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quinta-feira, 6 de julho de 2023

Banheiro interditado [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor sem graça.]

Começo com uma nota prévia e peço desculpas, mas nem tudo no mundo são perfumes, desodorante Brut e Leite de Rosas no mundo laboral.
No setor onde trabalho, o banheiro masculino, sem saída de ar externa - mas com uma ventoinha que liga junto com a luz, e não sei se tem outra função -, é composto oficialmente de duas cabines e duas pias. Digo oficialmente porque há sempre algum problema a assombrar o referido espaço no ambiente de trabalho.
Um dos problemas, já assumido como tradição da casa, é com uma das torneiras. Ninguém a usa - salvo quando a outra está pifada -, porque não se lava só as mãos nela, mas boa parte da calça e da camisa e, a depender da altura da pessoa, dá pra lavar o peito também, tamanha a força com que a água sai. Praticamente um trote aos novatos - ou a eventuais visitas ao setor que decidem ir ao banheiro.
O outro problema se dá sempre com a mesma cabine - justo a mais ampla e convidativa. Por muito tempo sua descarga quebrava reiteradamente. E lá íamos nós, dois dias sofrendo com os odores da retrete - talvez sofrendo até mais que o pessoal da faxina, porque esses, como não era com eles, não tinham o que fazer, e podiam se dedicar aos outros banheiros do local (por sinal, isto não é uma queixa ao trabalho da faxina, nem nessa nem em outra situação, no máximo critico a terceirizada, assim como quem contrata essa terceirizada, pelos salários vergonhosos pagos e pelo papel que nos disponibiliza - isso quando não fica duas semanas sem repôr a contento). Esse problema foi dado por resolvido quando nobre colega Carmen, que tem experiência com obras, arrancou a caixa de descarga e passamos a apertar direto no parafuso da instalação. Resolveu um problema, mas trouxe outro, menor: a maioria dos usuários do banheiro masculino, sem sensibilidade para apertar algo pontual como um parafuso, soca o dedo até onde pode, transformando a cabine numa grande poça d'água (limpa! O que suja, às vezes é a terra do sapato).

O problema atual, nessa mesma cabine, não sei bem qual é. De qualquer modo, agiram rápido e antes que acumulasse odores, puseram um aviso de banheiro interditado, escrito com giz de cera azul. Houve alguma discussão sobre esse detalhe lúdico do cartaz (ainda que no setor de Fernández, funcionário do topo, ele tenha tido que pintar mapas com lápis de cor, para economizar a tinta colorida da impressora), mas todos respeitaram. Ao cabo das conversas, sempre uma certa indignação: custava imprimir uma folha com um sinal de caveira, o aviso de interditado e em caso uso, risco de arma química? Instrutivo, direto, sem chances de achar que era piada.
Entretanto, o problema maior não foi esse, mas o detalhe reparado pelo nobre colega Goreti na cabine ao lado: marcas de garras na parede. Isso gerou novo debate, e desta feita mais acalorado - e mesmo com certa apreensão. Contando que estamos no décimo andar, não há janelas no banheiro e as marcas são próximas ao chão, excluímos a possibilidade de uma pomba gigante, do tamanho de uma curucaca. As curucacas, por não existirem em São Paulo, também foram excluídas - e junto excluímos aves grandes em geral. Gato foi outra opção levantada, mas como o bicho não foi até o alto da cabine - sem falar que ninguém nunca viu um gato dentro de todo o prédio -, descartamos a possibilidade. 
Todos com medo de assumir, mas a opção mais razoável que nos pareceu foi a de um rato, que teria subido pelo encanamento - talvez atraído pelo cheiro da outra cabine em um de seus outros problemas? - e tentado escalar a cabine. Pareceu bastante razoável e para evitar uma histeria coletiva, optamos por não comentar com as mulheres do setor - cuja anatomia não permite o uso da retrete em pé. Nobre colega Desembargador, entusiasta do Capirotinho, que adorava contar que recebia pra fazer cagadas, tem evitado essa pequena vingança contra a espoliação da mais-valia que sofre - e desconfio que tenha medo de ratos, porque tem escovado os dentes (fora do horário de almoço, claro, que como o nome diz, é para almoçar e não para fazer higiene bucal, como bem ensina o Capirotinho) com uma velocidade impressionante.
Estamos nessa situação há dois dias, e hoje o nobre colega Macedo trouxe a hipótese de alguém com "dificuldade de ir aos pés" ter feito aquelas marcas. Não sofro desse tipo de constipação, mas me pareceu meio exagerado alguém espernear e se debater com tamanha veemência na cabine apenas por certo congestionamento em seu tráfego intestinal. Desembargador, por seu turno, achou mais plausível que a história do rato. Daí, então, a necessidade desta crônica de utilidade privada: colega com prisão de ventre: coma mais fibras!

06 de julho de 2023


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa. 

quinta-feira, 29 de junho de 2023

Um palhaço a tentar resgatar a criança de antigamente

Depois de quatro meses de aula, compramos e finalmente iríamos estrear a menor máscara do mundo. Minha grande preocupação ao chegar na aula e pegar meu nariz era ver como ele ficaria em meu rosto - ornaria ou não? Teria comprado um muito grande ou muito pequeno? (E quem sou eu pra me preocupar com tamanho de nariz de palhaço, eu que tenho uma cabeça pequena e uma napa avantajada? Enfim, a hipocrisia).

A aula foi incomum: ao invés de brincadeiras e exercícios de improvisação, exercícios de preparo corporal - que me trouxeram duas práticas corporais que sinto muita falta, as aulas de dança contemporânea com a Key Sawao e o boxe (a outra é tai chi, mas eu tento praticar em casa, de vez em quando) -, e depois uma fala convidando a rememorar o percurso de cada pessoa, em quem e no que nos marcou em todo nosso processo de vida, até chegar nesse quase-palhaço, nesse proto-palhaço, nesse palhaço-primordial pronto a se fazer em instantes - porque o palhaço é uma persona, não uma atuação. Em roda, porém voltados para fora, de olhos fechados, pusemos o nariz numa inspiração, e lentamente abrimos os olhos. “Vejam o mundo com olhos de criança”, convidou Paulo, o palhaço-professor. 

Abri os olhos muito lentamente, vi a rotunda: a textura do tecido me trouxe de pronto a lembrança do banco do ônibus que ia com minha mãe visitar meus avós. Chegávamos em Ponta Grossa meio da madrugada, eu só com meio olho aberto. 

Anos mais tarde, eu parava para visitar meu avô quando ia de Pato Branco para Campinas. Indicava ao taxista o caminho do asfalto, tal qual minha mãe fazia quinze anos antes, e de olhos bem abertos eu presenciava seu sorriso se multiplicar em dezenas pelo vidro da porta da sala, quando me via, enquanto ele tateava o molho de chaves atrás da certa para abri-la. 

O guarda-louça onde estavam as bolachas que eu comia ao chegar na casa deles, depois de ter ficado em minha casa de Pato, quanto meus pais eram vivos, hoje ocupa minha casa em São Paulo - mas a então criança pouco sabia da morte e das perdas, ou melhor, conhecia, mas não conseguia apreender, por mais que o adulto tampouco saiba lidar direito com elas.

O olhar de criança, de quem está descobrindo o mundo, sugerido pelo Paulo, fez aflorar também uma criança ansiosa por pôr ordem nessas descobertas todas, sem notar o ridículo de sua pretensão de toda uma vida. Uma criança que sofria bullying na escola e que aprendeu a evitar toda demonstração de afetos em público, para evitar ser alvo de chacotas - sempre o menos vulnerável possível, com minha cara de paisagem. O que parece ter refletido naquele nariz foi uma criança apolínea, irritada com todos aqueles palhaços falando fora da ordem, quando dava para se organizar, todo mundo assumir a ribalta na sua vez e a seguir dar a vez para o coleguinha.

O que esse palhaço precisa aprender é que essa criança, agora já adulta, pode entrar na brincadeira, sem medo do ridículo, porque tem repertório para entender a situação que está por trás de nossas ações, medos e anseios - e por saber o quão ridículo, o quão palhaços, somos todos.

 

29 de junho de 2023








sexta-feira, 12 de maio de 2023

Doutor Sabujinho, o tiozão galanteador [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça]

Os ventos não andam favoráveis ao doutor Sabujinho. Esqueci de comentar em meu texto sobre o fatídico colega Rivarola que ele também é um espécime da família tradicional brasileira (ainda que tenha dito não ter votado no Abominável na última eleição, mas tenho dúvidas, uma vez que defendia entusiasticamente o Cara de Cratera para governador). Uma das suas famas mais famigeradas no setor (e já se espalhando alhures) é que se trata de um galanteador inveterado, que adora posar de cavalheiro da high society - mas no máximo lembra um personagem genérico d’Os Simpsons, alguns dos bêbados que fazem figuração no bar do Moe (falta só ser amarelo). 

