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quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Os desajustados de hoje serão os carrascos dos desajustados de amanhã

Ao cabo de meu último texto, “Acolher os fracassados da sociedade” [bit.ly/cG211108], senti certo incômodo (que me acompanhou durante sua escritura) por não ter sido mais explícito sobre quem tratava como desajustados (ou "fracassados") na sociedade: as pessoas pobres, as periféricas, as negras, as mulheres, as gordas, as "desviantes" no gênero ou na orientação sexual... e também os homens brancos heterossexuais (ao menos na autoficção de seu discurso - e digo isso como alguém que levou quase quatro décadas para se dar conta de que não se identifica com o gênero masculino). Enquanto escrevia, pensei se não caberia ilustrar com algum exemplo dessa "acolhida perversa" feita por seitas evangélicas e pela extrema-direita. Até para evitar um texto muito longo, desisti - mas agora desdesisto e me embrenho nestas novas linhas. Ainda mais porque a reflexão que levou ao texto anterior surgiu quando eu caminhava por minha cidade natal e por lembranças de quando morei aqui (até os 17 anos). 

Desde sempre fui um ímã de pessoas tortas - e segui sendo quando mudei de cidade (de nove relacionamentos afetivos significantes que tive, por exemplo, apenas uma das garotas não era desajustada). Na infância, meus amigos eram meninos que sofriam bullying ou tinham potencial para sofrê-lo; na adolescência juntaram-se ao círculo meninas visadas, por serem de "má fama" (porque com dezesseis anos já transavam e fumavam), e algumas que só não sofriam porque eram meninas (e não eram gordas nem tidas por masculinizadas). Essa tendência a atrair para meu entorno de amizades potenciais (e reais) alvos de bullying atribuo ao fato de que eu próprio havia sofrido quando tinha oito anos e sempre me recusei a repetir a experiência com outras pessoas - e foi algo marcante na minha formação, por mais que a atuação de meus pais e da escola Nossa Escola tenham sanado o problema rapidamente. Curiosamente, dos garotos, a maioria desses amigos e colegas próximos eram católicos praticantes, fervorosos ou evangélicos. Dentre os católicos, esses amigos depois se revelariam ou homossexuais ou fascistas homofóbicos - sem meios termos. Quanto aos evangélicos, quem fazia o bullying, boa parte das vezes, eram pessoas da própria igreja - quando não da própria família nuclear!

Teria o exemplo de um colega evangélico do ensino médio, mas tomo o caso de um amigo de infância e adolescência (que por acaso frequentava a mesma igreja que o Dallagnol). 

Era uma pessoa muito inteligente, não só tirava excelentes notas como lia muito além do que a escola exigia (lembro que enquanto estudava para o vestibular ele estava lendo Hobsbawn e outros livros), e não era lento de raciocínio (ao menos era bem mais rápido que o meu, por isso faço essa afirmação sem medo de errar). Estudando num colégio "de resultados", voltado a uma elite que só se interessa por capital monetário, de criança pequena até adolescente, sempre fora o cara torto, zuado, posto de canto, que tentava se enturmar a qualquer preço, mesmo que esse preço fosse ser ridicularizado e humilhado. 

Duas formas de sofrer bullying: eu, recusando a "brincadeira" e de algum modo querendo distância dos agressores (já que não fazia sentido eu tentar bater em oito coleguinhas, pois seria certo que apanharia); ele, aceitando tudo isso como algo natural, na esperança (vã) de ser chamado para as brincadeiras no contraturno, me contando com um sorriso meio bobo como se fosse divertido ser humilhado pelos meninos mais reconhecidos do colégio.

Diante dessa integração sadia, sem suporte dos pais (uma família bem machista, com um pai extremamente inseguro - e não entendam por isso qualquer espécie de violência física, apesar de várias outras histórias cabulosas), com doze anos tinha ideações suicidas e acabou indo a um psiquiatra, que receitou antidepressivos. De pronto começaram as fofocas, tão típicas de cidade pequena e de comunidades religiosas moralistas: de que ele não era crente de verdade, que não tinha fé, que tinha "se perdido", que estava andando com gente errada (fora da igreja, era basicamente eu e dois ou três amigos meus, geralmente em minha casa), que era meio maluco (aquele estigma básico, principalmente entre conservadores, de que buscar qualquer ajuda psi é sinônimo de loucura e fraqueza). Em sua casa, presenciei várias discussões com seu irmão mais novo, em que ele logo recebia como resposta: "você é louco, por isso tá assim", ao que os pais recriminavam com a firmeza de uma gelatina fora da geladeira numa tarde de quarenta graus: "não fala assim com seu irmão...", enquanto meu amigo ia para o quarto chorar (sem direito a consolo). Na época eu me horrorizava tanto com a fala do irmão como com a tibieza dos pais; hoje noto que ele apenas vocalizava a opinião da família e de toda a igreja - por isso a complacência: deviam encarar como parte da educação que o primogênito precisava para forjar seu caráter e que eles não tinham coragem de aplicar.

Três anos depois a família se mudou para Curitiba, para um bairro de alta renda. Quando o visitava, não tinha como fugir dos torturantes encontros de jovens da sua igreja (isso explica minhas ausências de todas missas na Pastoral dos Migrantes, nos quase seis anos que trabalhei com eles, mais que meu ateísmo). Lá, contava ele com uma assertividade marcante, estava entre os seus melhores amigos. Tratava-se de um bando de jovens brancos, de classe média, média-alta, levemente descolados nas aparências, que andavam de ônibus de vez em quando (ousados!), falavam gírias entre uma reza e outra (e pareciam invejar a seita concorrente que soltara um "deus é mano" antes deles, pelo tanto que falavam dela), e faziam brincadeiras adolescentes entre si. Dentre as mais animadas estava caçoar do meu então amigo, cujos apelidos carinhosos eram "bugre", "do mato", "caipira" - e ele ria junto, enquanto fazia o que lhe era ordenado, como um cão sem dono que abana o rabo pra quem lhe chuta mais fraco. 

Certamente pesava sobre ele também a suspeita de "homossexualismo" - justificada por sua dificuldade com mulheres -, a ponto de o pai ter tirado uma foto dele com a primeira menina que beijou, em um hotel fazenda - foto que ele mostrava para todo mundo (isso na época da máquina analógica), numa necessidade triste de afirmação. Mesma necessidade que o levava a frequentar os puteiros na rua Augusta, quando se mudara para estudar em São Paulo - e diametralmente oposta às necessidades que pulsavam em suas constantes corridas noturnas em regiões de prostituição masculina e transexual, quando treinava para maratonas que fazia questão de registrar em foto e pôr em seu Orkut com a legenda "running for the lord" (assim, em inglês, creio que porque o velho testamento deve ter sido originalmente escrito na língua de Shakespeare).

Hoje ele é um homem feito, pai de família, com graduação e pós nas melhores universidade públicas do Brasil, e como bom cidadão de bem, foi para os Estados Unidos assim que terminou os estudos, "porque no Brasil não se valoriza o médico", argumentou. 

Lembro daquela que foi nossa última conversa de verdade, em frente o teatro municipal de Pato Branco, madrugada adentro. Tínhamos os dois passado na USP, e enquanto eu falava em seguir carreira acadêmica na psicologia, ele dizia que iria para a Cruz Vermelha ou Médicos Sem Fronteiras. Vinte anos depois, eu não virei professor universitário e ele sequer trabalhou no SUS. Nos EUA, além de médico, atua como pastor, onde escreve textos ditando regras para o corpo das mulheres, com base em um deus que só é amor para os sádicos e perversos. Nos encontros que tivemos depois, já éramos dois estranhos usando máscaras grotescas para disfarçar o óbvio ao outro: ele se achava um rei por ser estudante de medicina, adorava desmerecer enfermeiras e técnicas de enfermagem, e gostava de contar como acompanhava a galera nas zuações de outros colegas - deixando transparecer vez ou outra que também ele era um dos alvos das ridicularizações, nas insistentes justificativas das formas físicas das mulheres com quem conseguia ficar (lembro de um texto seu argumentando que não vira que era uma gorda estrábica a moça que beijava na festa porque estava escuro - creio que ela também não deve ter visto que ele era esse tipo de pessoa que estava ficando porque devia estar muito bêbada, mas não sei se escreveu um texto sobre ele).

Ao recordar desse meu amigo, admito sentir raiva. Do que? Nem sei direito. Dele. De ter sido seu amigo (como se o futuro estivesse contido naquele passado interiorano). De meu pai, que como uma sibila duvidara dos anseios expressos por meu amigo naquela última conversa, quando lhe contei, e vaticinou que ele seria o tipo de médico que deixaria o paciente morrer na porta do hospital, caso não tivesse dinheiro para pagar a consulta (deve ser essa a valorização dos médicos que ele tanto gosta nos EUA). De estarmos numa sociedade em que o pensamento que hoje ele expressa tem vez e voz, cada vez mais, numa marcha macabra para as trevas. 

Mas sua recordação também me traz decepção, uma grande tristeza: um lamento impotente de "não precisava ser assim". Quando começou a tomar remédio, lembro de ter comentado com outros amigos que sua depressão era por conta do limite imposto pela religião (não que isso sirva para toda religião, nem para toda pessoa), que o impedia de crescer tudo o que podia e descobrir um mundo bem mais amplo que o autorizado pela igreja e pela família. Eu tinha quatorze anos, e para eu ter percebido isso, sinal que era muito evidente! Sem um grupo que o acolhesse de verdade, seguiu o caminho mais óbvio, de adequação aos padrões e valores - da sociedade e dos seus pais -, com a mediação perversa da igreja, que atuava num morde-assopra abusivo e eficiente. 

Ainda que seja bem mais refinado que tantos pastores (ou mesmo seu irmão, um médico abertamente fascista e poltrão; ao que tudo indica, com o mesmo caráter de quando humilhava o irmão sem remorsos), hoje despeja todo seu fracasso, todo seu ressentimento, todo o ódio do que teve que se tornar para ser aceito, contra a primeira minoria vulnerável que encontrou ao seu alcance - as mulheres. E, superando seu pai, foi além de sua esposa. Que ser pastor fosse mesmo sua vocação (já que médico definitivamente não era), poderia ter sido do nível de um Henrique Vieira, uma Romi Bencke, um Ariovaldo Ramos - tinha plena capacidade intelectual para tanto. Mais que um fracassado - a despeito de que possa estar ganhando muito dinheiro, não sei -, ele também é um retrato da nossa incapacidade de ouvir e potencializar os melhores sentimentos nas pessoas, suas aspirações mais nobres. Ele é mais uma prova viva do nosso fracasso enquanto sociedade.


