quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Casa Mathilde - Tabacaria (Revisited)

Da janela da minha baia, no meio do Edifício Martinelli, observo a praça Antônio Prado abaixo. Faz frio e a garoa fina que caía quando cheguei já cessou. Transeuntes passam, todos bem agasalhados - alguns usam máscaras. Talvez seja o clima, talvez seja meu estado de espírito, o ritmo me parece mais lento que o habitual - perguntarei à Rose quando ela chegar. Defronte a falida Casa Mathilde, dois homens com colete de “Compro ouro” conversam ao lado de uma pessoa que dorme sob um guarda-chuva. Um vendedor de artesanato acabou de chegar e começa a montar seu tabuleiro. Apesar de fechada, a doceria tem hoje as luzes acesas. Deve ser dia de faxina, feita por hábito, para retirar o pó do seu fracasso que repousa sobre os móveis (fracasso da loja não diante do sistema capitalista que a devorou, que isso é natural, mas diante do tempo que a levará ao completo esquecimento em breve, assim como fará comigo e com você que me lê). Desde que me ponho a observar diariamente a praça, nunca houve, não há e não parece que será tão cedo que haverá uma pequena do outro lado da rua a comer chocolates, tirar seu papel de prata e me lembrar de como Álvaro de Campos levava a vida (só ele?). Na verdade, quase não há crianças neste canto da cidade, salvo as bem pequenas, acompanhadas de seus pais - é como se a infância fosse proibida nas ruas de São Paulo, assim como os outdoors. Ainda que houvesse uma criança a sair da Casa Mathilde, não sou o poeta para poder cumprimentar Esteves ou quem fosse o dono do estabelecimento lá embaixo e aqui em cima rascunhar qualquer genialidade - que já sonhei ter, admito. E de todos os sonhos do mundo que já tive em mim, hoje tento buscar algum ao qual me agarrar que não seja uma quimera juvenil - reconheço de antemão que isso não é mais que fuga de me encarar no espelho sem o dominó errado que vesti (eu, que nem sou de carnaval) e me ver tristemente envelhecido, levando a vida de luto em luto. Desreconhecer-me ou redesconhecer-me? Estou mais para um Bernardo Soares desorganizado que não conseguiu sequer se realizar na escrita. É quinta-feira, ainda posso pôr o vazio que me preenche na conta do trabalho e do cansaço do dia dito útil, em que me sinto um inútil em troca de receber parcos vis metais no fim do mês - começa na sexta e se alonga por todo o fim de semana o vazio de vida que me sufoca e é de responsabilidade minha. Poderia cantar que estou vencido, que estou lúcido; mas não sei a verdade e sigo vivo (o que não deixa de ser "estar para morrer"). No máximo, há uma despedida da irmandade com minha casa de infância, na ida a Pato Branco de daqui uma semana. Que serei eu sem ela, eu que não sei o que sou? Busco metafísicas, mas a dureza do mundo se sobrepõe - talvez o fato de eu não estar mal disposto. Me sinto estrangeiro do mundo e de mim mesmo, incapaz de entender de fato o que se passa nessas pequenas alegrias que meus iguais compartilham como óbvias. Tudo me pesa. Consegui desde muito me esquivar das pessoas em linha reta, mas meus caminhos com os demais tortos do mundo apenas se tangenciam por algum tempo, depois se afastam - em algum desconhecido rumo pela estrada de nada. Na ausência de chimarrão, tomo um chá mate enquanto escuto a quinta do Mahler. Queria que o universo se reconstruísse sem ideal nem esperança, mas há uma teima de minha parte e enxergo nas notas da sinfonia um jardim florido no Hades. Rose chegou, eu a cumprimento.

15 de setembro de 2022

domingo, 11 de setembro de 2022

Amores, idealizações e devires [Diálogos com o cinema]


Entrar num relacionamento amoroso íntimo é, em boa medida, se perder: daí que amar não seja um mar de rosas e traga sempre uma dose de angústia. "Dar o que não se tem a quem não o quer", nos diz Lacan: nos entregar em nossa incompletude a um outro que vai não nos completar, mas ressaltar essa falta. Aceitar o outro fora das nossas idealizações e nos enxergar fora das nossas idealizações - com o medo do outro não nos aceitar, isso quando não somos nós mesmos não nos aceitamos sem nossas fantasias. Como nos versos de Álvares de Campos:

“O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.”


Retomo os dois filmes de que falei em minha última crônica [bit.ly/cG220902], Uma relação pornográfica, de Frédéric Fonteyne (1999); e The Lunchbox, de Ritesh Batra (2013).

Como sustentar o desejo e a relação com o outro, quando a idealização cai? É o hábito que sustenta? Que desejo é esse que se torna mera rotina? O quanto conseguimos ter relação com alguém humano, demasiadamente humano - ou "em linha reta", para seguir com Campos/Pessoa? Caída a idealização do apaixonamento inicial, não raro criamos novas e novas idealizações, para esconder os defeitos que emergem - como se nossa fantasia fosse incapaz de lidar com o real.