Quando Goleador chegou ao setor, antes mesmo de ela ser apresentada a todos, doutor Sabujinho já se dispôs a ensiná-la o trabalho - ela teve a infelicidade de ter uma baia livre bem defronte à dele. E assim foi, por duas semanas: ele sentado juntinho a ela, praticamente no colo dela - ou no decote, dizem as más línguas. Colega Carnegie, que senta próximo, conta ter ouvido certa hora doutor Sabujinho dizer a ela que eles tinham tudo para formar uma dupla de sucesso na empresa, tipo Bebeto e Romário na seleção - num trocadilho óbvio (e infame) com o sobrenome da colega; e ele deve se achar o Romário, claro. 

Sorte dele o chefe não ter reparado direito: duas semanas para ensinar o trabalho é de uma ineficiência digna de uma conversa muito séria. Ainda mais porque Goleador tinha alguma experiência prévia - apesar de seu grande mérito é saber parecer uma digital influencer, mesmo que sua conta no Instagram tenha menos seguidores que a do Pato Rei. Experiência prévia que fez com que na terceira semana ela já notasse que tinha coisas a corrigir naquilo que Sabujinho lhe ensinara - e fazia. Claro que ela não comentou com o próprio, afinal, ele não apenas foi muito solícito com ela, como se mostra alguém querido por muitos colegas (não por mim, gostaria de reforçar, e também saliento que acho que é falsa essa amizade dos demais) e, principalmente, pelo chefe.

Pela proatividade de quando chegou, até suspeitamos que Goleador fosse disputar o posto de puxa-saco-mor, mas até agora não foi o caso - até agora! O que foi notável é que tão logo outra baia ficou disponível, Goleador foi ocupá-la. Segue perto do doutor Sabujinho, mas não tanto - e, mais importante, de costas para ele.

Doutor Sabujinho, ainda que não tenha desistido, sentiu os cortes da nova funcionária, e decidiu retomar seus galanteios para com Beviláqua, a secretária (que suspeitamos ser bisneta do jurista Clóvis, por conta do sobrenome), uma moça na flor da idade, bonita e reservada. A pobre colega foi o primeiro alvo do fatídico colega, tão logo ele foi contratado - e por onde já começou toda sua fama, até porque em sua primeira apresentação ele salientou que quem sustentou a casa na pandemia foi a esposa, que certamente ganha mais do que ele até hoje.

Esta semana tivemos a saída de uma colega, que vai para um emprego melhor. Podia ter resolvido isso com um e-mail, todos ficariam mais felizes com uma partida assim, mas ela fez questão de um almoço de despedida. Discutíamos onde poderíamos ir quando o chefe propôs um restaurante tradicional (e um pouco caro) aqui perto - onde, dizem, o PSDB foi fundado e por isso se dizia um partido com um pé no popular. Animamos: pelo tom, quem iria pagar a conta era o chefe. Pois foi depois de fazermos os pedidos que soubemos que não era o caso: ele avisou com solenidade que o bolo seria por conta dele. Era possível ler na cara de muitos colegas: “O bolo?! E essa facada que vou levar por um prato que nem faço muita questão?”. Ficou aquele climão na mesa, talvez ele tenha até sentido - ou não, mais provável. A certa altura, ele foi ao banheiro e algumas pessoas conversaram rapidamente sobre a conta. Sabujinho foi até Beviláqua e disse que pagava a conta dela - afinal, o salário dela é menor que o dele, ainda que a herança que presumimos deva ser bem maior. Ela simpaticamente (mais do que deveria) disse que não precisava.

Pois na hora em que a conta chegou e foi cada um pagar a sua, chegou a vez de Beviláqua e o garçom avisou que a parte dela - uma água mineral e um filé de frango grelhado com uma salada frugal, o mais fitnesse um dos mais baratos do cardápio - já havia sido paga pelo “senhor na ponta da mesa”. Ela olhou para Rivarola que fez um sinal como quem diz “relaxa, eu paguei e está tudo bem, não vai me fazer falta”. Por ser uma pessoa bastante discreta (eufemismo para tímida), não é possível afirmar que Beviláqua ficou puta, mas o “Eu disse para ele que não era para pagar minha conta” me dita entre os dentes fez com que eu desconfiasse que ela estivesse consideravelmente emputecida com mais essa cantada do “senhor na ponta da mesa”.

Após esse episódio, começou a circular certa piada maldosa pelos corredores com relação ao doutor Sabujinho. Não se sabe quem começou, mas o que se tem dito é que o fatídico colega Rivarola é um tiozão da Sukita que se acha o tio da lancha. Particularmente, eu achei essa descrição injusta com o tio da Suquita.


12 de maio de 2023

PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Fernández e a estagiária [por Sérgio S., ex-Trezenhum Humor Sem Graça]

Nossa pequena fábula de hoje se passa uns andares acima, no setor de Fernández, funcionário do topo. Apesar de ser algo que os chefes não vêem com bons olhos, fomos hoje almoçar em um grupo diverso e sem nenhum doutor Sabujinho. Inclusive fomos a um lugar que não aqueles três que sempre costumo ir, conforme dito em crônica anterior. Do mesmo setor de Fernández estava Calzonelli - um manancial de boas histórias (menos para ela) que espero um dia conseguir trazer para estas mal traçadas linhas.

Desta vez a historieta é singela, sobre uma estagiária que chegou há um mês ao setor deles.

Primeira surpresa foi ter uma estagiária. Nosso setor há tempos não sabe o que é isso: há muito só entra gente parruda, já feita, formada, pós-graduada, mestrada (inclusive em D&D, que mais parece nome de loja de construção, mas isso foge ao nosso escopo), nada de estagiário, de pessoas que teríamos que ensinar algo e a quem atribuir todo tipo de tarefa, de buscar cafezinho a pintar mapas com lápis de cor para economizar impressora (como ocorreu no setor do Fernández, por sinal).

Lembro do meu tempo de estagiário, eu ainda na graduação. Naquela época havia um quê de quixotesco em fazer estágio: o estudante de triste figura, magricelo e cheio de espinhas na cara, mil planos e muitos anos de frustrações pela frente, crente que naquele estágio teria o primeiro grande insight da sua vida, e esse insight o transformaria numa sumidade em algum assunto qualquer que o transformaria no expoente da geração e mudaria a humanidade. Como alguém bem inserido em meu tempo (e classe), originalidade nunca foi algo que me acometeu. E o pior: como boa parte de meus colegas da faculdade, esse foi justamente o período mais fértil que tivemos, e não deixou de ser meio certo esses anseios do momento: foi justamente nessa fase que me veio o grande insight que tive na vida, onde condensei toda minha capacidade de observação com poder de síntese para soltar uma frase lapidar - até mesmo admirável pela pouca idade que eu tinha. Sim, o grande momento da minha vida intelectual e laboral se deu no estágio (se se excluir questões de título e monetárias), e isso não me fez ir além de uma nulidade, incapaz de alterar sequer minha vida, que dirá a humanidade (não foi uma observação útil para a empresa, então não era para ter mudado ela de qualquer modo). Ainda hoje sempre relembro em almoços de domingo ou encontros com amigos que estejam sem assunto dessa minha grande ideia, até para ter uma certa admiração tardia - é comum elogiarem minha espirituosidade com tão pouca idade para elaborar uma frase dessas (ok, não era tão pouca, ainda mais se comparado ao Mozart, por exemplo), assim como o momento seguinte vem aquela expressão de pena, quando notam que já faz vinte anos que tive meu grande momento, e ele não vale mais que uma citação rápida numa mesa de bar ou de almoço de família.

Já hoje, o estagiário já chega com crossfit em dia, a skincare feita, dentes de porcelanato e botox preventivo, é muito mais focado no que (dizem) de fato importa, dá toda a impressão de que bebe ritalina desde a época da mamadeira: não perde tempo com besteiras como grandes ideias, está ali para crescer na carreira, contribuir com a empresa e ganhar dinheiro (quando sair dessa condição de estagiário, claro), comprar um carro da moda, um celular bom, se o dinheiro não der para um carro, um relógio ok, se o salário também não der para um celular, ao menos umas férias em algum pacote barato no exterior pago em 22 prestações. Enfim, para esta geração estágio é o primeiro passo para ficar rico no futuro, não é para mudar o mundo - ainda que o estagiário siga basicamente com a nobre função de atender ao telefone, buscar um café na máquina ou um pão de queijo na cantina para os não estagiários.

Voltemos ao caso da estagiária do setor do topo. Mal nos sentamos à mesa e Calzonelli, com sua exuberância para contar causos com cores vivas, tratou de entregar Fernández: disse que a estagiária estava a fim dele, se pavoneava todo dia para seu lado, sem pudores, e todo o setor já comentava sobre isso. Fernández ficou constrangido em ser entregue assim. Respondeu sem graça que ela só era simpática, não havia segundas intenções. Calzonelli insistiu: ela era só atenção e sorrisos e bons dias para ele - ele, que era só mais um qualquer no meio da hierarquia, sem qualquer cargo de chefia (no máximo um salário mais alto que o da Calzonelli, afinal, ele é homem e isso basta, segundo vários deputados) -, para todos os demais ela vivia de cara fechada, malemal cumprimentava. Nós, claro, animávamos com a história proto-picante e, diante da torcida a favor do affair, Calzonelli já organizava um plano para Fernández tentar algo com a estagiária no mesmo dia.