10 de novembro de 2021

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Acolher os fracassados da sociedade

Luis Nassif costuma comentar que Olavo de Carvalho tem o dom de convencer fracassados a acreditarem que seu não-sucesso é detalhe e o culpado são os outros - daí o exército de ressentidos que o seguem e estão dispostos a destruir tudo o que foi identificado pelo guru como fator de seu fracasso, menos aquilo que de fato o é: uma sociedade calcada na concorrência desmedida e que divide as pessoas entre as de sucesso (curiosamente as capitalistas ou que estão próximas desse núcleo) e as fracassadas (que se subdivide entre as que já notaram seu fracasso e as que ainda se iludem esperando o bilhete premiado da meritocracia que cai sempre no colo dos mesmos) - usando como régua para sucesso ou fracasso capital monetário e social.

Muito se tem dito que o avanço dos evangélicos se deu por conta da recusa da igreja católica de João Paulo II em acolher os pobres e os periféricos, preferindo uma cruzada ideológica (e quixotesca) contra o comunismo. 

Há, porém, todo um espectro de evangélicos que não são das classes baixas, e que ainda não aparecem o tanto quanto deveriam nas análises. A existência desse perfil é extremamente importante para completar o discurso do "aqui se faz, aqui se ganha": se evangélicos se restringissem apenas a pobres e periféricos, não haveria como sustentar que deus ajuda já nesta vida. Ao mesmo tempo, eles não precisam de uma educação ascética, pois já possuem algum capital, nem me parece que a justificativa moral de que sua pretensa riqueza é uma benção divina seja suficiente para a conversão: uma vez com dinheiro, ainda mais se for ganho de modo "legal" (as aspas porque nem sempre o que é legal é moral), essas pessoas não deveriam se dar ao trabalho de prestar contas a quem quer que fosse - exceção feita à receita.

Talvez o discurso de louvor da pobreza da igreja católica seja  uma explicativa para a conversão de remediados para a crença evangélica: tendo aprendido nas aulas de catequese que cobiça é pecado e a riqueza seria sua materialização, a teologia da prosperidade e afins livraria tais pessoas de assumirem a dimensão política de suas escolhas e atos, entregando os ônus que delas decorrem a um ser (pretensamente) onipotente, que aparece como fiador do que possa ter feito de mal na sua escalada social.

Há também o elemento de acolher o fracassado na sociedade e fazê-lo de algum modo um vencedor. Nas classes baixas, é fácil identificar o fracassado e fácil dar um "banho de loja" (literalmente) que faz com que ele construa para si próprio uma manjada autonarrativa do mito do herói que galgou graças a deus. Nas classes médias isso é mais difícil, já que desde o berço a herança está posta e as oportunidades, abertas. Ainda assim, é visível um perfil de fracassado a esses que a miséria financeira não aflige: são os desajustados, que não conseguem se enturmar, por não serem "normais", e não raro acabam por sofrer bullying.

A igreja surge, então, como o lugar acolhedor, onde ele é aceito com menos violência que em outros grupos, que o estimula a se moldar ao "jeito certo", com paciência com seus deslizes, e que perdoa seu passado - ainda que faça questão se sempre rememorá-lo caso questione o caminho "sugerido". Esse processo não deixa de ser violento, de acarretar sofrimento - uma vez que não é uma aceitação de fato da pessoa, mas apenas na medida em que ela cede aos padrões impostos pela moral do grupo -, mas apresenta uma alternativa bem delineada de onde se vai chegar: a felicidade compartilhada (haja visto que a felicidade individualista do consumo já mostrou a essa classe ser uma miragem, ao menos se tida isoladamente).

É também esse tipo de pessoa que as esquerdas tem perdido na "guerra cultural" travada pelo neofascismo atual. E vai seguir perdendo, se em nome de uma pluralidade abstrata e que preza por uma pureza irreal seguir execrando quem não se encaixa no "jeito certo" de ser dissidência. A tal "cultura do cancelamento" sempre houve, mas ganhou outra dimensão com a internet, e tem servido muito mais para empurrar os desajustados para o discurso daqueles que num primeiro momento se mostram abertos a acolher os "tortos" e incompreendidos, do que para gerar uma autorreflexão em quem quer que seja (compare-se os efeitos dos muitos cancelamentos que tem ocorrido com o da chamada de atenção que Ana Maria Braga levou após falar em "racismo reverso" [https://bit.ly/30a2gxO]). 

Ou nos lembramos que todos os excluídos da sociedade - independente se por questão de classe ou por questões existenciais - foram forjados nela, e não tem por obrigação nascer sabendo e conseguindo enxergar diferente do que sempre lhes foi ensinado - na família, na igreja, na escola, na televisão, na internet -, e aprendemos a escutá-la realmente, para acolhê-las de fato, com o que é possível potencializar sua dissidência em prol de um devir que não seja um fluxograma de consumo e destruição do ambiente; ou seguiremos tentando convencer as paredes do quarto que fizemos tudo o que podíamos, enquanto lamentando impotentes o avanço do ultraliberalismo neofascista sobre todas as esferas da vida.

08 de novembro de 2021.

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Apetrechos que nos permitem poupar tempo e atrofiar a atenção

Logo que saí da cidade de meus pais para estudar, eles compraram os móveis para minha nova casa, e dentre eles estava uma máquina de lavar roupas - meus amigos geralmente tinham tanquinhos, ou levavam no fim de semana para a mãe lavar (impossível para mim e as vinte horas que me afastavam da minha cidade natal). Como a máquina faz tudo, é pôr sabão e amaciante nos devidos compartimentos, ligar e ir fazer outra coisa: nunca tive necessidade de esfregar uma roupa, para decepção da minha mãe, que se queixa do que ela chama de "encardido" nas minhas camisetas brancas - que eu prefiro chamar de "cor adquirida naturalmente com o tempo e com o uso e que não a desabona". Por muito tempo acho que esse foi o único facilitador das atividades corriqueiras que tive.

Já morando na capital, comprei uma máquina de fazer pão (em Campinas eu preparava na mão): era pôr os ingredientes, decidir a hora pra ficar pronto (geralmente pela manhã, logo quando eu acordo) e não me preocupar mais. Tempos depois, influenciado por uma ex-companheira, adquiri uma panela de arroz: ainda que seja algo fácil de fazer, a referida panela evita que o arroz queime (e também que fique bom como quando preparado com temperos e tudo o mais no fogo). Outra aquisição foi uma chaleira elétrica: ao invés de ter que ficar cuidando para ver a hora certa de desligar o fogão para a água do chimarrão, correndo o risco de ora desligar muito fria, ora muito quente, é marcar os 80ºC e atender os insistentes pedidos de carinho que Guile, meu gato, sempre faz quando me ponho diante da pia da cozinha ou do fogão. Faz um tempo também que me muni de um robô de limpeza, um modelo recomendado, ainda que antigo, por não ser controlado por aplicativo, e que parece ter um sensor que identifica onde há focos de maior sujeira e se desvia deles.

Ou seja, enquanto escrevo esta crônica, é possível que "eu esteja" também lavando a roupa, limpando a casa, preparando pão, arroz e esquentando a água do chimarrão (além de ouvindo música, claro). 

Mais provável, contudo, que esse tempo que ganho com as quinquilharias que tenho em minha casa sirvam para eu perder uma hora a mais na internet com desnecessariedades supérfluas e redes sociais. Guy Debord, na tese 153 de seu livro de 1967, comentava que os avanços no ganho de tempo das atividades e deslocamentos ordinários das pessoas era revertido em tempo defronte a televisão: no século XXI, o avanço tecnológico nos permitiu ganhar ainda mais tempo e nos oferece como contrapartida um verdadeiro ralo de tempo, um meio de perder ainda mais tempo de modo demi-produtivo - produtivo para o sistema capitalista, não para nós.

Contudo, há algo mais que esses facilitadores da nossa rotina alteram, que é a nossa percepção e a própria relação com tudo o que nos rodeia: o pão que fica pronto na hora definida é diferente daquele que você decidiu pôr mais ou menos farinha na hora da sova, e que a depender da fome, preferiu não deixar crescer tanto; o robô que faz a faxina mudou drasticamente minha relação com minha própria casa: que sempre limpei por conta, e desde uma residência artística em dança com Edu Fukushima e Bia Sano, em 2016, passei a passar pano na mão e não mais com rodo (https://bit.ly/cG170107), era uma forma de me irmanar de meandros invisíveis dos entre-móveis - experiência hoje cada vez mais rara. 

Notei isso recentemente, quando comprei uma máquina de café expresso - com pandemia, não vinha mais tomando café fora de casa, e sentia falta do expresso. Como acho máquinas de cápsulas uma produção cretina de lixo - e ainda por cima cada café fica caro como beber fora -, optei por uma máquina "comum", dessas que se põe o café no cachimbo, aciona o botão e desliga quando julga que há líquido suficiente. Cada vez mais desacostumado a ter atenção a esse tipo de tarefa, num de seus primeiros uso, liguei a máquina e fui fazer outra coisa, resultando em café transbordando da xícara. 

Então é isso? Não posso ter trinta segundos de atenção ao que está sendo preparado por mim e para mim, porque preciso otimizar meu tempo e curtir mais seis ou sete fotos que aparecerem no Instagram? E questiono: se não conseguimos mais ter atenção e dedicação em tarefas simples e rápidas do dia a dia que nos afetam direta e imediatamente, na hora que precisamos estar presentes e concentrados em tarefas mais complexas, teremos mesmo capacidade para tanto? Ou vamos picotar nossa atenção a cada apito do celular, para ver qual é a notificação e para não nos entendiarmos em fazermos a mesma coisa por uma hora (ou dez minutos) sem interrupção?


30 de agosto de 2021.

 

quarta-feira, 14 de abril de 2021

O tudo bem que nos sufoca


"Oi, tudo bem?" é uma forma quase canônica de cumprimento no Brasil. Usamos (os bem educados) para cumprimentar do atendente da padaria ao bom amigo que há tempos não víamos. Questão feita, resposta dada com o mesmo automatismo: "tudo, e você?".

Há anos esse "tudo bem?" me incomoda - desde que acompanhei um amigo com crise renal ao pronto socorro, às oito horas da manhã de um domingo, e o vi cumprimentando (e sendo cumprimentado) por uma conhecida (também com cara de dor) com o "oi, tudo bem?". Se por um lado é uma demonstração de educação - o que não é pouco para estes tempos de esgarçamento da sociabilidade, consequências da reação à tímida democratização da democracia e dos direitos humanos, com a ascensão da extrema-direita neofascista e das ditas guerras híbridas -, por outro revela muito da nossa cordialidade de cala-a-boca, das interdições sociais sutilmente (im)postas.

É curioso notar que nas línguas europeias ocidentais-coloniais, o tudo bem é marcadamente do português. O "qué tal?" espanhol, o "how are you?" inglês, o "comment ça va?" francês, o "wie gehts?" alemão, se traduzidos mais fiéis à letra, significam "como está". Se cumprem, numa primeira camada, a mesma função do "tudo bem", num segundo momento oferecem abertura à resposta do interlocutor.

O tudo bem, se se analisar mais detalhadamente, direciona a resposta. Não é uma pergunta aberta, que convida a uma resposta pessoal, não se pergunta como a pessoa está: ela é um protocolo, sinaliza qual deve a resposta do interlocutor, se não quiser ser inconveniente. É uma mostra de educação e descaso ao mesmo tempo: pergunto como você está, mas se estiver mal, por favor, não me diga: quero saber que está tudo bem.

