sábado, 22 de dezembro de 2012

Último dia do ano em SP

Guardas-chuvas se trombam na calçada da Galvão Bueno, que em dias de sol já se mostra insuficiente para o fluxo de pedestres – mas vagas para estacionar há. Daqui uma semana faz onze meses que me mudei para São Paulo. Graças à rua da Liberdade hoje não me embrulha o estômago quando ouço falar esse nome. A filosofia já me serviu pra algo, vejam só! Me surpreendo de ainda estar em lua-de-mel com a cidade. Não a trocaria nem pelas minhas Pasárgadas, Buenos Aires e Barcelona (quem sabe por Nova Iorque, talvez por conta de uma visão idílica de uma cidade que não conheço). Num futuro governo do moço de bem do Brasil, Luciano Huck, será que o famigerado narrador seria seu porta-voz? No metrô, duas crianças se embasbacam com as luzinhas que piscam do caminhãozinho de brinquedo, ainda em sua caixa – o natal chegou mais cedo. Na Paulista, os chatos (mais que chatos) de coletes cercam os transeuntes – minha cara de hoje fuzilo um tem me poupado dessa maçada. No restaurante japonês, enquanto tomo ban-chá, findo o almoço, chego a achar que as árvores de metal e vidro que acendem à noite ficaram bem – e que poderiam ficar o ano todo, espalhadas pela cidade toda, numa nova forma de iluminação pública das calçadas. Fora isso, sigo com minha opinião sobre decoração de natal. Que me chamem de amargo. Mirian Leitão pra ministra da economia, Coronel Telhada pro ministério da justiça, Silas Malafaia ou algum outro bispo do ramo pra igualdade social, Juliana Paes para ministra do turismo, Adriano (ou o brahmeiro Ronaldo) pro esportes, Zeca Pagodinho na cultura, Aécio Neve na coordenação política? Sim, essa São Paulo de marginais (Pinheiros e Tietê), de Minhocão, de motoboys que levam espelhinhos, de policiais que jogam gasolina em motoboys, de policiais que matam e são ovacionados pelo governador do Estado, de gays e moradores de rua que são espancados por serem gays ou moradores de rua, de universidade estadual para poucos e praças cercadas ao público, de favelas que sofrem de auto-combustão (fenômeno típico). O passeio pela Liberdade – para comprar uns quitutes pra minha mãe – me faz lembrar das minhas aventuras e desventuras com orientais – japonesas, coreanas, taiwanesas. Tenho me perguntado esses últimos dias o que foi meu 2012 – mais intenso do que os últimos cinco anos de Unicamp. No vão do Masp, integrantes de alguma orquestra jovem afinam seus instrumentos ao lado de hippies vendedores de artesanato bêbados turistas e transeuntes que se protegem da chuva. Em São Paulo, o segredo é estar aberto e na rua, comentei com amigo meu, recém mudado, quando flanávamos pela cidade, após um recital de órgão no mosteiro São Bento. Sim, a São Paulo da classe média cheirosa e limpinha (não de preconceitos e de ignorâncias) e que tem na Augusta, com seus bares baladas puteiros, skatistas putas bombados pedintes fanfarras francesas veganos bêbados (pobres e ricos) caídos travestis notebooks baratos oferecidos às duas da manhã policiais com escopetas policiais que perseguem mendigos para mostrar serviço playboys indies conhecidos patricinhas adolescentes, um dos focos de resistência da rua como local de convívio democrático (até quando?); que tem na praça Roosevelt outro ponto de disputa entre quem quer o espaço público para o público e quem quer a lei do silêncio (e não percebe que isso é, na verdade, o que leva à lei do medo), entre o poder econômico e o interesse público; que tem nas ocupações dos prédios do centro um grito de protesto contra a especulação que há tanto tempo estraga a cidade – e ela resiste, como resistem seus habitantes. No metrô, linha verde, ouço a conversa entre dois homens. Um deles comenta: a gente ganhava setecentos reais, aumentaram o aluguel pra quatrocentos e cinqüenta. Eu falei pra mulher: ou a gente entra, ou vai morar em baixo da ponte. Eu tava com um dinheiro sobrando. Essa São Paulo em que o Copan não é uma agressão (como seria em Barcelona), que tem também Pinacoteca, Olido, Boca do Lixo, Sala São Paulo, Municipal, Paulista, boas peças de teatro quase em Itaquera e lixo mass-media para a classe-média idiota, em teatros de stand-up comedy; em que pipocam shoppings centers culturais que oferecem produtos de boa qualidade e sem risco de questionamento da boa ordem – também conhecidos por Sesc. São Paulo que se transformou numa grande zona leste no dia da vitória do Corinthians. Acho que consigo entender: se afirmar como o oposto ao centro da cidade, ser da “ZL”, apesar de morar nos Jardins, não deixa de ser uma provocação, quase aviltante aos homens de bem, para quem pobreza é problema moral (faço mais ou menos o mesmo quando digo que torço pro time da favela). São Paulo que quase me matou com problemas respiratórios no inverno – poluição tempo seco e calor, que maravilha! Que tem o Centro Cultural São Paulo, quase uma continuação da rua, aberto a usos e desvios de seus corredores – talvez meu lugar preferido da cidade. Dia desses, na avenida Paulista, vi um homem engravatado de mãos dadas com uma mulher (muito bonita, por sinal) com um vestido de cauda longa verde-limão. A mulher brilhava, me perguntei se não seria alguma performance. Não deu a impressão. Dias antes, cegos que também foram lidos como mortos. E são performers ou simples malucos aqueles que dançam em cima de lixeiras, na Paulista? Na transferência para a linha azul, sigo ouvindo a conversa: Paguei quase tudo a vista. E pergunta se ela hoje quer sair da nossa casinha? Não quer. Está tudo pago, não tem documento, escritura, mas paguei tudo direitinho. No restaurante japonês, calendários de bolso fazem me lembrar da coleção que minha mãe tinha – eram da década de setenta. É meu último dia do ano em São Paulo. Chovia quando cheguei, como chove hoje. Vejo uma beleza melancólica nessa garoa (que não é tão fina). Como vejo beleza no que deve ter sido e no que pode ser, e principalmente no que São Paulo hoje é. São Paulo dos que se orgulham da sua honestidade e dos que se vangloriam da sua malandragem.

São Paulo, 22 de dezembro de 2012.

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