Foi quando o nobre colega do topo foi um pouco mais enfático na sua defesa de que não havia nada demais entre ele e a moça: “Eu acho que você exagera na minha relação com a Ruth”. Calzonelli o mirou com a expressão fechada, como se não entendesse algo: “Que Ruth?” “Ora, a estagiária”. “A estagiária chama Ruth desde quando?” “Desde quando entrou, oras!” “O nome dela não é Rita?” “Não.” “Mas todo mundo chama ela de Rita, desde quando ela entrou!” “Eu notei, estranhei, mas no crachá dela está Ruth, e eu chamo ela de Ruth”.

Nosso ânimo arrefeceu e tivemos que dar razão ao nobre colega Fernández, de que a simpatia de Ruth não deveria ter nada a ver com segundas intenções, só com o fato de ele ser o único a chamá-la pelo nome, mesmo.

04 de maio de 2023

PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

quinta-feira, 13 de abril de 2023

O fatídico colega Rivarola, o Doutor Sabujinho do momento [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

Em minha última crônica, preciso confessar e me desculpar publicamente, fui injusto com Macedo, meu nobre colega. Havia dito que ele era o golden boy dos chefes. Nunca foi. Apesar de funcionário exemplar, compenetrado e produtivo, o funcionário do mês sempre ficou a cargo de algum puxa-saco - e isso Macedo passa a anos luz, mesmo quando um antigo chefe insinuou que ele se daria bem se fosse um “pouco mais flexível e imparcial".

Troca-se de chefia, mudam os colegas, contudo, desde que estou em meu atual emprego, sempre temos alguém no setor que é despudoradamente um Fagundes, personagem da Laerte - e a maioria dos chefes adora esse tipo de funcionário, ao menos num primeiro momento. Curiosamente, o perfil é sempre muito parecido: um doutor em sua área, fracassado conforme seus próprios parâmetros, disposto a compensar esse seu retumbante fracasso com elogios do chefe de turno, a quem serve de maneira constrangedora e sem preocupação se isso implica pisar nos colegas. Sempre me pergunto se esse tipo de pessoa acaba assim por falta de uma mãe para elogiar ou, no outro extremo, de uma mãe que tudo elogia e não conta que ele ser o filho perfeito para ela não implica em perfeição fora de casa - e que ele não precisa provar a perfeição que a mãe vê pra toda autoridade. Enfim, por conta desse perfil comum, esse colega acaba por ganhar a alcunha, ou melhor, o título honorífico de Doutor Sabujinho - e alguns comentários maldosos, digo, imparciais, para ficar no mesmo campo que o antigo chefe.

Que conste aqui, um medium scriptum para não ter que ficar no post scriptum: se acaso este texto aparentar que tenho algo contra os doutores Sabujinhos com quem já convivi em minha vida laboral, nunca foi além do trabalho e do pessoal; e ainda assim busquei manter o máximo de isonomia e imparcialidade com os fatos.

Claro, há pequenas nuances entre um Doutor Sabujinho e outro. O atual, o fatídico colega Rivarola (que não é nobre, que fique claro, e para ter direito a algum adjetivo, achei que fatídico ornava), tem em comum com os anteriores uma proatividade ostentatória, de quem pega todas as demandas para si - mas é esperto para logo em seguida despachar parte dessas tarefas para algum colega ingênuo de fato fazer por ele, que fica com a fama no final.

O Doutor Sabujinho anterior tinha como grande frustração não ser o professor de Harvard que ele se julgava merecedor. O atual, crente piedoso do empreendedorismo e do anarco-capitalismo-cristão (afinal, na Bíblia Jesus fala em “que atire a primeira pedra primeiro os clientes Prime e Personnalité com as mensalidades em dia”), foi injustiçado pelo mercado, digo, pelo Estado, que não permitiu que sua startup vingasse e ele se tornasse o Steve Jobs brasileiro. O mais próximo do sucesso como empreendedor digital que ele chegou foi ser motorista de aplicativo (e usuário do aplicativo de ajuda emergencial do governo), após abandonar a infrutífera busca de jobs na sua área, mesmo com doutorado. Umas horas penso que foi melhor para ele: como empreendedor de sucesso, não teria um chefe para puxar saco e não poderia desenvolver suas verdadeiras habilidades (que estão muito além de qualquer doutorado).

Como todo Doutor Sabujinho, Rivarola é um profundo conhecedor de... tudo. Na verdade, de tudo e mais um pouco. E ainda um pouco mais. Sem falar na sua área de doutoramento, onde o fatídico colega parece que não ganhou o Nobel somente porque perdeu a data de inscrição. Uma versão moderna do vizir da história de Nuredin Ali e Bedredin Hassan (“um homem prudente, sábio, penetrante, perito nas belas letras e em todas as ciências”). Da queda do nome do pai na psicanálise lacaniana à fabricação de microchips com cobres aniônicos (cuprate) de lantânio, hólmio e bário; de teoria econômica (todas as vertentes) aos grupos fuchsianos aritméticos; do factum da razão nos juízos a priori à influência das civilizações pré-axumita na arte contemporânea produzida pelos dissidentes neoístas pós festivais de apartamento em New York; dos verdadeiro desejos do verdadeiro deus ao manuscrito Voynich (que ele não deve ter ainda liberado a tradução ao grande público porque está em dúvida na tradução de alguns termos), Rivarola talvez só não saiba a cor da minha cueca do dia - talvez. Mas a do chefe, ele deve saber com certeza.

A grande diferença de Rivarola com relação ao Doutor Sabujinho anterior, é que este tinha um ar meio bobo que causava certa piedade (até nos depararmos com ele caguetando alguém para o chefe); já o atual tem mil ares: adora carregar nas expressões faciais e corporais - parece que fez o curso de atuação do Wolf Maya e aprendeu direitinho (poderia ter sido ator de Malhação, se fosse bonito). Ele tem sempre a expressão super expressiva para expressar o momento* de acordo com o que sente do chefe. Se é algo grave, ele incorpora a expressão fechada, o tom severo - parece um médico sério (são raros, mas existem) comunicando o estado terminal aos familiares -, mesmo que seja só um dado outlier que será excluído do relatório do mês; se é alegria o que o chefe espera, só falta dançar declamando poesias do Casimiro de Abreu (não confundir com o Casimiro Ferreira, por favor!
) pela sala. Não há piada do chefe que não mereça uma sonora gargalhada a ecoar pelos corredores, e não há nada sério dito pelo chefe que não lhe inspire o mais compenetrado olhar.

Novamente, me alongo na apresentação do colega e acabo sendo obrigado a deixar para uma próxima o episódio que queria contar.


13 de abril de 2023


* Reitero: não fui redundante, fui influenciado pelos grandes dramaturgos gregos, como Aristófanes. Inclusive em grego fica um simpático, veja: εκφραστική έκφραση εκφράζουν.


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.



domingo, 5 de março de 2023

A Quinta de San Pedro Alejandrino

Fazer uma viagem com "planejamento em tempo real" tem seus problemas, seus percalços, pontos interessantes que se deixa de visitar, trajetos não muito espertos, gastos desnecessários, mas também abre oportunidade para ir a programas que não se imaginava, não estavam nos planos, e não raro acabam ficando entre os mais interessantes. 

Em 2006, quando fiz um mochilão pela Patagônia com meu irmão, também com planejamento em tempo real - ainda que com noção do que queríamos ver e aonde ir -, não conseguimos ir até Ushuaia (passagem só para dali uma semana), nem subir a Ruta 40 e visitar a Cueva de las manos (muito caro), mas em compensação fomos até El Chaltén, que se hoje é um programa consagrado, então era bem alternativo, sequer constava no guia que havíamos comprado (que sugeria bizarramente Trelew e Puerto Deseado, em compensação), e cuja estrada que levava até a cidade sequer era asfaltada - e uma das coisas que me agradou foi poder fazer as trilhas sem guia, no ritmo que queríamos, inclusive saindo um tanto do caminho, pra ir assistir ao sol se pôr por trás dos Andes enquanto tomávamos mate.

Nesta minha viagem à Colômbia, acabei vindo até "la zona costera". Em Santa Marta, haviam me dito das praias, em especial de Tayrona. Soube apenas quando passei por uma das praias da reserva, que só se chega de barco e possui apenas um hotel simples como atração, que era possível se hospedar ali. Um passeio que muito me interessava era o da chamada Cidade Perdida, mas exige um tempo que não tinha (além dos valores). 

No primeiro dia fiz o passeio mais básico, até a praia de San Juan, em que ganhei belas queimaduras de sol pelo corpo - e que me fez admitir que praia não é mesmo a minha praia (talvez as muito vazias, como a que falei acima), que eu gosto é de morro e trilha, ou então cidade. 

No segundo dia, até por não ter condições de ficar lagarteando ao sol, pedi indicação à dona do hotel onde estou hospedado, que me recomendou La Quinta San Pedro Alejandrino, a uma hora de ônibus dali, longe do centro de Santa Marta, da praia, perto da "rodoviária" e de dois shoppings centers. Não sei por quê, se preguiça ou pressa de sair, não pesquisei o que havia em tal quinta. Apenas fui, e cada vez mais arrependido conforme a viagem no ônibus urbano (que os colombianos chamam de "buceta", para delírio da quinta série B) se demorava e se afastava do que parecia ser mais turístico. Ao chegar, uma entrada simples e do outro lado da rua um shopping. Um parque de vegetação ressequida? Ou teria ela me indicado o shopping?! 