É parte da construção do mito do brasileiro como um povo alegre: provavelmente nos dizemos alegres porque não nos é dada a oportunidade de admitir nossa tristeza, ou mesmo nuançar nossas emoções (perguntei a amigos residentes em Portugal, dizem que lá se usa também o “tudo bem”, mas não com a mesma hegemonia que aqui). Estamos sempre tudo bem. Mesmo em meio a pandemia, seguimos com essa pergunta completamente sem sentido diante de quatro mil vidas perdidas por dia - apenas para o COVID -, desemprego, fome e uma série de inseguranças quanto ao futuro. E noto que as pessoas seguem respondendo com o automático "tudo", a ponto de causar estranhamento minha resposta habitual: "felizmente estou bem no que posso estar, mas, não, não está tudo bem". Não por acaso, o Brasil é o segundo país com maior número de depressivos nas Américas - fica atrás apenas da terra do mito do sucesso individual, os EUA. 

Christian Dunker, em entrevista à BBC [http://bit.ly/dunkerbbc1], por conta de seu novo livro, Uma biografia da depressão, comenta que a "depressão e ansiedade acabam sendo duas formas de sofrer que vão compactando a narrativa, a tal ponto que o sujeito acaba se resumindo a 'eu sou um depressivo'. Faz parte da depressão esse déficit narrativo, essa demissão de contar sua própria história, sua vida, e dividi-la com o outro". Indo ao seu encontro, podemos dizer que o "tudo bem" é um desses compactadores da narrativa nas relações interpessoais - dos mais arraigados. Tudo bem? Tudo. Estamos sempre bem, tudo está sempre bem. Até que a tristeza negada de ser compartilhada, numa tentativa de alívio, transborda e nos toma. Ao depressivo brasileiro, a culpa por não estar na grande comunhão nacional da alegria, ou a culpa por mentir: tudo.


14 de abril de 2021


terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Bruno Covas e seu filho no Maracanã: a mensagem da imagem

"À mulher de César não basta ser honesta, é preciso parecer honesta". A importância da aparência na cultura ocidental vem de longa data - do imperador romano Julio Cesar, ao menos -, mas sob a sociedade do espetáculo essa velha máxima foi superada pela de que "à mulher de César não é preciso ser honesta, basta parecer honesta". Em muitos casos, nem parecer, apenas aparecer como honesto no momento oportuno - Temer, Doria Jr, Bolsonaro que o digam, despontaram como se porto de Santos, rachadinhas e Embratur nunca tivessem existido.

Não entrei na comunhão nacional gerada pelo início da vacinação nestes Tristes Trópicos, em 17 de janeiro: sabendo dos entraves gerais e das inoperâncias nacionais, não vislumbro ser vacinado antes de dezembro e ainda temo receber uma vacina que já pouco protege, por conta das mutações do vírus (ainda que isso, por enquanto, não tenha sido posto no horizonte pelos cientistas, até onde me consta). Minha mãe, prioritária, quem sabe consiga ser vacinada meio logo e possa vir me visitar ainda este ano, depois de mais de um ano nos vendo apenas por videochamada. 

Entendo o sopro de alento que o início da vacinação trouxe a muitos, mas não deixou de me causar assombro como esse sopro veio desprovido de qualquer construção crítica mais bem fundamentada. “Doria Jr fez um golaço”, comentavam, como se aparecer ao lado da primeira pessoa vacinada redimisse o governador de todos seus atos contra a saúde pública, a pesquisa científica, a universidade pública - isso já em plena pandemia, já quando ele se dizia defensor da ciência - e a produção de remédios - e não falo aqui de troca, quando prefeito, de isenções fiscais por "doação" remédios quase vencidos cuja boa parte seria incinerado a um custo elevado, mas do sucateamento da Furp e do Instituto Butantã. Vale lembrar que este só não virou peça histórica graças à combinação pandemia e negacionismo da ciência por Bolsonaro, no qual Doria Jr viu oportunidade de se apresentar como a extrema-direita racional (Adorno e Horkheimer mostram como o nazismo era racional) e “razoável” (se privatizar e tirar direitos de trabalhadores, as elites brasileiras acham qualquer coisa razoável). Todo seu histórico de destruição virou fumaça diante da vacina: Doria Jr, “o político da ciência e da sensatez”. Só não se tornou também “o homem da tolerância política” porque Dilma Rousseff fez algum alarde ao avisar que não aceitava seu convite para furar a fila - e com esse ato, Dilma reforça a frase do primeiro parágrafo, ao lembrar que ela e Lula, dois dos políticos mais probos da história do país, são taxados como os maiores corruptos, simplesmente porque não conseguiram vencer a máquina midiática e aparecer como honestos: quem controla a produção de imagens e narrativas detém incomparável poder, incompatível com a democracia, mesmo a espetacular.

Assim como Doria Jr, Bruno Covas não precisa temer a mídia. Como seu padrinho político, o prefeito parece esquecer que a mulher de César no século XXI não precisa ser honesta, basta parecer honesta; contudo, à diferença dele, não possui qualquer jogo de cintura, quem dirá a lábia canastrona de vendedor de enciclopédia no interior e a desfaçatez do gigolô que se diz arrependido e promete fidelidade.

Junto com Doria Jr, Covas repetiu o mantra do "fique em casa". Como Doria Jr, assim que pode, saiu passear: mas ao invés de ir pra Miami (onde poderia achar qualquer álibi inconsistente: que foi em jatinho particular com a esposa para ficarem enfurnados e isolados na sua casa florida, sei lá, pra não ter o risco de alguma garota constrangê-los cobrando uma conta antiga), o prefeito foi assistir ao jogo da final da Libertadores no Maracanã, com mais alguns convidados VIPs - ele, que estava em tratamento contra o câncer até quinze dias antes, ou seja grupo de extrema vulnerabilidade, que mais deveria se resguardar.

A final da Libertadores ter público em plena pandemia já é uma afronta, um reescancarar daquilo que as “modernas arenas” que substituíram os estádios já escancaram há anos: futebol é cada vez mais um espetáculo para poucos usufruírem ao vivo - só para os VIPs. Neste caso, só para os VIPs dos VIPs. Para um político que tem tentando trabalhar uma imagem pública de progressista desde que assumiu a Disney, digo, a prefeitura de São Paulo, um deslize desses é grave - até porque não foi só uma notícia de jornal, mas uma foto que rodou a internet, e na sociedade imagética, uma imagem pode ser avassaladora (Roseana Sarney sabe bem). A explicação para seu ato, dado em seu Instagram, só piora a situação. A questão pode ser abordada pelo aspecto político e sociológico.

Politicamente é um movimento que causa estranhamento. Bruno Covas trabalhava com afinco sua imagem de um “velho PSDB”, um PSDB de direita democrática e progressista, retomando projetos êxitosos da gestão Haddad; esse passeio com o filho, junto com as ações que tem tomado desde que ganhou a reeleição, vão na contramão de todo esse trabalho. Ao que tudo indica, a eleição serviu para que Covas e o partido notassem que ele é um quadro eleitoralmente frágil, quase inviável: se largar a prefeitura para disputar o estado, perde votos dos paulistanos sem conseguir compensar no interior (como foi o caso de Serra e Doria Jr). Daí a impressão de ter entregue a prefeitura toda para o grupo de Doria Jr (representado pelo vice Ricardo Nunes?) desde já, talvez com o plano de tentar imitar seu padrinho e ver se consegue superar as próprias fraquezas; assim, todos os movimentos de respeito aos direitos humanos - que, por mais que tímidos, marcaram uma diferença significativa frente a gestão desumana de Doria Jr - terem sido jogados fora: do cercamento de praças (o caso noticiado é da praça no bairro nobre, mas na 25 de Março, por exemplo, a Ragueb Chohfi já foi cercada há tempos) às pedras antimendigos, passando pela intensificação no confisco dos pertences dos moradores de rua (só esperando pelas operações da GCM na (mal) dita cracolândia). Se for esse o caso, entende-se o mandar às favas a construção da sua imagem pública e ir curtir a final da Libertadores com o filho.

Aqui entra o ponto sociológico de minha análise: ao ser pego no Maracanã, a resposta de Covas explicita sua adequação à sociabilidade perversa brasileira, recentemente assumida como virtude por políticos como Bolsonaro, Moro ou Doria Jr: o privilégio do verdadeiro líder de estar acima do bem e do mal - e das leis. Ser aspirante a um mini-Luís-XIV-versão-século-XXI seria a demonstração cabal do seu valor, como era outrora o despotismo do senhor de engenho perante suas posses - terras, mulheres, escravos, estado. O problema de Covas é que ainda que formado nessa sociabilidade, ele não é um perverso: ele não consegue jogar flores no chão, falar "e daí, não sou coveiro", grasnar qualquer atrocidade; por isso seu passo atrás, seu tentar se justificar com sua excepcionalidade: mereceria estar no Maracanã em meio a uma pandemia, 230 mil mortos, crise na saúde, na economia, no estado, porque "é um direito" seu "usufruir de um pequeno prazer da vida" depois de passar pelo tratamento de um câncer - contrariamente ao que sempre diz aos seus comandados. Só ele quer desfrutar de um pequeno prazer da vida? Só ele ficou doente durante a pandemia? Filhos com saudades de seus pais idosos que moram longe, se tem responsabilidade (e um emprego), não tem esse direito. Pais e mães cujos filhos estão entre os que tiveram a vida levada pelo coronavírus - só no estado de São Paulo os mortos já lotam o Itaquerão e começam a encher um segundo estádio -, não podem mais ter esse pequeno prazer. Mas hipócrita é quem segue as recomendações que o governador do estado e o prefeito da cidade repetem.

Pelo posto que ocupa, Bruno Covas deveria ser o primeiro a dar o exemplo. E ele dá: se o exemplo é positivo ou negativo, é outra história. Prefeitos acusados de furar fila da vacina podem, inclusive, usar essa questão com o álibi: estão dando o exemplo da importância da vacina, já que o chefe do executivo nacional faz campanha contrária (isso não vale para parentes, mulheres e amigos do prefeito que furam a fila, aí o exemplo volta a ser de apropriação privada do público). Ao dizer que seu caso é especial e merece ser excluído das restrições que todos deveriam estar submetidos, simplesmente “porquessim”, qualquer um pode alegar o mesmo - como já é feito, mas agora há uma legitimidade a mais: o prefeito da maior cidade do país, que repete diariamente “fique em casa” e “cuide-se” também assume que qualquer motivo serve para não ficar em casa nem se cuidar devidamente. "Pequenos prazeres" justificariam a negligência com o vírus - nem precisa ser "grandes prazeres".

