Fazer uma viagem com "planejamento em tempo real" tem seus problemas, seus percalços, pontos interessantes que se deixa de visitar, trajetos não muito espertos, gastos desnecessários, mas também abre oportunidade para ir a programas que não se imaginava, não estavam nos planos, e não raro acabam ficando entre os mais interessantes.
Em 2006, quando fiz um mochilão pela Patagônia com meu irmão, também com planejamento em tempo real - ainda que com noção do que queríamos ver e aonde ir -, não conseguimos ir até Ushuaia (passagem só para dali uma semana), nem subir a Ruta 40 e visitar a Cueva de las manos (muito caro), mas em compensação fomos até El Chaltén, que se hoje é um programa consagrado, então era bem alternativo, sequer constava no guia que havíamos comprado (que sugeria bizarramente Trelew e Puerto Deseado, em compensação), e cuja estrada que levava até a cidade sequer era asfaltada - e uma das coisas que me agradou foi poder fazer as trilhas sem guia, no ritmo que queríamos, inclusive saindo um tanto do caminho, pra ir assistir ao sol se pôr por trás dos Andes enquanto tomávamos mate.
Nesta minha viagem à Colômbia, acabei vindo até "la zona costera". Em Santa Marta, haviam me dito das praias, em especial de Tayrona. Soube apenas quando passei por uma das praias da reserva, que só se chega de barco e possui apenas um hotel simples como atração, que era possível se hospedar ali. Um passeio que muito me interessava era o da chamada Cidade Perdida, mas exige um tempo que não tinha (além dos valores).
No segundo dia, até por não ter condições de ficar lagarteando ao sol, pedi indicação à dona do hotel onde estou hospedado, que me recomendou La Quinta San Pedro Alejandrino, a uma hora de ônibus dali, longe do centro de Santa Marta, da praia, perto da "rodoviária" e de dois shoppings centers. Não sei por quê, se preguiça ou pressa de sair, não pesquisei o que havia em tal quinta. Apenas fui, e cada vez mais arrependido conforme a viagem no ônibus urbano (que os colombianos chamam de "buceta", para delírio da quinta série B) se demorava e se afastava do que parecia ser mais turístico. Ao chegar, uma entrada simples e do outro lado da rua um shopping. Um parque de vegetação ressequida? Ou teria ela me indicado o shopping?!
Descubro que preciso pagar a entrada. Recuso um guia, com medo de que me cobrem (mas tenho a impressão de que não é o caso) e também de ter que seguir um roteiro muito definido. As placas indicam o suficiente: é um antiga fazenda de cana, iniciada em 1608, que produzia rum. Estão lá a "Bagacera", o "Trapiche", a "Destilería" e o "Sótano" (cuidado com mais esse falso cognato, sótano é porão, cova) para a produção do rum, assim como a casa da fazenda, "la casa Quinta" - pelo visto, o local de morada dos escravos, e talvez mesmo dos serviçais, não foi preservada, tão ao gosto das nossas elites, de apagar o trabalhador da história.
Certo, interessante a fazenda, ainda que se perceba que a conservação não é dos edifícios do século XVI, tais quais eram - até porque como foi utilizada por mais de duzentos anos, é de se imaginar melhorias e não sua preservação para comemorações futuras de um estado nacional que sequer existia. Na verdade, descubro depois, estaria bastante próxima do que era em 1830.
É meio dia, o calor é intenso, abafado, a respiração fica pesada, estou com sede; as construções são interessantes e o trajeto no sol entre elas (devidamente vestido) faz minhas queimaduras do dia anterior arderem. Ainda que La hojarasca, do García Márquez* se passe num ambiente urbano (se minha memória não me trai, li o livro em fins de 2004), me impressiono capacidade de ele descrever esse calor que ali me pesa - e não é a primeira vez, há um calor muito específico que ele retrata no livro, que não me parece ser apenas Colombiano (talvez eu esteja lembrando de quando fui à Venezuela, o que nega minha afirmação anterior, já que seria a Gran Colombia).
Na casa da Quinta, algumas salas dedicadas à independência do país e aos eventos de 1930. Até aí, interessante, mas nada demais. O cômodo seguinte que visito é o banheiro, com móveis luxuosos. O próximo, o quarto, e acima da cama, uma placa indica que ali foi dado o último suspiro do libertador da pátria, em 17 de dezembro de 1830. É nessa hora que entendo a importância do lugar e, mais que isso, é nessa hora que entendo que estou no meio do cenário de El general en su laberinto, também do Gabo! A partir de então tudo adquire muito mais mágica, me vejo encontrando trajetos esquecidos nos labirintos de minhas leituras e lembranças.
Primeiro que me surpreendo de ser ali o fim da vida de Bolívar. Na leitura, eu imaginava ele percorrendo a amazônia colombiana para chegar ao Pacífico (puro desconhecimento histórico e geográfico). Segundo, me arrependo de não ter relido o livro para a viagem (até aí, como eu ia saber, se Santa Marta só apareceu como possibilidade de destino quatro dias antes de eu chegar?).
É no final da visita que vejo uma placa avisando das árvores centenárias defronte a casa, volto para observá-las. Elas já estavam ali quando Simón Bolívar chegou à fazenda, em 6 de dezembro de 1830. Nelas teria ele armado sua rede. Isso me faz desconfiar como Gabo conseguiu relatar com tanta qualidade o general em seu labirinto, em seus últimos dias de vida: talvez tenha sido uma delas a lhe cochichar a história.
05 de março de 2023
* Como já comentei na crônica anterior: não sabia que García Márquez era da região.
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