Descubro que preciso pagar a entrada. Recuso um guia, com medo de que me cobrem (mas tenho a impressão de que não é o caso) e também de ter que seguir um roteiro muito definido. As placas indicam o suficiente: é um antiga fazenda de cana, iniciada em 1608, que produzia rum. Estão lá a "Bagacera", o "Trapiche", a "Destilería" e o "Sótano" (cuidado com mais esse falso cognato, sótano é porão, cova) para a produção do rum, assim como a casa da fazenda, "la casa Quinta" - pelo visto, o local de morada dos escravos, e talvez mesmo dos serviçais, não foi preservada, tão ao gosto das nossas elites, de apagar o trabalhador da história. 

Certo, interessante a fazenda, ainda que se perceba que a conservação não é dos edifícios do século XVI, tais quais eram - até porque como foi utilizada por mais de duzentos anos, é de se imaginar melhorias e não sua preservação para comemorações futuras de um estado nacional que sequer existia. Na verdade, descubro depois, estaria bastante próxima do que era em 1830. 

É meio dia, o calor é intenso, abafado, a respiração fica pesada, estou com sede; as construções são interessantes e o trajeto no sol entre elas (devidamente vestido) faz minhas queimaduras do dia anterior arderem. Ainda que La hojarasca, do García Márquez* se passe num ambiente urbano (se minha memória não me trai, li o livro em fins de 2004), me impressiono capacidade de ele descrever esse calor que ali me pesa - e não é a primeira vez, há um calor muito específico que ele retrata no livro, que não me parece ser apenas Colombiano (talvez eu esteja lembrando de quando fui à Venezuela, o que nega minha afirmação anterior, já que seria a Gran Colombia).

Noto adiante construções brancas, em estilo clássico grego - saberei logo mais que uma é o memorial da pátria, de 1930, a outra, o Museu de Arte Contemporânea, já do fim do século XX. O contraste das construções da antiga fazenda com aquele branco tão clássico e monumental, e com uma estátua no meio do caminho, também ela branca, ainda por cima, num dia quente, muito quente, e pesado, com uma vegetação que parece de clima mais seco (fora algumas árvores maiores), quase sem nenhuma pessoa circulando, me faz ver um De Chirico na cena - faltou apenas o sol estar se pondo, talvez um trem no horizonte. Todo o ambiente é de um surrealismo melancólico, uma espécie de abandono que não é mal conservação, é algo mais profundo, de um vazio de quando falta o essencial - e isso já faz eu achar que valeu o passeio.

Na casa da Quinta, algumas salas dedicadas à independência do país e aos eventos de 1930. Até aí, interessante, mas nada demais. O cômodo seguinte que visito é o banheiro, com móveis luxuosos. O próximo, o quarto, e acima da cama, uma placa indica que ali foi dado o último suspiro do libertador da pátria, em 17 de dezembro de 1830. É nessa hora que entendo a importância do lugar e, mais que isso, é nessa hora que entendo que estou no meio do cenário de El general en su laberinto, também do Gabo! A partir de então tudo adquire muito mais mágica, me vejo encontrando trajetos esquecidos nos labirintos de minhas leituras e lembranças.

Primeiro que me surpreendo de ser ali o fim da vida de Bolívar. Na leitura, eu imaginava ele percorrendo a amazônia colombiana para chegar ao Pacífico (puro desconhecimento histórico e geográfico). Segundo, me arrependo de não ter relido o livro para a viagem (até aí, como eu ia saber, se Santa Marta só apareceu como possibilidade de destino quatro dias antes de eu chegar?).

E como em Cartagena de las Índias, me ponho a imaginar as cenas relatadas pelo livro - mas desta feita é um livro bem específico, e não um García Márquez genérico imaginado por mim. E tal qual na capital de Bolívar, me surpreendo como tudo parece tão óbvio de ser escrito, que Gabo não teria tido mais que o trabalho de pôr em palavras aquilo que via, sentia e imaginava. Sim, me repito com relação a meu texto sobre Cartagena. E me repito também ao dizer que a Quinta de San Pedro Alejandrino é que se tornou óbvia por causa do escritor, e não o contrário.

É no final da visita que vejo uma placa avisando das árvores centenárias defronte a casa, volto para observá-las. Elas já estavam ali quando Simón Bolívar chegou à fazenda, em 6 de dezembro de 1830. Nelas teria ele armado sua rede. Isso me faz desconfiar como Gabo conseguiu relatar com tanta qualidade o general em seu labirinto, em seus últimos dias de vida: talvez tenha sido uma delas a lhe cochichar a história.



05 de março de 2023


* Como já comentei na crônica anterior: não sabia que García Márquez era da região.

 

quarta-feira, 1 de março de 2023

Eu chego a achar Gabo natural

O que define uma cidade? Uma cidade se faz de quem nela vive, ou apenas as construções garantem a ela esse título - como as cidades fantasmas? Saramago, em algum ponto de seu Manual de caligrafia e pintura, comenta que Florença há muito não pertence aos florentinos. A vez que fui à cidade, quase vinte anos atrás, ainda antes de ler esse livro, fiquei no centro histórico, e me deslumbrei com ele. Mas um momento, quando a ex com quem viajava foi no cinema, ver Senhor dos Anéis, e pude circular sozinho, algum incômodo me perpassou - talvez fosse isso (cheguei a comentar com ela, que recusou). Essa mesma sensação me tomou ao passear pelo centro velho de Cartagena de las Índias, no departamento colombiano de Bolívar.

Em uma viagem feita com "planejamento em tempo real", como bem definiu meu irmão, chego a Cartagena de ônibus, que pára distante do centro histórico, em uma região mais empobrecida, com prédios sendo construído aos montes nos arredores da rodoviária, brotando do solo árido como se fossem pragas. Como Cali e Barranquilla, o trânsito de Cartagena é algo como o que se vê em vídeos da Índia ou da Indonésia, ou como presenciei na Itália. Absolutamente caótico. Buzinas tráfego intenso carros costurando motos que surgem de todos os lados calor xingamentos poucos motoqueiros com capacetes, menos ainda seus acompanhantes, buzinas bicicletas disputando espaço micro-ônibus se atravessando pedestres calor cachorros congestionamento buzinas. O ônibus de Barranquilla aporta no fim da tarde, e o pôr do sol me resta acompanhar do táxi, enquanto me aproximo do centro velho e da área mais nobre da cidade - Bocagrande, onde me indicaram de me hospedar.

Como vou ficar pouquíssimo tempo na cidade, decido ir até o centro velho à noite, sem saber se haverá algo a ser visto ou não (sim, isso demonstra bem meu grau de desconhecimento do destino, da viagem e da Colômbia como um todo). No hotel, avisam que o caminho é sem risco, só evitar a beira-mar. Pelo visto, as cidades da Colômbia bastam por si, e ninguém aqui chamou Cartagena de qualquer versão colombiana de uma cidade mundial - tipo no Brasil tivemos a Califórnia brasileira, a Dallas brasileira, e agora temos a Dubai brasileira, que eu acho bem mais coerente chamar de Balneário de Prora brasileiro. Bocagrande, área nobre, possui nove edifícios (dos 31 que há em toda a Colômbia) com mais de 150 metros de altura.


É pouco antes das sete quando chego ao portão da cidade velha. Do outro lado da rua caos, trânsito, ônibus, filas de pessoas ansiosas para chegar em casa. Na praça, antes de entrar o espaço amuralhado, pessoas vestidas de branco cantam músicas de louvor numa roda de oração. Isso ajuda a azedar meu humor, já ruim pela viagem mal planejada (perdi três horas em trânsito para economizar R$ 100). Ao atravessar o portão, preciso admitir que um arrepio que percorre a espinha. A primeira impressão fascina e seduz.

Ponho a me perguntar quanto da cidade é original, quanto é reconstruída - como o Pátio do Colégio, em São Paulo. É muito mergulhar num tempo, com algumas atualizações: os letreiros e vitrines nos comércios - e Cartagena não é uma cidade pequena e engessada no meio de Minas Gerais. Chega a me parecer fácil e óbvio para Gabriel García Márquez escrever seus romances depois de passar um tempo por aqui. Suspeito de ter visto o coronel perdido em seus labirintos, assim como eu me extraviava por suas ruas. Claro, esta cidade é assim tão literária e encantadoramente óbvia graças à pena de Gabo, e não o contrário*.

É noite, não dá para ver muita coisa, os museus estão fechados e sei que no dia seguinte terei pouco tempo para desfrutar da cidade. Depois do jantar, páro em uma praça para pensar em tudo o que estou vendo e escrever esta crônica. Agora vem a parte amarga do texto...