Uma atitude dessas de um político, de um homem público, é um deslegitimar a política e recusar a coletividade em nome de um hedonismo mesquinho. É um passo a mais no nosso caminhar para o abismo da convivência social, onde tem voz uma ideologia darwinista-social-ultra-individualista que apregoa a sociedade como feita de mônadas e recusa a óbvia interdependência de todos na construção do bem comum (do mal comum também); é um reforço ao que temos de pior da nossa sociabilidade forjada na escravatura e no estupro, um individualismo tacanho e incapaz de enxergar o próprio bem no dia de amanhã. Bruno Covas tem a consciência tranquila.

09 de fevereiro de 2021

sexta-feira, 22 de junho de 2018

Futebol: o louvor ao mau-caratismo

Lembro de quando tinha meus dez anos, ouvir conversa dos adúltolos, que repetiam o que a mídia apregoava, que artes e esportes eram formas eficientes de manter jovens longe das drogas. Adúltolos porque duvido que eles ali - início da década de 1990 numa cidadezinha de fim de mundo do Paraná - tivessem a mínima noção das complexidades da questão das drogas e defendiam abstinência como prática "correta", ignorando que drogas são várias - as legais, que matam no trânsito, no bar, em casa, e as do mal, que... que deixam as pessoas louconas, ou que matam por overdose, apenas, não por overdose como por abstinência -, assim como a forma de se relacionar com elas - do uso recreativo ao abuso -; e ignorando que o meio artístico é um local privilegiado de drogas - tanto o uso quanto o abuso, entre artistas, técnicos e produtores. Não compreendiam que o que de fato tira jovens das drogas nas artes é que a vida ganha novas possibilidades, outros significados, maior diversidade de prazeres - possibilidades que o mundo do trabalho não costuma oferecer -, deixando menos espaço para ser ocupado pelo abuso de drogas (ou de religiões embotadoras da vida e da alegria).
Nos esportes, menos explícito e louvado, as drogas - uso e abuso - não deixam de estar presentes, tanto entre profissionais, na exigência de alto rendimento subhumano (subhumano porque não acho que o homem-máquina seja sobrehumano, antes o contrário, sua degeneração, o abdicar de parte da humanidade em prol de números), quanto de amadores, na tentativa de imitar ídolos, alcançar padrões estéticos sugeridos pela mídia, quanto pela frustração em seguir humanos - sem recordes, com gorduras.
Acompanhando algumas partidas da copa do mundo (acompanhei quase todos os jogos da primeira rodada, um saco, jogos parecidos e modorrentos, muita tática e pouco jogo, ficam entre jogos de futebol do Mega-Drive 16 bits e uma uma quase versão para bola redonda de futebol americano), desconfio que, pior do que ouvia na infância, esportes não apenas não deixam jovens fora das drogas, como ajudam a forjar uma ideia gloriosa do mau-caratismo. Mau caráter que não se restringe ao seu expoente-mor, o perverso mimado que se supera dentro e fora das quatro linhas, o "menino Neymar" (conforme ouvi na narração radiofônica, visto que tenho um mínimo de amor próprio para não me rebaixar a ouvir Galvão Bueno, o locutor do fascio nacional, em sua sabedoria plena, universal, de grande pai do falo gigante).
Não lembro de quem li (acho que foi o Dráuzio Varela ou o Mino Carta), da primeira vez que foi a um estádio de futebol, década de 1950, assistir a uma partida de futebol, e saiu estarrecido com o cinismo em campo - jogadores simulando faltas para tentar enganar o juiz e levar a melhor. Imagino qual não seria o horror ao ver uma partida hoje. Pior: qual não seria o horror daquele menino ao ver o cai-cai, a simulação, o fingimento, o engodo louvados em alto e bom som para todo o território nacional como sinais de esperteza, comportamentos positivos, heróicos, ensinados às crianças desde a seus primeiros passos, conquanto que seja a favor de "nós" - qualquer semelhança com processos jurídicos e/ou políticos fraudulentos, mas louvador como divinos por alguns (que ostentavam a camisa canarinho, por sinal) porque a favor deles não parece ser mera coincidência. Agora se o resultado for contra o "nós", independente que seja parte do jogo ou malandragem, resta indignação e clamar por justiça - aquela recusada aos outros. O gol da Suíça foi roubado, dizem, e é grande a ira por conta disso num certo país tropical - mas ninguém fala em devolver o pentacampeonato, nem se envergonha de ter ganho aquela copa com um gol irregular na primeira partida (por mais que isso pouco alterasse o resultado final do grupo). Neymar, o pai dos espertos, se irrita quando é feito de bobo, passa a se achar cheio da razão - a mesma razão que o autorizava a enganar.
É preciso ressaltar, ainda que Neymar seja o rei da velhacaria ludopédica (ele xingando o jogador costa riquenho é de uma finura exemplar), isso não é privilégio brasileiro: é o que há de mais corriqueiro nesta copa - mais que gols, mais que futebol. Nesta e em outras: vale lembrar que o México foi eliminado pela Holanda, em 2014, numa simulação vergonhosa de Robben. De volta à Rússia, no jogo entre Senegal e Polônia, por mais que eu estivesse torcendo para os africanos, deu vergonha o fingimento de Niang, que não apenas parou a partida para ser atendido de uma lesão de mentirinha, como ainda teve a sorte de ao entrar sobrar-lhe a bola para marcar o segundo gol. Desnecessário me alongar nos exemplos, há aos borbotões em cada jogo desse que é considerado o maior espetáculo esportivo do planeta. Se o uso do árbitro de vídeo tem ajudado os espertos a não se darem bem, ainda falta a Fifa decidir que de fato que se dêem mal - o cartão por simulação está aí, e toda partida acabaria por falta de jogadores em campo, se fosse aplicado. Menos drástico, bastaria estabelecer que jogador que seja atendido cumpra cinco minutos de espera antes de voltar a campo - afinal, diante das caretas feitas, é bom se certificar que não houve mesmo nenhuma vértebra quebrada ou uma hemorragia interna. Até lá, já seria de grande ajuda se o esporte pudesse ser usado como exemplo de ética - ou de falta de, já que os atletas servem antes de contra exemplo. Duro que os porta-vozes que a mídia nos impõe são tão anti-éticos quanto Neymar e seu cupinchas.

PS: uma dúvida se me abate desde o início da copa: com os jogadores jogando há muitos anos na Europa e alhures, os treinos da seleção e a instruções são em qual idioma?

PS2: ainda que eu seja de longa data torcedor da escrete argentina, não dá para esquecer o "que vengan los macacos" de um jornal local em alguma final olímpica contra a Nígéria. Que vuelvan más temprano los hermanos (e que junto los acompañen Neymar e cia).

22 de junho de 2018


Conforme um amigo, Neymar, preocupado com a saúde do costariquenho, sugere ao adversário "tomar caju, suco da fruta".

sábado, 28 de abril de 2018

Quando um amigo passa o limite e assume ser fascista

Nunca havia feito isso antes - excluir pessoas do meu Fakebook por motivos políticos. Sou alguém que acredita - insiste em acreditar - no diálogo, no bom uso da razão. Não, não acho que sou o dono da razão, mas se não sei o que é o certo - sequer acredito em uma certeza única -, não hesito em ver muitas posições como claramente equivocadas - o fascismo e a desumanização do outro são algumas delas. Enquanto muitos já excluíam de seu Fakebook batedores de panelas nos inícios do golpe, eu via em meus amigos patos não má-fé, mas limitações de percepção, crítica e cognição, visto estarem demais imersos na linguagem espetacular, sob bombardeio intenso de uma mídia goebbelsiana: era difícil dialogar, mas eu  cria haver possibilidade, assim que surgisse uma brecha - poderia chamá-los para um uso razoável da razão.
Quem busca a razão para justificar injustiça e arbítrio mostra não fazer bom uso da razão. Quem comemora a desumanização do outro atesta sua incapacidade para a vida em sociedade. Não é uma situação definitiva - mas é limite, enquanto não for superada.
A condenação de Lula, faz vinte dias, foi a consagração do fascismo nestes Tristes Trópicos: a inversão do ônus da prova, a falsificação de provas, leis e ritos formais alterados conforme interesses pessoais de acusadores e juiz-inquisidor. Isso é julgamento nazifascista, stalinista - justiça é só um nome pomposo para a institucionalização do arbítrio dos mesquinhos. É o estado de exceção que vale para pobres pretos e periféricos democratizado a quem não lambe os pés dos poderosos - ainda que não os afronte. Alguém que acompanhou, mesmo que a distância, toda essa farsa nazifascista sul-brasileira, não tem como justificar o arbítrio ocorrido.  Não por acaso, muitos dos amigos que esfuziantemente bateram panelas estão silentes, quando não se dizem desiludidos com todas as instituições - executivo, legislativo e judiciário: notaram que até dentro de seu preconceito há um limite para o ódio. Ainda que tarde, perceberam que foram enganados, feitos de patos, ao endossar o coro dos manipulados pela mídia - agora calam, antes que se vejam novamente no ridículo de achar que pensam por conta própria enquanto repetem bordões vindos de cima. É a brecha para chamá-los à crítica, antes que a memória curta os induza novamente a agir como massa de manobra.
Comemorar uma prisão de um senhor de setenta anos (pois é, o vigor e a energia de Lula não raro faz com que esqueçamos que ele não tem quarenta, cinquenta anos) é gozar com a perversão institucionalizada - assim como os que gozaram com Maluf preso (agora que não tem poder algum). Comemorar uma prisão é uma aberração que a sociedade brasileira naturalizou, mesmo em suas fileiras progressistas: numa sociedade que já adentrou a modernidade, a prisão de alguém pode ser um alívio, nunca uma alegria. Preso deveria estar quem apresenta real perigo à sociedade - como quem fala em "escolher um que a gente mata depois" ou que é capaz de comprar agentes públicos que o investigam, por exemplo -, e não qualquer um, preso por um desejo de vingança que beira os primórdios da socialização humana - degenerado por todo o aparato tecnológico, que permite mil outras alternativas de reparação de danos e reintegração de desviantes (nem estou aqui questionando quem impõe o que é desvio o que é normal), assim como formas mais cruéis de tortura.
Quando vi em minha linha do tempo pessoas comemorando a prisão de Lula, ou tentando racionalizar uma justificativa para seu ódio tecnicamente equipado - ainda chamando os que bramem contra a injustiça como ressentidos -, me dei conta que haviam ali atravessado a linha da convivência humana, e adentravam decidida e declaradamente no fascismo: não vislumbro possibilidade de diálogo com quem não é capaz de identificar no outro um humano, um igual. E não há mais justificativa para manter sua posição - salvo severas limitações cognitivas, o que não é o caso - que não o prazer com a dor alheia, o desejo de aniquilação de tudo o que lhe perturba a pretensa harmonia de sua vida estreita e pusilânime. Não são ignorantes, não são burros, não são ingênuos: são pessoas de mau caráter, mesmo. Fascistas. Assassinos esperando sua oportunidade de serem o próximo a despachar o inimigo no trem para Auschwitz. Não por acaso hoje, dia 28, entro para ver se não fui precipitado em meu julgamento e vejo essas pessoas indignadas com cercas derrubadas pelo MST, exigindo justiça, e fazendo silêncio com os atentados contra o acampamento Marisa Letícia - se a Globo permitir, logo lançam um movimento "white fences matters". Confirmo que minha decisão foi correta: quem se regozija com a injustiça e (pretensa) humilhação de uma pessoa é capaz de sentir o mesmo prazer com qualquer outra - desde que não seja ela própria ou alguém muito próximo. Inclusive, não duvido que quanto maior a dor, maior o prazer - por que não, então, a morte, lenta, quem sabe sob tortura? Dispenso "amigos" que irão comemorar eventual condenação minha para a câmara de gás - incapaz que serei de provar minha inocência diante das convicções de meus algozes.

