências empíricas, traz mais subsídios ao debate. Me questiono, porém, qual era a intenção de Wacquant quando lançou a obra: se era fomentar um pouco mais o debate, levando a uma reflexão por parte de Jospin (o livro é de 1999) ou dos homens públicos, seu livro é um fracasso. Se era para pregar aos convertidos, reforçar as convicções daqueles que já pensavam como ele, aí ele mostra tanta propriedade quanto ao descrever a criminalização da pobreza. E como ando numa fase bastante cética, foi esse ar de “é tudo evidente, só não vê quem não quer” que me deixou p da vida.

O livro se divide em duas partes. A segunda, que é boa e, na minha opinião, deveria vir primeiro, trata em detalhes como foram construídos os estereótipos e os discursos que subsidiam a política de tolerância zero e de ênfase no encarceramento. É esta parte que salva o autor de uma visão assaz simplificada do problema da criminalidade, visto que na primeira parte parece que o autor crê que todo crime é fruto da falta ou da precariedade do emprego – e é sabido que não é só pobre quem comete crime. Nesta primeira parte, intitulada “Como o 'bom senso' penal chega aos europeus”, o autor mostra como essa política foi exportada dos Estados Unidos para o mundo, junto com a ideologia neoliberal.

Aqui que começo a torcer o nariz. Me parece bem embasada a idéia de que o Estado penal surge como complemento ao Estado mínimo neoliberal: diante do desemprego estrutural e da precarização de boa parte do trabalho assalariado, o crime surge como uma das poucas oportunidades promissoras para quem já nasce em desvantagem na guerra de todos contra todos que se tenta implementar hoje. Além do mais, na esteira da perda de direitos, ganha força a idéia da cidadania não como um direito, mas como uma recompensa. Primeiro problema: o autor precisa achar um inimigo para combater. E precisa ser um inimigo visível. Como acusar o “capitalismo”, além de um tanto fora de moda, é atirar no próprio pé – visto que a virgem, imaculada e idílica Europa defendida pelo autor é capitalista – ataquemos os Estados Unidos. Logo, o autor dá a entender que a culpa pelo neoliberalismo no mundo é pura e exclusivamente dos Estados Unidos. Esquece que os primeiros teóricos neoliberais eram europeus de boa estirpe (von Mises e Hayek), que a reestruturação produtiva que marca estes tempos neoliberais teve origem no Japão (com o toyotismo) e que o primeiro país central a adotar o receituário foi a Inglaterra, com Thatcher, em 1979. Que os EUA assumiram o papel de ponta de lança do neoliberalismo, isso não há a menor sombra de dúvidas – fiquemos apenas no termo “consenso de Washington” para ilustrar. Que a política de tolerância zero (tal qual a conhecemos hoje) foi desenvolvida nos EUA, isso também não parece ter muitas dúvidas. Todavia, acreditar que isso se deu por mera maquinação malvada dos Estados Unidos parece um tanto precário – ou, se for verdade, deveríamos estudar essa indústria do sucesso estadunidense. Se no prefácio à edição brasileira ele lembra da matriz autoritária do pensamento tupiniquim, é curioso como ele esquece a matriz liberal do conceito de cidadania que permeia desde longa data o pensamento anglo-saxão, onde cidadão e contribuinte se confundem. Diante disso, é compreensível, ainda que seja criticável (tanto por mim quanto por Wacquant), que à assistência social seja cobrada contrapartida em trabalhos precários. Para Wacquant, contudo, têm-se a clara impressão de que se o trabalho não for precário, não é de todo repreensível se cobrar contrapartida pelo direito à cidadania (página 67).

Outro ponto que me irritou nessa primeira parte: Wacquant parece dividir o mundo em quatro categorias de pessoas, ontologicamente determinadas: os estadunidenses malvados; os homens públicos vendidos; a massa ignara e a meia dúzia de iluminados. A divisão mais ou menos arquetípica do mundo encontrada ainda hoje em certa esquerda saudosista. A velha necessidade da velha geração (que se perpetua na nova) de se achar um inimigo. Necessidade presente também na direita, é bom ressaltar, a qual, contudo, tem mais propriedade para fazê-lo, seja guerra às drogas, ao terrorismo ou ao que for. Voltando ao Wacquant. Em um mundo assim tão bem dividido e distribuído, fica muito simples resolver os seus problemas: basta atacar quem os promove (os Estados Unidos, no caso). Durante o livro, o autor faz questão de frisar que há um contexto por trás de uma parte da criminalidade, contexto sempre esquecido por aqueles que defendem uma visão individualizada dos criminosos. Contudo, na hora de aprofundar um pouco a análise desses analistas, esquece que eles também possuem um contexto, onde o discurso tem se encaixado bem e angariado seguidores. Não se trata de mera retórica bem feita ou pura manipulação de meia dúzia de indivíduos ou de um país malvado. Há um contexto que autoriza esse tipo de discurso e que não se resume somente ao que é dito pelos tais formadores de opinião.

Em suma. Não entendo nada do assunto, e o livro, como disse acima, possui boas referências (um professor meu da sociologia e um de direito do meu irmão). Ainda assim insisto em recomendar que se comece pela parte final, e depois veja se compensa ou não se aventurar pela primeira. Há quem goste de pregação. Há quem não se incomode e saiba aproveitar bem o que há por trás. E há os que se irritam.


Pato Branco, 12 de janeiro de 2009