É difícil imaginar que alguém realmente more aqui. Aqui tem hotéis, tem casas de câmbio, tem bancos, tem restaurantes, tem lojas de souvenirs, tem mercados, farmácias, tem lojas de grife, tem restaurantes de grifes, tem baladas de grife, tem pub, rooftop, pizza, sushi, hamburguer, tem hordas de turistas que zanzam em grupos, meio sem rumo e sem se preocupar muito com a vida, como as pessoas que andam pela região da Luz em São Paulo e são estigmatizadas, ou como os cegos do Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago. Parece que sinto algo de Toledo ou de Segóvia, na Espanha, e não é na arquitetura - é no clima como um todo. No dia seguinte, sob a luz do sol, encontrarei também comércio mais popular, dedicados aos trabalhadores que servem os turistas. Ainda assim, mantive minha pergunta: este centro histórico, com grande parte dos prédios construídos há duzentos anos ou mais, pode ser chamado de cidade?

Com todas as vitrines a iluminar os transeuntes de passagem por ali não mais que três ou quatro dias, com toda a modernidade presente, e vários elementos passadistas se apresentando como kitsch - o passeio de charrete, as vendedoras de frutas devidamente fantasiada -, Cartagena não parece uma cidade-museu como Tiradentes (e talvez também seja Florença). Ela me traz à memória outro livro do Saramago: A Caverna. Mais que um shopping, o centro velho parece um parque temático do século XVIII, em que você se sente dentro da cidade da época, ao mesmo tempo que sabe que há algo de muito falso que marca suas ruas. 

A cidade é um convite a deixar a imaginação voar, tentar imaginar como não seria uma noite ou uma manhã aqui, em 1750, as pessoas nas varandas dos sobrados, barcos chegando no porto com notícias de além mares, os pescadores oferecendo o que recém haviam trazido do mar - e, sim, os padres e a inquisição de olho nas próximas vítimas. Ainda assim, como exercício de imaginação, Cartagena é um tesão - e mesmo instiga a querer ler e saber mais sobre sua história.



Entretanto, a única coisa viva que de fato reside e faz uso deste pedaço da cidade é o dinheiro, é a mercadoria. O centro velho, no fundo, é morto. A alma deste lugar é a dos não-lugares de todo o mundo: assepsia para desfrute de turistas do primeiro mundo, dos cidadãos globais que não são barrados em aeroportos. Tudo aqui parece sobreviver pelo e para o capital: nas vitrines e suas mercadorias, nas prostitutas que começaram a se enfileira na praça quando eu já estava para voltar, como antigamente deviam fazer com os escravos que chegavam da África; nas ofertas de passeios, nas de cocaína, nas marcas globais, nas marcas de luxo, nos logos e ícones do capitalismo.

O centro velho de Cartagena de las Índias é bonito, é instigante, mas também é triste, talvez seja mesmo trágico, diante da predominância do capital sobre a vida das pessoas e da própria cidade.


01-18 de março de 2023


* PS: foi só já no Brasil que fui me informar de que região era Gabo. Eu achava que ele era da costa do Pacífico, próximo à região amazônica (talvez por ser minha referência de quente e úmido), e não da costa do Atlântico! Mais especificamente do departamento de Magdalena, minha parada seguinte.

 

domingo, 26 de fevereiro de 2023

A descida e a decadência


Foi no meio de uma trilha na Cordilheira Ocidental que imaginei que a idade havia chegado, finalmente. Eu, entrado nos "enta", ainda me achava o "xovem", tão apto quanto aos vinte para subir um morro, afinal, por mais que não pratique um esporte, levo uma vida ativa, caminho cerca de dez quilômetros por dia e corro outros três uma a duas vezes por semana.

No dia anterior, Felipe me propôs essa atividade - que muito me interessa -, e que ele não me acompanharia, por conta de ter tido uma hérnia inflamada não fazia muito - eis a idade chegando ao meu amigo conhecido há 21 anos. Me deu as características da trilha, dentre elas, que era nível 2 e não iria até o Pico de Loro, e terminava num "charco", espécie de piscinas naturais no pedregoso rio Pance. Duplamente decepcionado, aceitei porque era o que tinha. Imaginava quase um passeio para a terceira idade, sem dificuldade.

Dia seguinte, oito da manhã, junto a um grupo de 25 pessoas de uma academia de Cali, cinco aleatórios e mais o guia, nos metemos pelo "sendero de nivel dos". Não que alguém mais velho não dê conta de subi-lo, mas certamente precisa de um bom condicionamento físico para fazê-lo - duas pessoas, provavelmente mais jovem que eu, desistiram na metade. E muitas das que alcançaram o topo da caminhada precisaram parar no caminho para tomar fôlego, a ponto de eu ser o nono a chegar, mesmo sendo, aparentemente, um dos mais velhos - me senti o Zanardi na época de ouro da Indy, fazendo corrida de recuperação. Ainda que suado e com a respiração alterada, terminei os dois quilômetros e cinco mil passos inteirão, disposto a subir mais dois quilômetros tranquilamente (havia mais para subir, mas não era parte da rota).


Foi na descida que comecei a sentir: as coxas começaram a tremer, o joelho a doer. Comecei a descida como último da fila, e terminei como último (até porque não dá para acelerar, por conta do risco de queda e fazer um "strike" em quem vem na frente), xingando que quem puxava não fez uma mísera pausa. 

Meus joelhos doendo cada vez mais e eu pensando que era hora de aceitar a realidade: a idade chegava e o corpo avisava inclemente: não sou mais um jovem, e talvez seja mais conveniente buscar um grupo de jogos de tabuleiro e dominó ao invés me aventurar em escaladas nível dois (e lembrava que em 2019 minha mãe, com quase 70, havia aguentado tranquilamente uma trilha nível 3 em Florianópolis). Descida segue e as dores aumentam, não só de intensidade quanto começo a sentir meu quadril. 

Tento pensar em outra coisa, que não minha decadência física, me esforço pra lembrar a conjugação de alguns verbos em espanhol que tenho dificuldade, mas ao invés disso meu cérebro decide retomar as conjugações do latim, que fiz com Felipe. Ego sum, il, el est, sumus, sunt. Como é mesmo a segunda pessoa? Dizem que quando estamos diante da morte, passa um filme em nossa mente. Será que a minha resolveu fazer uma prova de latim? Se eu reprovar, não vai ser possível continuar o filme, logo não vai ser dar para eu morrer (ainda que minha experiência de morte, no ônibus indo visitar meus pais, tenha sido tão somente o vazio - mas no fim, descobri logo que eu não estava morto [https://bit.ly/cG150214]). Reconheço que isso me tranquilizou, ainda que minha fraqueza física fosse uma notícia triste - não estou na hora da morte, mas ela se aproxima a galope. Quem sabe se eu, como meus colegas de grupo, começasse academia, algo mais sistemático e com acompanhamento profissional? Hora de assumir que sou, no máximo, um jovem senhor, já sentindo o peso dos anos - e da gravidade.

Mas eis que terminamos a descida e ao chegar, estão todos, jovens e não tão jovens, desesperados por um lugar para se sentar, se queixando "de temblor en las piernas" e, em especial, de dor "en las rodillas".

Moral da história: o dito brasileiro "pra baixo todo santo ajuda" é uma mentira cretina de quem nunca precisou descer um morro mais alto! E eu sigo me achando um esbelto xovem de quarenta anos, insistindo em ignorar a idade.

26 de fevereiro de 2023

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Panama City Airport

Depois de quase dez anos, me ponho a fazer uma viagem internacional de passeio (minha última viagem internacional foi a serviço, a marcante ida ao interior da Venezuela colapsada, em 2019). Sempre que embarco em um avião lembro dos professores universitários do Rio de Janeiro destilando todo seu ódio ao PT e à democracia [http://bit.ly/3lpum2I], ao criticar um passageiro de chinelos no aeroporto, e lamentando o fim do "glamour" em viajar de avião. Alguém se crendo glamuroso no saguão de um aeroporto mostra o quanto busca distinção dos seus iguais a todo custo, já que não tem condições de pagar um vôo particular, sequer primeira classe com área de espera vip. Parênteses para contar do pouco de glamour de viajar de avião que conheci: sem ter a mesma sorte de uma ex, que diante do overbooking da classe turística, voltou da Espanha para o Brasil em segunda classe, minha primeira viagem internacional, como era menor de idade, fui tratado como uma tocha olímpica, que precisava ficar passando de mão em mão entre os funcionários, sempre com o comentário "que grande esse menor!" (e na época eu ainda nem tinha crescido tudo). Em dado momento, me deixaram esperando o vôo junto com os bacanas, na área vip da empresa, com bebidas várias, castanha de caju, telefone (tudo grátis) e entrada prioritária, mesmo eu indo de terceira classe. Fecha parênteses. Na minha viagem atual, meu glamour de voar esteve em ter a fileira toda para mim e poder dormir como se estivesse num banco de rodoviária.



O vôo até Cali faz escala na Cidade do Panamá, devidamente globalizada no seu código IATA: PTY, de Panamá City (dá quase a sigla do aeroporto de meus últimos vôos: PTO). E o Panama City Airport mostra que é um não-lugar autêntico, que não estar no Ocidente (EUA, Austrália ou algum país da Europa Ociental) é um mero detalhe, e que qualquer "sujeito universal", colonizador ou colonizado, se sentiria em casa nele: estão lá marcas globais, em grande medida as mesmas que vi em GRU (Guarulhos) e que veria em LGA (La Guardia) ou CDG (Charles de Gaulle); mudam apenas algumas marcas locais - ainda que o design seja basicamente o mesmo -, e na loja de souvenirs, peças tidas por locais, devidamente pasteurizadas ao gosto do turismo de check list globalizado.