28 de abril de 2018

PS: já há muito tempo, por ter tido contato mais próximo, tomei decisão de romper com familiares nazifascistas - sabia que ali as possibilidades de bom uso da razão eram reduzidas. Acho que família não é justificativa para aceitar esse tipo de pensamento e ação (falo também em ação visto que um primo meu já integrou (não sei se ainda integra) gangues neonazistas em Curitiba). Mais curioso que esses parentes são os que mais falam em boas energias, amor: são professores de yoga, psicólogos exotéricos - tudo isso para no fim do dia achar que há pessoas e há não-pessoas, a despeito de serem todos homo sapiens.

domingo, 18 de março de 2018

O que conseguimos escutar?

Reconheço que foi inesperada toda a reação à minha última crônica, "Conseguimos ouvir o que fala quem diz 'bem feito aos carteiros'?". No Nassif On Line/Jornal GGN, foram mais de cinquenta comentários, a maioria me criticando e querendo ver os funcionários dos Correios se darem mal - Kassab, Meirelles e cia devem rir muito ao ver zé ninguém batendo em zé ninguém enquanto eles se lambuzam. Contudo, para além do ódio aos carteiros - que eu não entendo e me surpreende -, noto que pus a carruagem na frente dos bois, e não devia perguntar se somos capazes de escutar o outro, e antes, mais simples: somos capazes de escutar?
A ignorância não é fruto de falta de educação formal (isso contribui, mas não é condição necessária, muito menos suficiente), nem privilégio destes tempos pós-modernos. Entretanto, me pergunto o quanto a ausência a conversa "real" (em oposição à virtual) não tem deteriorado uma capacidade desde sempre pouco desenvolvida nestes Tristes Trópicos, que é a arte de dialogar. O quanto a ausência da voz numa discussão nos impede de escutar nuances do discurso do outro (um ceticismo receoso pode soar como uma recusa intransigente na internet), assim como a permissão de dizer o que quiser a qualquer momento que a internet nos dá, sem qualquer limite que não seu tempo e sua paciência, nos conduz ao paroxismo de impedir escutar o discurso do outro. 
Lemos um "textão" no Fakebook ou um artigo na internet caçando os 140 caracteres essenciais e logo despejamos o que está na agulha, sem pensar - um tiro não exige reflexão, exige no máximo reflexo. No exemplo que me cabe, só o título de minha crônica anterior já me toma 64 caracteres, as palavras-chave "greve correios defesa trabalhadores apoiaram o golpe", já me gastam outros 52, "pato ódio desfazer" levam os 24 restantes - telegramas talvez exijam maior capacidade de raciocínio que um twitter. Caçado um "twitter elementar" do texto, é hora de repetir o que se acha - na ilusão (ensinada pela escola) de que repetição seja pensar. E não é por repetir a si próprio que isso se torna reflexão: o fato de ter refletido uma primeira vez para se chegar a uma conclusão não implica que esteja pensando as outras 999 vezes que se repete, até porque, é de se imaginar, que interlocutores e contextos mudem, exigindo repensar a própria estratégia argumentativa, quando não o próprio núcleo do argumento, diante de novas réplicas.
Por uma questão de saúde mental e emocional, e para manter um mínimo de fé na humanidade, evito ao máximo ler comentários de internet, seja onde for. Exceção feita aos dos textos que publico, onde busco interlocutores, com retificações ou ratificações pertinentes; ou mesmo para tentar entender possíveis falhas de comunicação da minha parte. Boa parte dos comentários ao meu texto sobre a atitude para com os funcionários dos correios foi de críticas - o que em si não seria um problema -, porém feitas de uma forma tão crua que deixou evidente que as pessoas não eram capazes de "escutar", de compreender o que elas próprias escreviam - e não creio ser ingenuidade minha acreditar nisso e ao invés de crer que, na verdade, são pessoas da pior índole se fazendo passar de progressistas e/ou esquerdistas. Aquilo que eu havia alertado em meu texto foi exemplificado nos comentários: o ódio fascista, o desejo punitivista de sangue do inimigo a qualquer custo, o "se esteve contra mim sempre será meu inimigo". Curto, grosso, direto, bruto, tosco, ignorante. Mas de uma ignorância que não mobiliza para ampliar os horizontes, uma ignorância orgulhosa de sua própria limitação, que busca afugentar (quem sabe matar?) todo aquele que incomode seus seguros e estreitos limites (e antes que me acusem de neoplatonismo tosco, impressão que esta frase fora de contexto pode passar, sugiro ler meu texto anterior). Me vem a imagem de Bush, ainda que para os dias atuais ele seja um intelectual. Reconheço: quando escrevo um texto como "Conseguimos ouvir o que fala quem diz 'bem feito aos carteiros'?" meu desejo é que me provem o quanto estou equivocado, o quanto meu umbigo não permitiu perceber nada claramente; entretanto, os comentários foram iradas confirmações da minha análise: a forma fascista de (não) pensar está vencendo. E desconfio que as pessoas não estejam se dando conta disso. Logo, se são incapazes de escutar a si próprias, é demais pedir para que ouçam o outro. Resta a força bruta - o "cala-te ou te arrebento".
Três aspectos me chamam a atenção nas respostas recebidas: a ausência de nuances, a petrificação de posições (para a eternidade?) e um mal digerido cristianismo - talvez tendo como raiz uma profunda descrença no ser humano e na humanidade. Meu chamado para um "ouça, entenda, converse, acolha" trabalhadores explorados por um governo ilegítimo, que implica em um chamar aberto mas condicionado para a luta conjunta contra os golpistas, ao que tudo indica foi entendido como um perdoe e aceite tudo - o "dê a outra face" de Jesus. Mais: se uma parte dos funcionários dos correios foram favoráveis aos golpistas, todos os funcionários foram favoráveis, e uma vez que foram favoráveis, sempre serão favoráveis. É seu "locus naturalis", diriam os filósofos medievais: assim como um ex-presidiário sempre será presidiário, não importa que tenha cometido um crime num determinado contexto e pagado sua dívida junto à sociedade, não merece mais confiança, nunca. (Aqui abro um parênteses, não todo desprovido de propósito, para agradecer a educação dada por minha mãe e meu falecido pai: uma educação grandemente desprovida de pré-conceitos, sociais, étnicos, de gênero, ou o que for; nunca aprendi que um negro pobre da periferia seja "do bem", assim como nunca aprendi que um branco rico seja "do mal", nem que uma pessoa não possa mudar, para melhor ou para pior, com os anos, que o diga muitos ex-comunistas). 
Ouso a hipótese de que, para além da forma fascista de enxergar o mundo, a visão estanque de si e do outro possa ser consequência da nova tendência da esquerda, as pautas identitárias. Longe de desqualificar esse tipo de pauta, muito pelo contrário: é de extrema importância que os oprimidos ganhem voz para falar em alto e bom som que além dos aspectos econômicos salientados pelo marxismo, há, sim, questões fenotípicas, identitárias, que geram doses extras de opressão sobre determinadas populações. Contudo, ao se pôr tais pautas como figura de proa, desprovida de visão mais ampla dos jogos de forças que criam e oprimem tais identidades, não é preciso dois passos para incorrer em generalizações e em essencializá-las como estratégia para cerrar fileiras - como afirmar a sororidade acima de qualquer contexto social, como se a opressão à mulher fosse igual em qualquer caso, Carmen Lúcia, Marcela Temer, Marielle Franco e a faxineira negra do mercado que quer votar no Lula e achar um marido que a proteja -, até cair num narcisismo identitário, carente de sempre ter um inimigo bem identificável e da necessidade de reforçar sempre seu predomínio sobre todas as outras pautas.
A escuta passa a ser treinada, então, para encontrar o inimigo, o infiltrado. Assim como não se escuta quem se põe como crítico, cético ou antagonista (atenção! estou falando de gente comum, não de fascistas convictos, como os do blog de mesmo nome), perde-se a capacidade de escutar quem não repete exatamente sua cantilena, espantando possíveis aliados - e mesmo quem diz representar. 
Pior, essa escuta estritamente policial do outro (ou religiosa, do padre ou pastor em busca dos pecados alheios) se volta para si mesmo, porque se escutar pode implicar em dar espaço para discordâncias, fissuras com as generalizações identitárias, o que - dizem algumas correntes - seria o fim de toda a luta identitária e o retorno da opressão mais brutal. A isso se alia a repetição de ideias prontas, tornando assim desnecessário que se escute, uma vez que se sabe o que vai falar. Consequência até natural, uma vez que quem não sabe ouvir não será capaz de falar.
Realmente não era o ponto aonde eu esperava chegar ao iniciar esta crônica, mas temos, ao fim e ao cabo, aquele discurso ideológico da velha esquerda, sintetizado por Harold Rosenberg: "O comunista pertence a uma elite dos conscientes. É, portanto, um intelectual. Mas uma vez que toda a verdade foi-lhe conferida automaticamente mediante a sua adesão ao Partido, trata-se de um intelectual que não precisa pensar (...). Desde que somente ele possui a resposta certa, em toda parte o comunista tenta controlar a atividade dos outros". Por isso, repito o que falei em minha última crônica, com a mesma citação de Bernard Shaw: a necessidade da educação para a democracia: "Toda nossa teoria da liberdade de palavra e de opinião para todos os cidadãos repousa não na asserção de que todo o mundo tem razão, mas na certeza de que todo o mundo está errado nalgum ponto em que um outro tem razão". Porém me resta a dúvida: quantos estão dispostos a porem em risco sua identidade garantida pelo grupo, seus frágeis egos entrincheirados em generalidade heterônomas, e se pôr a escutar a si próprios, seus desejos e seus medos, e se abrir ao diálogo franco com o outro?

