Guardas-chuvas se trombam na calçada da Galvão Bueno, que em dias
de sol já se mostra insuficiente para o fluxo de pedestres – mas
vagas para estacionar há. Daqui uma semana faz onze meses que me
mudei para São Paulo. Graças à rua da Liberdade hoje não me
embrulha o estômago quando ouço falar esse nome. A filosofia já me
serviu pra algo, vejam só! Me surpreendo de ainda estar em lua-de-mel
com a cidade. Não a trocaria nem pelas minhas Pasárgadas, Buenos
Aires e Barcelona (quem sabe por Nova Iorque, talvez por conta de uma
visão idílica de uma cidade que não conheço). Num futuro governo
do moço de bem do Brasil, Luciano Huck, será que o famigerado
narrador seria seu porta-voz? No metrô, duas crianças se embasbacam
com as luzinhas que piscam do caminhãozinho de brinquedo, ainda em
sua caixa – o natal chegou mais cedo. Na Paulista, os chatos (mais
que chatos) de coletes cercam os transeuntes – minha cara de hoje
fuzilo um tem me poupado dessa maçada. No restaurante japonês,
enquanto tomo ban-chá, findo o almoço, chego a achar que as árvores
de metal e vidro que acendem à noite ficaram bem – e que poderiam
ficar o ano todo, espalhadas pela cidade toda, numa nova forma de
iluminação pública das calçadas. Fora isso, sigo com minha opinião sobre
decoração de natal. Que me chamem de amargo. Mirian Leitão pra ministra da economia,
Coronel Telhada pro ministério da justiça, Silas Malafaia ou algum
outro bispo do ramo pra igualdade social, Juliana Paes para ministra do turismo, Adriano (ou o brahmeiro
Ronaldo) pro esportes, Zeca Pagodinho na cultura, Aécio Neve na
coordenação política? Sim, essa São Paulo de marginais (Pinheiros
e Tietê), de Minhocão, de motoboys que levam espelhinhos, de policiais que jogam gasolina em motoboys,
de policiais que matam e são ovacionados pelo governador do Estado,
de gays e moradores de rua que são espancados por serem gays ou
moradores de rua, de universidade estadual para poucos e praças
cercadas ao público, de favelas que sofrem de auto-combustão
(fenômeno típico). O passeio pela Liberdade – para comprar uns
quitutes pra minha mãe – me faz lembrar das minhas aventuras e
desventuras com orientais – japonesas, coreanas, taiwanesas. Tenho
me perguntado esses últimos dias o que foi meu 2012 – mais intenso do
que os últimos cinco anos de Unicamp. No vão do Masp, integrantes
de alguma orquestra jovem afinam seus instrumentos ao lado de hippies
vendedores de artesanato bêbados turistas e transeuntes que se protegem da chuva. Em São Paulo, o
segredo é estar aberto e na rua, comentei com amigo meu, recém
mudado, quando flanávamos pela cidade, após um recital de órgão
no mosteiro São Bento. Sim, a São Paulo da classe média cheirosa e
limpinha (não de preconceitos e de ignorâncias) e que tem na Augusta, com
seus bares baladas puteiros, skatistas putas bombados pedintes
fanfarras francesas veganos bêbados (pobres e ricos) caídos
travestis notebooks baratos oferecidos às duas da manhã policiais
com escopetas policiais que perseguem mendigos para mostrar serviço
playboys indies conhecidos patricinhas adolescentes, um dos focos de
resistência da rua como local de convívio democrático (até
quando?); que tem na praça Roosevelt outro ponto de disputa entre
quem quer o espaço público para o público e quem quer a lei do
silêncio (e não percebe que isso é, na verdade, o que leva à lei
do medo), entre o poder econômico e o interesse público; que tem
nas ocupações dos prédios do centro um grito de protesto contra a
especulação que há tanto tempo estraga a cidade – e ela resiste,
como resistem seus habitantes. No metrô, linha verde, ouço a
conversa entre dois homens. Um deles comenta: a gente ganhava
setecentos reais, aumentaram o aluguel pra quatrocentos e cinqüenta.
Eu falei pra mulher: ou a gente entra, ou vai morar em baixo da
ponte. Eu tava com um dinheiro sobrando. Essa São Paulo em que o
Copan não é uma agressão (como seria em Barcelona), que tem também
Pinacoteca, Olido, Boca do Lixo, Sala São Paulo, Municipal,
Paulista, boas peças de teatro quase em Itaquera e lixo mass-media
para a classe-média idiota, em teatros de stand-up comedy; em que
pipocam shoppings centers culturais que oferecem produtos de boa
qualidade e sem risco de questionamento da boa ordem – também
conhecidos por Sesc. São Paulo que se transformou numa grande zona
leste no dia da vitória do Corinthians. Acho que consigo entender:
se afirmar como o oposto ao centro da cidade, ser da “ZL”, apesar
de morar nos Jardins, não deixa de ser uma provocação, quase
aviltante aos homens de bem, para quem pobreza é problema moral
(faço mais ou menos o mesmo quando digo que torço pro time da
favela). São Paulo que quase me matou com problemas respiratórios
no inverno – poluição tempo seco e calor, que maravilha! Que tem
o Centro Cultural São Paulo, quase uma continuação da rua, aberto a usos e desvios de seus corredores – talvez meu lugar preferido
da cidade. Dia desses, na avenida Paulista, vi um homem engravatado
de mãos dadas com uma mulher (muito bonita, por sinal) com um
vestido de cauda longa verde-limão. A mulher brilhava, me perguntei
se não seria alguma performance. Não deu a impressão. Dias antes, cegos que também foram lidos como mortos. E são performers ou simples malucos aqueles que dançam em cima de lixeiras, na Paulista? Na
transferência para a linha azul, sigo ouvindo a conversa: Paguei
quase tudo a vista. E pergunta se ela hoje quer sair da nossa casinha? Não quer. Está tudo pago, não tem documento, escritura,
mas paguei tudo direitinho. No restaurante japonês, calendários de bolso fazem me lembrar da coleção que minha mãe tinha – eram da década de setenta. É meu último dia do ano em São Paulo.
Chovia quando cheguei, como chove hoje. Vejo uma beleza melancólica
nessa garoa (que não é tão fina). Como vejo beleza no que deve ter sido
e no que pode ser, e principalmente no que São Paulo hoje é. São
Paulo dos que se orgulham da sua honestidade e dos que se vangloriam
da sua malandragem.
São Paulo, 22 de dezembro de 2012.
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