Mas senti mesmo esse ar da gloriosa civilização europeia nas minhas costas, ao sair do avião. Vinham atrás de mim dois homens negros. Dentro do avião conversaram um pouco entre si, em francês. Na porta da saída da rampa que liga o avião ao saguão, há um funcionário do aeroporto. Vamos passando todos em lenta peregrinação por ele, que parece não ter função alguma ali - talvez de abrir e fechar a porta? Até que passo eu, e os dois homens atrás de mim, não. "Passaportes, por favor", pede o funcionário, num tom de intimidação. Os não-lugares, assim como o Ocidente, são para os sujeitos universais, os cidadãos de primeira classe do mundo, esses que estarão na última linha atingida por guerras e crises: negros, latinos, asiáticos marrons, chineses, transexuais, esses precisam dar mostras meritocráticas de que merecem respirar o glamouroso ar destinado aos brancos.


24 de fevereiro de 2023


segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Família [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor sem graça.]


"Família, família
cachorro, gato, galinha
família, família
vive junto todo dia". 

Se a desocupada leitora, o desocupado leitor esperava neste texto uma crítica à família, com citações de Engels e Gaiarsa, sinto informar que não haverá nada disso. Se, pelo contrário, imaginava que encontraria alguma palavra cristã edificante sobre a família, como teria a pastora Flordelis ou vemos nos sonhos eróticos-perversos da pastora Damares (quer dizer, espero que sejam sonhos, porque metade de sua historieta perversa de sequestro de crianças ela é acusada de já ter praticado), você errou feio, muito feio. Se imagina que uma família é como uma empresa, digo, que uma empresa é como uma família, tenho dó da sua família e sofro de inveja reversa de onde você trabalha.

“Família” é como não raro usam para se referir a mim e ao nobre colega Macedo, quando saímos pelo centro da cidade, em nosso horário de almoço, conforme comentado alhures. 

Até então achava que fosse uma forma de o atendente tentar parecer simpático ao chamar duas ou mais pessoas que chegam a um estabelecimento comercial: na ânsia de não ser minimalista com um “o que vocês querem” ou “pois não”, ao invés de um formalóide “o que os clientes/os senhores desejam”, ou os “o que os irmãos precisam”, que daria um ar muito religioso (talvez na Conde de Sarzedas caia bem), “família” soaria uma tentativa menos clichê, ainda que aparentemente muito utilizada. 

Pois estávamos eu e o nobre colega Macedo na zona, em um dos estabelecimentos comerciais onde costumo comprar chimia. A atendente se aproximou com o já habitual “posso ajudar, família?”. Ao que respondi que não, apenas olhava, mas ela insistiu em ficar ao nosso lado - depois a gente migra para as compras online e não entendem o porquê. Avisou que a geleia de determinada marca estava em promoção. Agradeci e avisei que era diabético. Ela assinalou onde estavam as sem açúcar e para ali voltei meu foco. 

Não o nobre colega Macedo, cuja atenção foi sugada pela geleia de alho com pimenta tal qual o clássico Ferdinando, o touro, diante de uma borboleta. Dono de marmitas com misturebas um tanto esdrúxulas (sem entrar no mérito se ficam boas, apenas que são plenamente incomuns), ele soltou um introspectivo “olha!”, enquanto eu me indignava com a empresa tentando me enganar, cobrando cinquenta centavos a mais numa geleia 100% fruta, mas com metade do peso. A atendente, que seguia ao meu lado, me pressionando, interveio de pronto: “essa tem açúcar” (sim! A geleia de alho com pimenta é doce!). “Ele está vendo pra ele”, respondi, ao que ela soltou um “ahh” estranho. 

E foi esse “ahh” estranho que fez eu suspeitar que o “família” que sempre ouvíamos não era um vocativo comum a todos, mas só àquelas pessoas que atendentes crêem serem uma... família. Isso se confirmou naquela mesma tarde, após ter perguntado a outros colegas e ninguém ser “família” quando saíam juntos às compras na hora do almoço.

Olhei para Macedo, meu nobre colega, e comuniquei, desolado, a descoberta: “Macedo, acham que somos um casal”. 

Até aí, tudo bem - desde que a senhora Maceda não achasse também e quisesse tirar qualquer satisfação e partir pro braço comigo. O problema é que imagem de casal as pessoas devem ter de nós: dois caras meio parecidos, com barbixas parecidas, usando roupas sempre quase iguais: com certeza acham que temos também um chaveiro com o rosto do outro escrito love e cada um tem um pingente com metade de um coração (se não for uma tatuagem na ulna ou no carpo ou em região íntima!). O problema não é acharem que somos um casal, mas que somos um casal brega! “Brega, Macedo! Um casal muito brega!”. Anos de estudo em artes pra terminar assim: confundido com alguém brega! E não adianta no lugar de pingente ou tatuagem de meio coração ser qualquer outra meia-imagem, mais significativa: seguimos bregas!

Para ajudar meu drama aqui compartilhado, Macedo não aceitou que passássemos a usar o crachá ao sair, para ao menos acharem que estávamos quase com a mesma roupa por trabalho, não por um de nós ter perguntado, no início da manhã, “amor, vamos de camisa vermelha hoje?”


23 de janeiro de 2023


PS: Este é um texto ficcional. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Não misture drogas: o caso da berinjonha [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor sem graça]

É discurso do senso comum que não se mistura drogas. Vale para as legalizadas, vale mais ainda para as ilegais, que não possuem, por conta dessa política, qualquer controle de qualidade.

É comum um povo de classe média alta que esquece que está tomando Rivotril - ou algo mais moderno - exagerar no uísque ou no campari, e deixar aflorar tudo o que tem no recanto de sua alma em vídeos nas redes sociais - e depois precisa se explicar que não é racista, machista ou homofóbicos, tem até amigos gays e já teve uma funcionária preta. 

Mesmo gente não tão abastada sempre diz que misturar bebidas dá ruim: uns dizem que a ressaca pegou porque fez a mistura de destilado com fermentado, outros porque misturou vinho e cerveja, há aqueles que o problema foi misturar gin e cachaça - nenhum admite que a ressaca foi por excesso de álcool, e não vejo porque não acreditar nessa versão de mistura de alcoóis.

Este sábado recebo uma mensagem no meio da tarde, do nobre colega Goreti - cujo apelido não sei se se dá porque sua mãe, Goreti, era realmente tão legal a ponto de quererem homenageá-la com o apelido ao filho; ou se o filho que era chato e melhor lembrar que ao menos sua mãe era legal; o ponto é que ele já se apresenta com esse apelido, que vem de anos. Pois Goreti, que também é meu vizinho, me mandou um áudio avisando que havia misturado maconha com algo que não consegui entender, estava passando mal, e se eu poderia ir socorrê-lo - ou, na impossibilidade disso, de ir dar comida para o gato, na manhã seguinte, e ver o que fazer com o que restava dele. A porta estaria aberta, era só entrar e salvá-lo. 

Preocupado com o que ele havia misturado sem sequer esperar o ano novo, fui até sua casa. Quando entrei, encontrei-o jogado no sofá da sala, cabelo molhado do banho. Perguntei o que tinha usado, se queria que o levasse para o pronto socorro. “Não precisa. Vomitei. Estou melhor”, balbuciou pausadamente. Tremia e não parecia bem. O vômito me fez lembrar que na faculdade eu tinha um amigo que costumava fumar maconha logo depois de usar ayahuasca, para dar um gás no efeito; imaginei se não seria esse o caso de Goreti: havia conseguido um pouco do alucinógeno, misturado os dois, como fazia Xelim*, e tido uma bad trip sem ninguém para ajudar a segurar a barra. Insisti em saber o que havia usado, e de novo só entendi a maconha. “Maconha com o quê, ô, criatura?!”. Eu estava realmente preocupado. “Com berinjela”.

Berinjela? Fiquei um tempo tentando entender se havia entendido direito. Berinjela. Devia ser, ele havia sido claro dessa vez. Meus parcos conhecimentos dos apelidos para psicotrópicos me fizeram ficar na mesma: “O que é berinjela?”. “Berinjela”, insistiu ele, sem abrir os olhos. “É um doce, uma bala, é farinha, é ácido, é popper?”, insisti, ignorando que eu nunca sei o que é doce e o que é bala, e gastando todo meu conhecimento em nomes de drogas com farinha, ácido e popper. “Berinjela”. “Cadê a embalagem disso?”. “Que embalagem?”. “Que porra é berinjela? Acho melhor irmos para o hospital”. “Não precisa”. “Me diz o que você misturou com a maconha”. “Berinjela”. “Que raios é berinjela?!”, eu me exasperava. Ao que ele respondeu com um muito claro “Berinjela é berinjela, caralho!”. “Você diz a leguminosa?”. “Berinjela é fruta”. Não acreditei nessa de fruta, mas deixei pra buscar essa informação na internet só depois - e ele estava correto -, no momento eu fiquei tentando entender a mistura. 