18 de março de 2018

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

O cão de Pavlov e o atendente de farmácia

Em um de seus experimentos sádico-científicos, Pavlov tocava uma sineta antes de aplicar um choque em um cão, que chorava por conta do sofrimento causado pelo choque. Passado um tempo, o cachorro já começava a chorar só de ouvir a sineta - muitas vezes sequer recebia o choque. Ainda mantendo a associação entre sineta e choque, passado outro tempo, o animal se habituava: ouvia sineta e tomava choque sem reclamar - bovinamente, diríamos hoje.
Não vivemos em laboratório, onde as variáveis estão controlada (ou ao menos assim dizem os cientistas), nem somos cachorros (por mais que no Brasil tenha "pet" que leve vida melhor que boa parte da população humana), mas nosso viver no automático nos leva para um ponto não muito longe dos experimentos pavlovianos - para alegria de publicitários, jornalistas, políticos e engenheiros sociais em geral. Meu exemplo é banal.
Uma amiga pediu para acompanhá-la na Farmácia de Alto Custo, do governo do Estado em parceria com a SPDM (Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina), que fornece gratuitamente remédios caros à população. Tinha medo de ir sozinha na farmácia, situada na região do baixo do Glicério, na várzea do Carmo, próximo à estação Pedro II do Metrô. Deveras, em meio a viadutos, mendigos, moradores de rua, usuários de drogas pobres, catadores de recicláveis, igrejas, migrantes, imigrantes e outros desvalidos da sorte, não é um local que a classe média se sinta em casa para uma caminhada. Meu cacoete de classe média logo fez com que me questionasse (não verbalizei, para não melindrar minha amiga) por que ela não comprava o medicamento, já que não é tãããao caro assim, e ainda que fosse pesar no seu orçamento, não implicaria cortar de nenhum gasto essencial. Meu anti-cacoete-classe-média logo me lembrou da grande besteira ideológica pequeno burguesa tropical essa ideia de que serviço público é para pobre e não para todos - tirando, claro, a universidade pública e o terceiro nível do SUS, porque aí a classe média não conseguimos bancar sem cortar de algum lado, e então fazemos questão de usar o serviço do Estado, disputando com pobres, porque é nosso direito. E é. Se acesso à saúde é um direito universal garantido pela Constituição, bem faz minha amiga de exigir seu direito, ao invés de pagar por uma relativa comodidade.
O serviço da farmácia pareceu bem organizado, e nesta quarta-feira de cinzas, rápido. Enquanto esperava minha amiga ser atendida, reparei no espaço, que desde que entrara, algum estranhamento me causava. O local era limpo, sinalizado com cores, mas havia algo fora da familiaridade classe média a que estou acostumado. Imaginei que talvez fosse a pintura, que não estava tinindo, como em grandes redes de farmácia ou nos McDonalds médicos que vejo no centro da cidade (sem desmerecer o lanche do Mc, que é ruim mas não para tanto). Talvez a falta de cores fortes preenchendo grandes espaços. Ou um televisor gritando rede Globo ou publicidade? A falta de uma logomarca grande chamando a atenção e uma placa bem a vista com a missão do estabelecimento? Reparei nos atendentes. Estavam todos de preto - incomum para um ambiente de saúde, mas não era isso. Notei que uma delas tinha a marca estampada na roupa, outra uma frase brega, o rapaz que entregava as senhas, camisa de jogo de RPG. Passou por mim a moça da faxina, roupa da terceirizada. Entendi, então, meu estranhamento: os serviçais, salvo da faxina, não estavam uniformizados.
Admito um certo choque ao perceber como naturalizei a visão do uniforme em quem me atende. Passa-se a ideia de profissionalismo, dizem. Diria mais: passa-se a ideia de quem está na sua frente não é bem uma pessoa, mas o meio termo entre um homem ou uma mulher e um androide - na impossibilidade, por enquanto, de serem substituídos por robôs de verdade.
Entendo a necessidade de uniforme em muitas situações - escolas ou fábricas, por exemplo. Durante a idade escolar e ainda hoje sou grande defensor do uniforme: me poupa de pensar nessa maçada que é que roupa vou usar, se já não usei ela semana passada ou coisas do tipo. Porém sou homem, branco, classe média alta: socialmente valho por pessoa por meu fenótipo e renda, ainda que muitos de meus colegas de classe sintam necessidade de se afirmar por outros meios também - carro, restaurantes, roupas, viagens. Mesmo o uniforme para minha classe - o terno - é socialmente valorizado como nobre, com "personalidade".
A situação é diferente na "ralé", como chamou Jessé Souza, e noto como o uniforme de trabalho para essas pessoas tem um aspecto perverso: uma das grandes molas propulsoras do capitalismo espetacular está no vestuário, na moda - isso vem do século XIX, como atesta a literatura. Geralmente as pessoas que fazem o atendimento ao público são pessoas que tiveram menos oportunidades de educação e, consequentemente, de um melhor emprego. São vistos como semipessoas, semicidadãos pelos homens e mulheres "de bem" desta terra do "você sabe com quem você está falando?". Usar uma marca é uma tentativa de ganhar a parte da humanidade (ou toda ela) que lhes foi negada: foi uma das coisas que me chamou a atenção nos imigrantes na Missão Paz, ali perto da Farmácia de Alto Custo, no Glicério; ou o que se lê em romances do Ferréz ou nas letras dos Racionais, por exemplo. Não apenas isso: ideologicamente há a ideia - aceita acriticamente até por gente que se acha crítica - que marca, roupa, estilo, é parte da personalidade de alguém, quando não a define na essência. Portanto, ao serviçal, já considerado semigente, é também recusada a expressão da sua personalidade espetacular. Não é alguém por completo, nem tem direito de tentar sê-lo - tal qual o patrão ou os clientes brancos, classe média, cheios de estilo, que exigem serem recebidos com robóticos "bom dia" por pessoas uniformizadas - ironicamente, as gravações do atendimento no telemarketing tem mais vida e personalidade que os atendentes de carne e osso, que soam submissos serviçais zumbis do outro lado da linha.
Comento esse exemplo banal do desnecessário uniforme para atendentes. Vamos no automático, mal enxergamos, quando vemos, ainda achamos que tem pontos positivos, logo vira natural - pode um atendente sem uniforme? O caso poderia ser levado a outros aspectos do nosso quotidiano, mais emblemáticos. A violência que está aí, como o sol da manhã, a polícia que faz abordagem com arma na mão e dedo no gatilho às três da tarde no centro, os assassinatos pelos policiais, os policiais assassinados - tudo normal, pessoas tombam ao nosso lado, mas a vida segue. Ou o golpe de Estado e todo o desmonte do pacto social que vivenciamos: algum incômodo de início, alguma revolta, mas aos poucos vamos aceitando a sineta e o choque, no máximo engolimos a amargura e temos uma gastrite, camuflada com qualquer narcótico, tudo sem mudar de ritmo, sem perturbar a rotina - afinal a vida é assim,  não? E fugimos de enxergar se ela deveria mesmo ser assim.

14 de fevereiro de 2018

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Alguma coisa está fora da ordem no carnaval

Alguma coisa está fora da ordem, fora da velha ordem nacional - e a ascensão do carnaval de São Paulo com seus bloquinhos talvez dê alguma dica do que pode ser essa desordem oculta.
Pouco afeito ao carnaval, já que essa "brazilidade" da alegria esfuziante não me toca, não nutro ódio - como muitos "cidadãos de bem" da minha classe -, apenas tento passar longe, por mais difícil que isso seja, diante do encontro constante nos fins de semana com bandos em trânsito para os blocos, que me lembram uma versão psicodélica dos pequenos grupos de crackeiros no centro paulistano dos dias úteis e inúteis (observação: não há qualquer valoração nessa comparação, apenas uma similitude que enxergo), das centenas de fotos de meus amigos que vejo nas redes sociais e das reportagens que pipocam por todos os lados. Foi amiga minha, Flor di Castro, artista plástica que atualmente reside em Buenos Aires e passa as férias no Brasil, quem me chamou a atenção: antes, carnaval era nos dias de carnaval, quando muito tinha pré-carnaval no fim de semana anterior; hoje, o pré-carnaval já quase emenda com o ano novo. E se questiona: do que as pessoas precisam tanto fugir, que carecem de um mês todo de festa?
Conforme vários antropólogos, rituais de inversão, como o carnaval, são rituais necessários para se manter a ordem: um dia, uma semana por ano, os papéis sociais são invertidos - chefes se vestem comuns, rafuagem se veste de rei, mulher se traja homem, homem vira bicho, adultos se fantasiam crianças -, sem efeitos performativos, mas com profundo efeitos de acomodação - psicológica e social. Isso cabe bem em sociedades tradicionais, com papéis rígidos e bem definidos: a permanência desse tipo de necessidade em uma sociedade moderna não deixa de ter algum estranhamento, uma vez que se sabe que uma saia não faz um homem menos homem, e não há lei que proíba alguém de trajar um unicórnio (desde que acompanhado de roupas que cubram nossas vergonhas, nestas terras altamente moralistas). Como minha companheira questionou: por que as pessoas não saem vestidas o ano inteiro assim, se se sentem bem? Minha questão é o quanto há de se sentir bem nessa ordem pretensamente invertida do carnaval, o quanto há de se sentir bem tão somente na negação do ordinário.
Sim, como disse acima, essa é a função de rituais de inversão, porém quando se faz isso um mês todo, pode-se imaginar muita vontade reprimida; ao fazê-lo num ritual sem maiores conseqüências, é de se questionar por quê não trazemos isso para o quotidiano, em discursos e ações consequentes - função já ocupada prioritariamente por sindicatos, atualmente um tanto capengas, e hoje ocupada por movimentos identitários, que aparentemente não dão conta de cumprir essa função por completo.
A proposta - ratificada pela justiça - de um bloco apologético à tortura (não se trata, como se diz, de apologia à ditadura, na qual pode ser encontrados pontos positivos, o porão do Dops, é sabido, era sala de torturas, de violência covarde e sádica contra pessoas indefesas), em um país em que a tortura e as execuções estatais extra-judiciais aumentaram desde o fim da ditadura, permite questionar que inversão o carnaval representa, e qual a tolerância do atual status quo - que se desenha cada vez mais nazifascista - para pequenos e saudáveis (para o sistema) atos de questionamento. O carnaval seria de fato ainda um ritual de inversão, ou já se tornou outra festa espetacular no calendário de pseudofestas da sociedade do espetáculo, cuja função é gerar lucros e o pior conformismo? É inversão a garantir certa estabilidade social ou pseudoinversão a reforçar uma insuportável ordem dominante?
Outro ponto que chama a atenção é o fato do carnaval de São Paulo já ter mais bloquinhos que o do Rio de Janeiro - e o próprio fato de o carnaval de rua estar em alta, enquanto os desfiles (se não percebo errado) já foram mais valorizados enquanto símbolo-mor da festa. Acredito que parte dessa valorização da rua não se dá pela chegada de uma classe média, média-alta, branca, universitária, criada em shopping centers e que resolveu "viver a cidade", num ato inconsciente de questionamento dos pais. Não teria nada a criticar nisso, se essa cidade em que os hipsters querem viver não fosse uma versão a céu aberto do shopping - limpa, asséptica, homogênea (vide Pinheiros/Vila Madalena ou a Vila Buarque e o Arouche, em processo de higienização social e pasteurização visual/estética. E isso não é exclusividade tupiniquim, como reportado por Benoît Brevilé, no Le Monde Diplomatique de novembro ["grandes cidades, bons sentimentos"]). Os contextos políticos municipais talvez ajudem a explicar o crescimento paulistano: enquanto no Rio prolifera o evangelismo mais reacionário - coroado com a vitória de Crivella para a prefeitura -, São Paulo teve um respiro modernex com Haddad: o ex-prefeito encarna o hipster com louvor: branco, classe média, universitário, descoladão nos costumes e ainda assim família (não por acaso sua derrota se deve à perda da base habitual do PT, as periferias da cidade: sua imagem não era nem a do modelo de sucesso para a maioria, nem a do tipo mais preocupado com as periferias, uma vez que, como canta Criolo, "cientista social, casas Bahia e tragédia, gosta de favelado mais que [de] Nutella"). Doria Júnior bem tentou reverter o movimento, mas não teve força suficiente - ainda que tenha causado algumas baixas importantes, como a do Bloco Soviético, em 2018 - e alguém com tato mínimo deve ter avisado que era melhor não mandar descer o cacete para se fazer respeitar, não nesse caso, uma vez que a festa pode ser popular, mas boa parte dos seus freqüentadores são da classe média.
O declínio dos desfiles em favor dos blocos permite mais duas hipóteses, que não deixa de ser uma: de decadência da Globo e de anseio democrático. Ao invés de público passivo, bem confinado e bem comportado assistindo à vida passar na sua frente - para julgamento de especialistas -, o desejo de ocupar as ruas, os espaços públicos, e ser protagonista anônimo de um movimento sem muito rumo e roteiro - e sem avaliador externo. O discurso de ódio generalizado, esquerdistas, gays, progressistas, mulheres, negros, artistas, rolezeiros, etc (antes, o ódio era mais direcionado, pobres pretos e periféricos), que Globo e mídias satélites impuseram como padrão nos últimos anos talvez possa ser lido como uma tentativa de retomar essa hegemonia quase monolítica de alguns anos atrás: nada melhor que o ódio para unir - e uma ditadura para calar dissonantes e restabelecer cada um no seu lugar.
Não chego a nenhuma conclusão ao fim desta crônica, a não ser, em concordância com Flor, que algo parece estar muito fora da ordem na nossa sociedade - e o carnaval atual, que dura e dura e dura, soa uma tentativa inconsciente (não sei se vã ou efetiva) de lidar com alguma anomia.
07 de fevereiro de 2018