Em Uma relação pornográfica, há uma passagem que vai nesse ponto da queda da idealização do outro, e como sustentar o desejo depois disso. Quando o entrevistador pergunta se não se cansava dos encontros sempre iguais, ele responde que nunca iria cansar, porque era bom. E arremeda: estava se habituando a ela. Temos aqui o amor romântico apresentado ao mesmo tempo como hábito e como extraordinário. Contudo, quanto tempo sustentamos o fora do ordinário, sem incluí-lo no banal, sem contaminá-lo com nossas pequenas insignificâncias - a dor de cabeça, o dia ruim no trabalho, a notícia que abala?

Mais interessante, contudo, é a forma como a queda da idealização que ele tinha dela foi compensada com uma abstração da mulher: “No início a achava bonita. Depois comecei a ver os defeitos. Aí seus defeitos desapareceram, sua beleza desapareceu”. E isso enquanto, diz ele, estava se habituando a ela. A pessoa amada que desponta como figura do fundo, de repente volta a ser fundo - uma primeira questão: esse tipo de amor permite que novas figuras emerjam desse novo fundo? 

E quem é esse outro que não possui defeitos, que se for preciso, apagamos a beleza, em nome da recusa das pretensas feiuras? Para mim, a construção mais bonita desse trecho é reconhecer os defeitos e ver neles parte da beleza, talvez a própria condição para que esta exista - é nisso que o outro foge do padrão, que deixa de ser genérico, que deixa de ser ideal e passa a ser real. O que teme descobrir o homem nessa sua recusa da mulher real? Teme o que vai encontrar nela ou em si?


Em The Lunchbox, a idealização que o homem não sustenta é a de si próprio (diante, é claro, da idealização que faz da mulher): ao ver Ila no restaurante, Isaajan se reconhece como alguém mais velho, sem atrativos, a ponto de abdicar até mesmo cumprimentá-la pessoalmente, de correr o risco de se ver idealizado por ela e incapaz de sustentar essa imagem. O desejo pelo outro não chega a morrer com essa desidealização de si (como parece temer que aconteça o homem de Uma relação pornográfica), mas sua realização é impossibilitada por isso - a relação se torna impossível de seguir. E que desejo de ideal é esse?

Há ainda, no filme indiano, um outro trecho sobre a perda de si (ou seria a descoberta de si, ou ao menos de que não se era quem sustentava ser?) nesse espelho que pode ser o amor.

Na hora em que ficam sabendo da notícia do suicídio da mulher, junto com a filha, Ila se pergunta o que a mulher teria pensado, com teria agido, e se imagina nessa ação. Tira suas jóias, pulseiras, brincos, cordão de casamento, inventa uma resposta à pergunta da filha do que vão brincar, enquanto a leva para o alto do prédio. No fim de sua carta a Fernandez, pergunta se não deveríamos ter coragem de pular também. 

Quando, numa das últimas cenas do filme, depois de ir atrás de Isaajan em seu serviço - que havia se mudado para Nasik tão logo se aposentara -, ela repete os atos que imaginara da suicida: tira as jóias, brincos, pulseiras, cordão de casamento. Porém acorda de manhã como se fosse um dia normal, escreve a carta a Fernandez - que não terá como, a quem enviar -, conta que vendeu suas jóias e no retorno da filha da escola vai com ela não se jogar do telhado, mas pegar o trem para o Butão.

Há uma espécie de morte aí, de suicídio - a morte, talvez, tivesse acontecido há muito tempo, mas o hábito impedia de enxergar o que de fato acontecia. Seu apaixonamento por Isaajan e a impossibilidade de realizar a faz decidir abandonar a vida, porém não a vida real, e sim a simbólica: aquela que ela sustentava para a sociedade, em nome de sabe-se lá o que - uma promessa de felicidade que se algum dia aconteceu, há muito não se realizava mais -; e agora decide buscá-la no país que se utiliza da "Felicidade Interna Bruta" para medir suas ações políticas. 

Esse amor traz uma perda de sentido de muito do que se vivenciava até então. Isso não quer dizer que a vida até então vivida não tivesse sentido, ainda que, geralmente, quando o sentido se desfaz, parece nunca ter feito - nossa corrida vã atrás dessa crença de que haveria um sentido superior, que daria conta da totalidade da vida e da existência (resquícios de uma promessa de deus nunca efetivado).

Aquele ideal romântico de amor como algo que faria o sujeito se opôr à sociedade aqui se mostra mais pedestre e mais real: se opõe a esse círculo em que se vivia, mobiliza a ir em busca de outras paragens, desfaz sentidos sem necessariamente que os novos sejam mais amplos ou firmes - ou mesmo conhecidos. E a se pensar, com Camus, que os sentidos da vida somos nós quem os criamos, a cada momento, amar seria esse nos atirar na angústia da criação de devires. E é sintomático que Ila não vá atrás de Fernandez: o amor entre eles abriu novas possibilidades, porém não as encerra.


E aqui termino dialogando novamente com meu último texto: que amor é esse que tanto se apregoa e tantas pessoas buscam? É de fato esse amor que faz questionar a si e ao seu entorno, ou é antes um amor que se fecha num narcisismo míope, que acha que atravessar o que passar pela frente em nome de seu ego teria qualquer coisa de revolucionário? Estamos vivenciando, experimentando e defendendo um amor que abre devires e amplia horizontes?


11 de setembro de 2022