“Você fez uma berinjonha e teve uma bad trip, isso?”. “Não! Na verdade eu comi uma lasanha de berinjela. Sabe aquela que levei e não comi, porque saí comer fora com vocês?”. Eu lembrava, inclusive porque ele não havia posto sua marmita na geladeira. “Aquela lasanha de quatro dias atrás?”. “Oito”, me corrigiu. 

Uma lasanha de berinjela de oito dias, sendo um deles fora da geladeira... “Por que não me disse que estava com uma intoxicação alimentar, ao invés de me assustar assim?”. “Porque eu não achei que fosse. Pensei que poderia ser algo que misturaram com a maconha, ou a combinação de maconha com berinjela. Sei lá, maconha é bastante gordura e dizem que berinjela emagrece, vai que a interação é perigosa. Eu estava tendo um aperto no peito, muito enjôo, uma bad trip que nunca tinha tido”. “O modo de preparo da berinjela você não levou em conta?”. “Ainda estava boa, não achei que fosse... até vomitar”.

Me tranquilizei, acreditei quando Goreti disse que estava bem e eu poderia voltar para casa. Fiz para ele um soro caseiro (nem sei se caberia nesse caso, mas fiz), e disse que me buscasse caso precisasse de algo - não precisou. E eu deixo aqui o aviso de caso alguém resolva fazer um berinjonha: que ouse por sua conta e risco de eventual bad trip.


02 de janeiro de 2023


* Sim, os antigos vão lembrar que Xelim esteve presente em notícias do Trezenhum. Humor sem graça. É o mesmo.


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

 

sábado, 10 de dezembro de 2022

Dez anos - tão rápido, tão lento

Desço na estação Prefeito Celso Daniel - Santo André. Há dez anos não parava ali, desde quando abandonara o curso na Federal do ABC, ainda no segundo quadrimestre. É como voltar dez anos no tempo, mas não parece tanto tempo assim. São mesmo dez anos? 

Diferente do que fiz tantas e tantas manhãs de 2012, me encaminhei para o lado do  centro da cidade, não da universidade. E diferentemente de 2012, meu pai não me ligou às seis, horário em levantava para esvaziarva bolsa de colostomia, para saber se eu tinha dado conta de acordar (até então eu estava acostumado a dormir sempre depois das três, foi difícil voltar a acordar cedo). Estou atrasado, caminho sob o sol ardido num dia quente e seco - que me faz lembrar de Pato Branco ano passado, quando estava vivendo com minha mãe seus últimos dias. Chego já fora do horário oficial de lançamento do livro Colateral, da Isabela Veras, amiga de meia década e muitos desencontros. O horário do almoço ajuda a esvaziar a livraria, e sobram alguns recalcitrantes - eu dentre eles. 

Escultura de Ricardo Amadasi

Isa me apresenta a Alpharrabio, projeto de 30 anos de sua mãe, Dalila. O local vende livros, mas claramente isso é uma desculpa para reunir pessoas que gostam de literatura e possuem outras afinidades. Antes de ela me falar, havia ouvido Dalila contar a um grupo da compra da casa e das reformas para transformar no que é hoje. Isa conta dos eventos que acontecem todo mês - o sarau, o encontro de escritoras. Me faz lembrar de Misson, que sempre agitava eventos na Penha - às vezes conseguia algum lugar público, se não, improvisava numa praça ou reunia em sua casa mesmo. Quem sabe se não tivesse partido prematuramente não teria ela aberto seu Alpharrabio? Também me lembro da Casuística, a revista eletrônica que agitei entre 2009 e 2013 - interrompida com o vazio trazido pela partida da Misson, que assumira a função de co-editora a partir da segunda edição. E dos "poetinhas", o grupo de poesia agitado pelo Cassio e Jeff, do qual eu participava como ouvinte, por não ser um gênero no qual me arrisco. Um lugar desses seria uma preciosidade para o daniel de 2010, 2012, e seus amigos.

Antes mesmo de ir à Alpharrabio, volta e meia recordo com nostalgia daquele meu ânimo em experimentar e arriscar, talvez mesmo fazer o papel de bobo, em nome de nem sei o quê - ter gente interessante e igualmente realisticamente rebelde com o princípio de realidade por perto. 

Nunca achei que aquele meu ímpeto fosse coisa da juventude, ainda que acredite que tê-lo perdido seja fruto do tempo - não o tempo que simplesmente passa, mas o que deixa cicatrizes, no meu caso, dessas três perdas: Misson, meu pai e minha mãe. Dalila abriu a livraria com mais idade que tenho hoje, e não só isso: é explícito o tesão com que leva suas atividades - a livraria e o ativismo cultural em Santo André, que já lhe rendeu uma série de homenagens, além de um doutorado honoris causa. Claramente idade não é algo que interfere na juventude de uma pessoa - antes como ela consegue levar as adversidades da vida.

Isa me mostra detalhes da Alpharrabio: o auditório, as esculturas, os livros da editora, os livros-objeto. As escadas no jardim interno me remetem à Prainha da PUC. O mimeógrafo posto como enfeite me faz lembrar do "livro" que produzimos na escola, rodado em um aparelho desses, com o cheiro de álcool a marcar a alegria de termos nosso livro - eu tinha oito ou nove anos, estava na terceira série. Naquela época nunca que eu imaginaria que um dia lançaria livros de "verdade" - hoje me questiono do que valeria lançar os que tenho no prelo.

É perceptível o afeto que atravessa o mostrar e recordar de Isa: "cresci em meio às reuniões de poesia de minha mãe, primeiro na casa das pessoas, depois aqui. A Alpharrabio é minha segunda casa". É o mesmo afeto que me atravessa quando penso na casa de Pato Branco - e me vejo mostrando ela aos amigos e companheiras que chegaram a conhecê-la com essa mesma empolgação, de um passado vivo e presente. A diferença é que a casa de Pato nunca deixou de ser a primeira - junto com as outras que tive. Casa que sonhei hoje, e que no meu sonho não estava vazia, como está há dez meses, pelo contrário: estavam lá meu pai no balanço, minha mãe com os bonsais e meu irmão com a reforma da cozinha, que ele levou a cabo ano passado.

Na volta, na estação esperando o trem, como fizera vários fins de tarde de 2012, me pego pensando em tudo o que me ficou pelo caminho entre Santo André e São Paulo, entre 2012 e 2022: ânimos, ímpetos, desejos intensos de experimentar... futuros do pretérito interrompidos pelo que a vida tem de mais ordinário: a morte. "Viver é ir morrendo aos poucos", dizia minha mãe.

Foram mesmo só dez anos desde o último trem que peguei ali?


10 de dezembro de 2022

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Macedo, meu nobre colega [por Sérgio S., da Equipe Trezenhum. Humor sem graça.]

Macedo, meu nobre colega, como comentei em outro texto, sempre me acompanha nos entretenimentos de hora do almoço - vulgo comer e dar um rolê, às vezes fazer compras. 

Antes de continuar, um parênteses. Para não ter toda vez escrever "Macedo, meu nobre colega", vou abreviar para "Macedo MNC", mas não seja preguiçoso ou preguiçosa ou ambos e siga lendo "Macedo, meu nobre colega". Fecha parênteses.

Foto de Macedo, meu nobre colega, em suas últimas    
férias (arquivo pessoal dele, vulgo Instagram)

Não apenas isso, os demais colegas - que são nobres, mas não se chamam Macedo - dizem que somos parecidos: ambos magros, filhos de bancários, barbicha parecendo um ninho feito por um pombo bêbado, as mãozinhas para trás na hora de caminhar, guarda-roupas com pouca variedade (quer dizer, eu acho que ele tem um guarda-roupa, mas pode ser que seja uma pessoa chique e tenha um closet), humor bastante peculiar e que dividem com poucas pessoas, e branquelos - ainda que ele tenha um tom fanta mais autêntico e eu esteja para um branquelo-amarelado encardido (ao menos minha mãe sempre critica minhas roupas brancas, que ela diz estarem encardidas por conta do tom de branco que possuem). Por causa dessas semelhanças entre nós, eu acabo ficando estatisticamente parecido com um colega que trabalha alguns andares acima, no que hoje chamam de Rooftop (lê-se rufitóp), mas no meu tempo era apenas último andar, a quem chamaremos aqui de Fernández, Funcionário do Topo (FDT), sendo que o topo aqui se refere ao topo do edifício, não da carreira. Isso porque, apesar de eu não parecer com Fernández FDT, ele e Macedo MNC se parecem, e como eu e Macedo MNC nos assemelhamos, sobra que termino por ser estatisticamente parecido com o nobre colega Fernández FDT, de alguns andares acima.