domingo, 14 de agosto de 2016

Estudo sobre a meia-idade na segunda década do século XXI [Diálogos com o teatro]

Dentro de uma moldura masculina, na pela de quatro homens, Estudo sobre o masculino: primeiro movimento, residência artística de Antônio Duran, dramaturgista do Teatro da Vertigem, fala sobre a meia idade em quatro sujeitos que não seguiram o "caminho natural da vida" - que nada tem de natural, é antes um fluxo socialmente imposto e cada vez mais caduco na modernidade tardia.
Quatro atores, entre 45 e 55 anos, heterossexuais. Deveriam estar estabelecidos, casados - ou ao menos terem sido -, os filhos começando a caminhar pelas próprias pernas, e a atenção voltando novamente para si e sua vida, com a fatídica pergunta: "que fiz eu da minha vida?", ou melhor, "que deixei eu fazerem da minha vida?" - crise retratada em muitos filmes, como Beleza Americana (Sam Mendes, 1999) ou A era das trevas (traduzido como A idade da inocência no Brasil, Denys Arcand, 2007). Não é esse o caso que Estudo sobre o masculino retrata: o caminho heterodoxo dos quatro, sem terem feito nenhum comprometimento maior ao longo de suas vidas, faz com que muitas vezes surja a pergunta se não deveriam ter seguido o tal "caminho natural". Por não seguirem o fluxo, parte do drama dos quatro é não poderem fugir à responsabilidade de estar aonde estão: se não é o ponto aonde gostariam estar, é aonde conseguiram chegar com os percalços que a vida põe - não deixaram de tentar para agradar aos pais, para se adaptar a um padrão social. Pelo contrário, a história que contam é a de quem passou a vida fugir da "vida de merda" que lhes era reservada: bom salário, bom marido, bom pai, almejando ser o funcionário do mês e que seu filho consiga fugir desse paraíso feito de obrigações e privações. Em momentos nos perguntamos se conseguiram realmente fugir, ou apenas postergar.
Se comprometeram pela metade com o sistema, sem fracassarem: estão ali, de terno e gravata, a mostrar que em seu trajeto ganharam respeito - ao mesmo tempo falta a calça e a camisa, a dar prova de sua rebeldia e liberdade, ainda que limitadas. O problema de sua heterodoxia, feita de uma crítica pela metade, é que o corpo começa a demonstrar os sinais do tempo: a barriga, os cabelos brancos ou ralos, a falta de fôlego: "só ao me ver no espelho vejo que envelheço", diz um deles. Não viram o tempo passar, mas vêem a velhice se aproximar, por isso têm pressa, por isso repetem seguidamente que querem mais tempo, por isso correm. A velhice soa um fardo: numa sociedade em que "velho" é ofensa, e em que juventude é valor absoluto, não foram críticos o suficiente para fugir dessa valoração absurda e tida como natural, não souberam envelhecer, encarar os anos que se acumulam invariavelmente sobre as costas com serenidade, e na meia idade não sabem lidar com as limitações que o corpo impõe. Talvez por conseqüência de terem assumido esse valor social, nem o corpo nem os desafios que a idade impõe: em certos momentos parecem adolescentes ainda crus da vida - e que apontam seguir na mesma direção quando têm pressa, como se precisassem usar um certo "capital juventude" que têm estocado e precisa ser gasto antes que passe da validade - antes que passem à invalidez. 
Em dez anos estarei eu na meia-idade. Pelo que caminhei até aqui e para onde aponto, também eu terei seguido por um caminho heterodoxo, crítico da sociedade pela metade - o suficiente para pleitear algum sucesso. Também eu tenho pressa, também eu corro - desde já. Após assistir Estudo sobre o masculino, pus a me questionar: fujo da morte ou da velhice?


14 de agosto de 2016



Estudo sobre o masculino: Primeiro movimento from Andreia Teixeira on Vimeo.

domingo, 5 de julho de 2015

Por outras notícias, por outras provocações!

Em seu livro Sociedade Excitada: filosofia da sensação, Christoph Türcke comenta que não é qualquer fato que merece ser notícia, e sim aqueles que dizem respeito a todos - ao menos era assim na Roma antiga, em que eram noticiadas questões concernentes à res pública. Com o advento da imprensa de massa e da indústria cultural - da empresa jornalística -, o que merece ou não ser notícia, que coisas são relevantes ao público ou não, passa a ser alvo de disputa - tanto quanto aquilo que é noticiado. Na pressão por vendas, a imprensa corporativa não hesita em dar relevância a temas irrelevantes - mas que atraem o público -, e não tem pudores em ser seletiva nos assuntos da res pública que devem ser considerados importantes.
Além desta necessidade de sobressair, Türcke destaca outros dois denominadores comuns da notícia em nosso tempo: deve ser nova e deve ser compreensível. Este último aspecto implica na simplificação da realidade, em tornar um assunto complexo em familiar ao grande público, em algo quantificável, em uma imagem - ou seja, em algo próximo da linguagem publicitária: que demande o mínimo de atenção e esforço mental. Sobre a necessidade de ser sempre nova, algo merecedor de ser notícia em um dia deixa de sê-lo no dia seguinte se não houver desdobramentos que o justifiquem. Ao cabo, a lógica da notícia acaba sendo invertida: "a ser comunicado, porque importante" a ideologia apregoa, sub-repticiamente, que "importante, porque comunicado".
Tudo isto mostra algumas das dificuldades da imprensa alternativa, tanto na questão do conteúdo quanto da forma: como impôr pautas no debate público, quais pautas postas pela Grande Imprensa merecem ser discutidas; de que modo fazer isso?
Não resta dúvida que as novas tecnologias têm alterado nossa percepção: cada vez é mais difícil manter a concentração em um longo texto enquanto links para assuntos relacionados surgem aos borbotões em todos os lados da tela do computador ou do celular. Isso justificaria reduzir a análise a um tuíter, a um slogan publicitário, a uma palavra de ordem? Coxinha e petralha são dois exemplos de "conceito-síntese" que permitem uma crítica em uma linha: enuncia-se o "descalabro" ou o "desrespeito" e avisa que é coisa de petralha ou coxinha. No que isso contribui para o debate?
Ademais: devemos aceitar como notícia apenas o que está candente? Estamos estarrecidos com a votação da PEC da maioridade penal, mas não podemos esquecer que ainda correm a reforma política e a lei da terceirização. Assim como rebatemos o que a Grande Imprensa nos faz lembrar diuturnamente, não podemos sucumbir ao esquecimento seletivo que ela - e o ritmo alucinado da timeline do Fakebook - nos propõe.
Provocar, mas não pela provocação rasteira veiculada na Grande Imprensa e repetida alhures, que apenas reforça posições e incita o ódio. Por uma provocação que nos desestabilize da nossa zona de conforto, que critique também o ponto onde estamos. Por uma provocação que nos convide a repensar e a rediscutir - e nos incite a agir.


05 de julho de 2015

sábado, 28 de março de 2015

Frenético, alucinado, heterônomo: o corpo coagido [diálogos com a dança]

No centro do palco surge o dançarino em uma dança frenética, no ritmo da música eletrônica que toca alta e das luzes que piscam e se movem - não como estrobo, que parcela o movimento, mas vindas dos lados e de trás, fazendo com que tenhamos dificuldade em nos centrarmos naquele corpo que se apresenta genérico, se movendo sem sair do lugar. A música do tempo infinito. Me vem à mente o livro do psicanalista Tales Ab'Saber sobre a cultura eletrônica despontada sob o sol dos paradigmas neoliberais.
Acontece que O silêncio e o caos, do pernambucano Dielson Pessoa, não se propõe a falar, num primeiro momento, de cultura clubber: a obra foi concebida a partir do episódio de um surto psicótico do autor, em dois mil e dez, e dos quatro anos que se seguiram de tratamento.
Loucura, é disso que O silêncio e o caos trata - a questão é saber sobre qual loucura ele fala, de quais loucos.
Identifiquei nove momentos da coreografia. Do movimento solitário e frenético de um corpo genérico, Dielson desce à platéia, como quem almeja o encontro com o Outro. O sorriso vidrado e os movimentos estereotipados ininterruptos impedem um contato que não seja superficial e fugaz. Ele reclama cansaço, mas não pára - como se fosse obrigado a seguir sempre em movimento, sempre alegre. Dança pela platéia, retorna ao palco.
Como se a droga que usou estivesse perdendo efeito, ele vai diminuindo o ritmo, os gestos vão se sexualizando. Emerge um corpo andrógino, que logo se assumirá feminino - o corpo, não a pessoa. A feminilidade é interrompida por um corpo masculino antagônico: a marcha, a continência, o falar grosso. É no seu oposto que o protagonista afirma seu desejo. Dessa contradição parece emergir sua loucura: após isso ele pega um tecido, amarra à cintura - tem uma saia -; a seguir põe-no sobre os ombros - o transforma em manto - e proclama "eu sou o imperador!". No fim, cobre a cabeça e lhe resta a coberta com a qual se escondem os miseráveis. Arranca-a, faz o sinal da cruz, grita - "essa é a minha natureza!".
Delira. Afirma sua individualidade, sua desrazão o faz almejar ser sujeito numa sociedade reificada. Gesticula agressivo, fala sozinho, discute com seus espectros, desafia suas alucinações: "então me mata! Então me mata!". Não se acomoda em lugar algum - não sabe se fica no palco, se fica na platéia. O corpo colapsado não consegue mais seguir o ritmo da música - que segue alta e intensa - e das luzes - cujos focos seguem piscando de diversas direções. A fissão entre o corpo do artista e o espaço que o rodeia causa um incômodo na platéia, que até então mergulhava ela também no ritmo alucinado da música e dos movimentos. Também eu colapso, acompanho o desfazer de Dielson, que não consegue mais acompanhar o ritmo imposto pela música.
Ele pára, se ajoelha, chora, ri. A música e as luzes dão uma pausa. Os gestos se tornam mais leves - segue a necessidade do movimento -, perdem aquela carregada carga sexualizada do início. É como se tentasse se descobrir, para além de rótulos, para além do provar para o Outro. Porém ainda há o Outro nessa busca solitária. Ele pergunta: "é aqui, deus, que você quer que eu fique?" - eu me questiono: quem é deus, que Dielson, como tantos outros, evoca? Com quem se dialoga quando se questiona as alturas? Ele parece achar seu lugar numa réstia de luz, vinda de detrás de grades.
A música eletrônica retorna, num ritmo mais tranqüilo, longe das batidas impositivas do início. Dielson já não traz o sorriso vidrado - sua face pode variar de expressão. Ele vai diminuindo seus movimentos, até calmamente parar. Uma pausa de quem reflete, de quem decidiu ficar parado, não de quem é coagido a ficar assim. Ele ensaia não mais movimentos, mas posições - de como se pôr diante desse mundo alucinado que nos força a nos movermos sem sentido e até a exaustão?
O final é redentor para Dielson - não para nós. Nós saímos da sala Jardel Filho para seguirmos dançando o ritmo alucinado que um mundo louco nos impõe - até nosso colapso. Ou até termos coragem de enfrentá-lo para afirmar, sem nos violentar, nosso desejo de nos descobrir e de estar com o Outro.

28 de março de 2015.


segunda-feira, 16 de março de 2015

Uma conversa banal sobre o 15 de março [Qual gigante acordou?]

Dois respeitáveis senhores, bem vestidos, sem espalhafato, num mercado da zona cerealista, em São Paulo, conversam sobre os protestos contra a Dilma, no dia anterior. São contra o PT, e isso soa óbvio. Na ala de bebidas do estabelecimento, talvez parte da explicação: o governo que diz que a inflação está sob controle, como justifica um reajuste de quase vinte por cento em dois anos, em uma garrafa de conhaque Louis XIII: de nove mil e quinhentos para onze mil e duzentos reais (nunca tinha visto tudo isso de número em víveres, o que muito me impressiona, toda vez que vou a essa venda)? 
Mas é a conversa entre ambos que realmente me impressiona:
Viu a Dilma, ontem? Tomou no cu - fala, polidamente, o primeiro.
Pois eu achei é pouco: tinha que queimar ela em praça pública - responde, muito cordato, o segundo.
E eu com meus botões me pergunto como falar em democracia com gente que tem mentalidade da época da inquisição medieval.

16 de março de 2015

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Então prove!

Os mais jovens talvez não saibam, os mais velhos (e mais velhos aqui quero dizer os mais velhos que os mais jovens, não apenas os antigos) talvez não lembrem, mas houve um tempo em que as pessoas não acreditavam em tudo o que se falava. E nem faz tanto tempo assim, coisa deste século, mesmo - antes da internet e do Fakebook, principalmente. 
Talvez fôssemos menos ingênuos, ou menos burros mesmo (e a comparação é com essa mesma geração nos dias de hoje), ou mais desconfiados, de qualquer forma não era raro que chamássemos pra chincha quando achávamos que havia algum chuncho na história (e agora desenterrei dois termos que eu usava século passado). "Então prove!", era a expressão de desafio, dita sempre em voz alta e com firmeza. Já éramos de uma época bastante decadente: enquanto na antigüidade os santos duvidavam de deus e deus duvidava dos homens, e pediam provas uns dos outros para acreditarem; ou mesmo fora religião, punham o loroteiro à prova em latim - "hic rhodus, hic salta" -; século passado acreditava-se com base em qualquer autoridade chinfrim, sem questionar a mesma: "o padre falou que masturbação é pecado", "foi o doutor quem disse que punheta dá pelo na mão e diminui a virilidade" (no caso dos rapazes), "saiu no JN que o Lula vai obrigar as pessoas a dividirem sua casa, seu carro, seus pertences e seus filhos com os pobres, vindos diretamente da favela para acabar com a civilização". Nos litígios entre pessoas comuns, quando não se podia apelar à televisão ou aos santos, na falta de provas, ninguém acreditava. Os que acreditavam, em algum momento acabavam caindo no velho golpe do baú. Hoje, qualquer meme no Fakebook começando com "isto é um absurdo" as pessoas acreditam e repetem. 
No ensino médio eu tinha um colega que ganhou o apelido de Forrest Gump, por sempre ter histórias e nunca ter qualquer prova. Uma vez ele contou que estava com um amigo, brincando de tiro ao alvo, sem querer a arma disparou e acertou esse amigo, fazendo com que o osso do antebraço se enroscasse no do braço. A turma já começava a tirar sarro quando interrompi: tinha ouvido essa história saindo da sala de cirurgia, quando quebrei o braço e tive que pôr um pino: ao ser informado do que o esperava a seguir, um baleado pelo pai ou tio, sem querer, o ortopedista questionava como ele tinha conseguido enroscar a ulna no úmero. Pelos meu pinos no braço, a turma deixou passar essa história como verdadeira. 
Na faculdade, ainda na de psicologia, lembro de uma discussão no bandejão sobre não sei o que, mas que fez com que meu amigo, para provar que a história de que dinheiro é sujo é falsa, conseqüência do catolicismo medievo, jogou uma caneta no chão, perto de um dos banheiros, onde passavam além de pessoas, cachorros, esperou um breve tempo, pegou de volta a caneta, pôs na boca, e concluiu, orgulhoso: "tá vendo? Aposto que caneta você não tem nojo de pôr na boca, apesar de ela cair no chão e sabe-se lá mais o que". Uma péssima prova: não só não me convenceu que dinheiro não é sujo como levou um tempo para me convencer de que ele não era tão relaxado quanto pareceu ser aquele almoço. De qualquer forma, tentou provar. 
Estes novos tempos, admito, não são de todo ruim. Posso contar essas duas história e, não fosse eu avisar aqui, neste último parágrado, ninguém iria pedir prova alguma, e acreditariam nelas sem mais, assim como até agora acreditavam que pus pino no braço em noventa e sete (fruto de uma queda após uma enterrada) e que fiz psicologia (onde tive esse amigo da caneta, o qual possuía dois gigantescos ratos de laborarório em sua casa). De qualquer forma, ainda acho melhor a época que nos desafiávamos: então prova!

16 de fevereiro de 2015

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Entre cobras piercings e o nada

Encontrei o livro numa dessas queimas de estoque da velha ortografia, livros por dez reais, que pipocam em São Paulo. Não tinha qualquer referência da autora, e a editora - Geração Editorial - tampouco ajudava. Na quarta capa, o aviso de "um best-seller internacional eletrizante" piorava ainda mais a situação. Resolvi arriscar a compra ao ler na orelha que Cobras e piercings, da japonesa Hitomi Kanehara (uma bonita rapariga, por sinal), havia ganho o prêmio Akutagawa.
Cobras e piercings chega a ser perturbador, até mesmo a quem já encarou 120 dias de Sodoma, do Marques de Sade - me parece difícil conseguir passar incólume ao fim da leitura: algo cutuca.
Escrito aos dezenove anos, o livro me fez lembrar do primeiro romance do gaúcho Daniel Galera, Até o dia em que o cão morreu. Duas histórias adolescentes - a do brasileiro extremamente banal -, que retratam uma geração sob a égide de Thanatos: o vazio da vida, a falta de sentido, a pulsão de morte, o desejo do nada.
Lui, a personagem principal, dezenove anos, poderia ter uma vida confortável, não tem problemas familiares, seu estilo é o de patricinha - apesar de recusar o rótulo -, mas abandona tudo por... por nada, para nada. Por fastio e tédio vai viver no underground japonês, em meio a adolescentes cujo visual agressivo esconde insegurança e desejo de carinho, de colo, em que assassinatos podem acontecer sem maiores remorsos. Ela se interessa por um rapaz antes por sua língua bifurcada, e passa a ter o desejo de uma língua igual - depois acrescida do desejo de uma tatuagem de um kirin - como objetivo de vida. Parte do seu relato é marcado pelo aumento no tamanho dos alargadores da língua. Vai viver junto com o rapaz, que a sustenta, e sua vida ganha alguma estabilidade - o que implica que ela não precisa se prostituir para sobreviver e pode beber o dia todo, todo dia. Tanto a ampliação do furo na língua como a tatuagem, percebe-se a certa altura, não são exatamente o que Lui busca: seu desejo é antes de tudo pelo reconhecimento do Outro - é a exclamação de admiração das pessoas próximas. Contudo, parece viver em uma época em que só conhece relação entre sujeito e objeto, não entre dois sujeitos. E dessa relação sujeito-objeto (senhor-escravo), ela exerce seu caprichos sobre seu namorado, enquanto se submete em um relacionamento sadomasoquista com seu tatuador. O alheamento sobre o outro é tamanho - seu interesse parece ser unicamente que Ama e Shiba a legitimem enquanto ser vivo -, que ela sequer sabe o nome verdadeiro de seu namorado e seu amante. A protagonista admite que suas "idéias e valores se situam no mesmo nível das de um símio", sem que isso a perturbe, sem que mereça um segundo momento de reflexão. No seu caso com o tatuador sádico, reconhece que "só podia perceber que continuava viva quando sentia dor" - dor essa que excitava ambos -, e que seu "desejo sexual se parecia com o cão das experiências de Pavlov" - reflexos condicionados, sem desejo autônomo. O tédio que a leva ao submundo, a leva também ao tatuador sádico, e acaba por dominar também sua vida nesse submundo: o tédio não advém da vida certa e regrada, não advém da vida louca e sem limites, o tédio é uma constante da qual ela foge, comprometendo seu futuro em nome de nenhum presente, seu desejo é o de morte, não porque odeia a vida, mas porque não vê sentido em continuar viva - ocorre que tampouco vê sentido em morrer.
Para além do enredo de assassinatos e sadomasoquismo, Kanehara retrata a minha geração e a seguinte, que vive entre piercings, tatuagens, auto-mutilações - do corpo, de ações, de sonhos, do futuro -, e a fuga do nada que a atrai.


São Paulo, 08 de dezembro de 2014.