Novo parênteses (me desculpe tantas interrupções): acabei de notar que o MNC não é uma boa, por dois motivos. Primeiro: vai que alguém se refira a ele como "Macedo, teu nobre colega", e um "Macedo TNC" não seria merecido com o nobre colega. Segundo, pelo risco de que alguma hora apareça no trabalho alguma "Yara, Minha Colega Admirável", e uma abreviatura com as iniciais induza um certo playboy meia bomba que faz cosplay de "não sou pulítico, sou jestor" e que gosta de se fantasiar de Village People para ir na Little Seul a achar que estou falando dele e me meter um processo. Fiquemos, então, com Macedo M, apenas, mas insisto para que o prezado leitor, a prezada leitora não seja preguiçoso ou preguiçosa ou ambos, e siga lendo Macedo, Meu Nobre Colega. Fecha parênteses. Ou melhor, abre outro, rapidinho: até pus a música aqui, pra acompanhar, achei que ficou supimpa. Agora fecha. Ou abre de novo para o tema nomes: acabei de notar que Fernández FDT ficou perto também de uma abreviatura infeliz, e que falado em voz alta pode ser confundido com um sonoro FDP, que Fernández não merece. Vamos convencionar, então, de usar só uma letra, assim, Fernández, Funcionário do Topo, o Fernández FDT, será apenas Fernández F. Agora fecha de verdade.

Na verdade foram tantas interrupções que precisarei encerrar este texto sem narrar o que pretendia e que você que me lê esperava. Peço desculpas e paciência: creio que foi por um bom motivo: facilitar a compreensão e apresentar nosso herói, Macedo M (lembrou de ler "meu nome colega"?). Na verdade, o herói deveria ser eu, Sérgio S, mas trupiquei nesses parênteses e sem querer perdi até o protagonismo da crônica. Ou nem sei se foi tão sem querer, porque Macedo M (não esqueça do "Meu Nobre Colega"!), sempre eficiente e concentrado, costuma ganhar o protagonismo e os elogios dos chefes (e não reparar nas suas barras de gergelim da gaveta).


05 de dezembro de 2022

PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Das vantagens em se trabalhar no centro [por Sérgio S., da Equipe Trezenhum. Humor sem graça.]

Reconheço um ganho em qualidade de vida ao ter o trabalho transferido da Marginal Tietê para a região central. A começar pela proximidade de casa e a economia de R$ 4,40 diários, o que totaliza praticamente R$ 100,00 mensais - pois agora a mesma 1h20min que eu levava para ir a pé do trabalho para casa eu gasto para ir e voltar. Me dou por satisfeito com essa caminhada, e isso me permite a economia de outros R$ 150 de academia. 

Afora essas vantagens monetária (já que o salário segue o mesmo) e temporal, que no fundo, conforme Benjamin Franklin, é tudo dinheiro, é na hora do almoço que o local de trabalho faz toda a diferença.

Na Marginal, começava que tínhamos três opções de almoço nas cercanias - uma barata, uma média-cara e uma cara, nenhuma muito boa -, e para o restante do tempo de almoço, a opção mais interessante era ficar contemplando o rio Tietê devidamente retificado, frequentado por brilhantes animais metálicos, sob o sol escaldante de ésse pê - o que talvez inspirasse poemas parnasianos em Marinetti ou em Mishima (ainda que não veja Mishima escrevendo poemas parnasianos, a não ser, talvez, com as próprias vísceras). Como não sou futurista (nem passadista), nem poeta (mesmo calado), nem fiz o curso de Ikebana e Harakiri do Anti-Espaço Cultural Casa de Lego* na época da Universidade, esse tipo de bucolismo urbano não me comove tanto... 

Em compensação, pelo centro são muitas opções de casas de pasto nas cercanias do trabalho, com grande variedade de preços e tipos de comida. Seria difícil até de escolher, basicamente impossível de enjoar, se eu não me restrigisse às três de sempre - que sequer são as mais baratas ou as mais gostosas.

O melhor mesmo de trabalhar pelo centro fica por conta das opções do que fazer para completar o horário de almoço. Sempre acompanhado de Macedo, meu nobre colega, e às vezes algum (ou alguma) outro colega, não menos nobre, mas que não se chama Macedo, saímos para ver exposições, passear por lojas (a 25 é logo ali, e nós evitamos), ou mesmo só zanzar vendo a fauna citadina pedestre. 

Quando nos centramos nas compras, invariavelmente sabemos distribuir nossas necessidades desnecessárias ao longo do mês, para estarmos sempre necessitando de algo: um estimulante modo do salário frugal garantir que não caiamos no tédio nem no consumismo desenfreado. 

Um dia saímos para fazer uma pesquisa de preços; no outro, para pesquisar outros produtos, que podem ser mais interessantes, diante das limitações monetárias. É na sequência que decidimos ir às compras: uma chave de mandril num dia, um jogo de três cuecas no outro, um odorizador de guarda-roupas no terceiro, um copo retrátil no quarto. E assim vamos, eu e Macedo, meu nobre colega, como se fôssemos dois barões do café esbanjando dinheiro, ou como se fôssemos Estragon e Vladimir esperando Godot: "a gente sempre inventa alguma coisa para ter a impressão que a gente existe", no caso, a gente inventa algo pra comprar. 

Os dias mais interessantes (e perdulários) costumam ser os que vamos à zona, o que costuma acontecer três vezes por mês: duas para comprar ervas, castanhas, frutas secas, ervilhas com wasabi e coisas do tipo, outra para ver se há promoção de cerveja e comprar queijos. Sim, eu sei que a zona cerealista não é tão grande, e poderíamos fazer a compra dos queijos, cervejas, das ervas e das passas numa vez só, mas precisamos fazer o tempo render.

E se acaso não temos o que comprar - ou meu orçamento do mês já está comprometido -, Macedo, meu nobre colega, sempre tem suas barras de gergelim para repôr em sua gaveta. Felizmente, até hoje ele nunca atentou que elas terminam num ritmo um pouco desproporcional ao que ele costuma comer...


02 de dezembro de 2022


* Piada retomada da época do Trezenhum. Humor sem graça. Quem acompanhou na época e/ou leu o livro (ainda tem para vender), entendeu.


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Casa Mathilde - Tabacaria (Revisited)

Da janela da minha baia, no meio do Edifício Martinelli, observo a praça Antônio Prado abaixo. Faz frio e a garoa fina que caía quando cheguei já cessou. Transeuntes passam, todos bem agasalhados - alguns usam máscaras. Talvez seja o clima, talvez seja meu estado de espírito, o ritmo me parece mais lento que o habitual - perguntarei à Rose quando ela chegar. Defronte a falida Casa Mathilde, dois homens com colete de “Compro ouro” conversam ao lado de uma pessoa que dorme sob um guarda-chuva. Um vendedor de artesanato acabou de chegar e começa a montar seu tabuleiro. Apesar de fechada, a doceria tem hoje as luzes acesas. Deve ser dia de faxina, feita por hábito, para retirar o pó do seu fracasso que repousa sobre os móveis (fracasso da loja não diante do sistema capitalista que a devorou, que isso é natural, mas diante do tempo que a levará ao completo esquecimento em breve, assim como fará comigo e com você que me lê). Desde que me ponho a observar diariamente a praça, nunca houve, não há e não parece que será tão cedo que haverá uma pequena do outro lado da rua a comer chocolates, tirar seu papel de prata e me lembrar de como Álvaro de Campos levava a vida (só ele?). Na verdade, quase não há crianças neste canto da cidade, salvo as bem pequenas, acompanhadas de seus pais - é como se a infância fosse proibida nas ruas de São Paulo, assim como os outdoors. Ainda que houvesse uma criança a sair da Casa Mathilde, não sou o poeta para poder cumprimentar Esteves ou quem fosse o dono do estabelecimento lá embaixo e aqui em cima rascunhar qualquer genialidade - que já sonhei ter, admito. E de todos os sonhos do mundo que já tive em mim, hoje tento buscar algum ao qual me agarrar que não seja uma quimera juvenil - reconheço de antemão que isso não é mais que fuga de me encarar no espelho sem o dominó errado que vesti (eu, que nem sou de carnaval) e me ver tristemente envelhecido, levando a vida de luto em luto. Desreconhecer-me ou redesconhecer-me? Estou mais para um Bernardo Soares desorganizado que não conseguiu sequer se realizar na escrita. É quinta-feira, ainda posso pôr o vazio que me preenche na conta do trabalho e do cansaço do dia dito útil, em que me sinto um inútil em troca de receber parcos vis metais no fim do mês - começa na sexta e se alonga por todo o fim de semana o vazio de vida que me sufoca e é de responsabilidade minha. Poderia cantar que estou vencido, que estou lúcido; mas não sei a verdade e sigo vivo (o que não deixa de ser "estar para morrer"). No máximo, há uma despedida da irmandade com minha casa de infância, na ida a Pato Branco de daqui uma semana. Que serei eu sem ela, eu que não sei o que sou? Busco metafísicas, mas a dureza do mundo se sobrepõe - talvez o fato de eu não estar mal disposto. Me sinto estrangeiro do mundo e de mim mesmo, incapaz de entender de fato o que se passa nessas pequenas alegrias que meus iguais compartilham como óbvias. Tudo me pesa. Consegui desde muito me esquivar das pessoas em linha reta, mas meus caminhos com os demais tortos do mundo apenas se tangenciam por algum tempo, depois se afastam - em algum desconhecido rumo pela estrada de nada. Na ausência de chimarrão, tomo um chá mate enquanto escuto a quinta do Mahler. Queria que o universo se reconstruísse sem ideal nem esperança, mas há uma teima de minha parte e enxergo nas notas da sinfonia um jardim florido no Hades. Rose chegou, eu a cumprimento.

15 de setembro de 2022