quinta-feira, 24 de outubro de 2002

A questão das cotas nas universidades I

Nestas eleições, em meio a discussões sobre PIB, empregos, metas de inflação, FMI, dólar, superávit primário, Alca, mentiras e diplomas, os atores da grande festa da democracia comentaram qualquer coisa acerca de cotas para negros nas universidade públicas.
Garotinho já havia instituído, quando governador do Rio. Ciro é contra. Lula, no debate da Globo, gaguejou ser a favor. O Serra parece ser contrário. O Zé Maria, eu não sei, e para o Rui Costa, nada de cotas, porque todos poderiam entrar na universidade.
Entretanto, pouco me interessa saber qual a posição desses ilustres demagogos, citei-os apenas por não achar jeito melhor de começar esta crônica. Não deixa de ser interessante, todavia, notar que essa questão chegou a ser mencionada numa campanha que quase só se falou de temas econômicos e de violência. Seja quem for o eleito, o tema é importante demais para ser decidido em gabinetes de tecnocratas; é necessário que seja discutido com a sociedade.
Quando se põe a questão das cotas para negros acaba surgindo, invariavelmente, outras duas: cotas para negros ou cotas para pobres? Se for para negros, como saber quem é negro no Brasil? É mais lenha na fogueira.
Os que defendem cotas para negros argumentam que se trata de corrigir, em parte, uma injustiça cometida com a abolição da escravidão (para não voltar muito na história) e perpetuada até o atual governo dos intelectualóides, que há quase oito anos brincam de governar Além dessas, muitas outras questões surgem, mas a solução entre aqueles que vêem a segregação na universidade pública um problema costuma ser unânime: melhorar o ensino fundamental e médio públicos e ampliar as vagas nas universidades públicas. As cotas seriam um paliativo, enquanto os alunos negros (ou os da rede pública em geral) não tiverem condições de competir com os da rede privada.
Sou contra as cotas, mas não sou inflexível nessa minha posição Defenderia-as caso soubesse que esse paliativo não viria a se tornar permanente, camuflando o problema dos ensino fundamental e médio. Claro que se trata de uma opinião de alguém branco, que sempre estudou em escola particular e que já está em uma universidade pública.
Ao meu ver, as cotas, por terem todo jeito de provisório permanente, acabam trazendo mais prejuízos que benefícios:
1) O estigma de cotista: entrou como cotista, logo é mais fraco que o não cotista. Não vai ser muito difícil chefes de empresas, pessoal de recursos humanos chegarem a conclusões semelhantes, desmerecendo, assim, o profissional que conseguiu entrar na universidade por tal meio, ou mesmo que apenas se encaixe no grupo dos cotistas, sem sê-lo. Se a cota for para negros, pouco importa que fulano tenha passado em primeiro no vestibular; é negro, é cotista, não é tão bom. O mesmo se a cota for para alunos da rede pública: na disputa por um emprego, ao serem analisados os currículos dos aspirantes, caso tenha sido o infeliz estudante de escola pública, não será muito difícil ser taxado de cotista, e se é cotista, não é tão bom. Resultado prático: aumento do preconceito e criação de uma classe universitária de segunda categoria, que terá de se contentar com salários mais baixos.
2) Queda na qualidade do ensino: um aluno sem uma base adequada, terá dificuldades para acompanhar o ritmo da faculdade. Será necessário desse aluno um esforço muito maior para conseguir se igualar àqueles que foram considerados capacitados pelo vestibular. Se não, restam dois caminhos: ou o professor diminui o ritmo das suas aulas, ou o aluno aceita atrasar na universidade, ou mesmo desistir. Nisto entra o problema de que esses alunos, muito provavelmente, tenham necessidade de trabalhar para se manter, e de entrar logo no mercado de trabalho; sobrando, portanto, ao professor, nivelar a turma por “baixo”, como é de praxe, mas no caso o baixo seria ainda mais baixo.
3) Menos oportunidade na universidade: na linha do raciocínio anterior, os professores tenderiam a dar preferência aos alunos que fujam do padrão dos cotistas, nas bolsas de iniciação científica, importante instrumento na formação da elite científica do Brasil.
4) Formação de uma elite entre os negros: no caso da cota ser para negros, a primeira leva que entrar na universidade se tornará uma elite dentre os negros, já que seus filhos terão condições de estudar em escolar particulares no primeiro e segundo graus, e competirão com negros que não tiveram tal oportunidade. No caso da cota ser para a rede pública, esse problema não há, mas há o de alunos despreparados entrarem na universidade.
5) Dificuldades ainda maiores para os brancos pobres: no caso das cotas serem para negros, os “brancos” pobres terão abolidos quaisquer chances de entrar numa universidade.
E por que toda essa minha preocupação em “manter o nível” da universidade? A resposta é um velho clichê: é com um ensino de qualidade e com produção científica, que um país constrói seu futuro. A universidade pública brasileira, grande (e praticamente única) produtora do conhecimento científico no país, já está sucateada, num nível alarmante (parte da culpa é dos próprios alunos, membros da nossa elite burra); se o nível dos alunos decair ainda mais (não se entra aqui no mérito do aluno, mas da escola que o formou) ela pode demorar para se reerguer – tal como ocorre hoje com o ensino fundamental e médio da rede pública –, e isso seria um duro golpe no sonho de construir uma nação decente.

Pato Branco, 24 de outubro de 2002

A questão das cotas nas universidades II

Para não dar trela às más línguas dos bons observadores, que dizem que eu apenas critico e nada proponho, tenho algumas sugestões para o problema, que vai no mesmo caminho das cotas, mas, ao invés de haver cotas para a universidade pública, proponho cotas para alunos pobres, da periferia, em escolas particulares. 10%, 20% de toda sala de aula de escola particular deveria ser preenchida por alunos carentes, os quais receberiam gratuitamente o material didático. Esses alunos seriam cadastrados pela prefeitura, de quem também receberiam transporte, uniforme e alimentação. A princípio pode parecer que seria a mesma coisa que as cotas na universidade, porém as diferenças são muitas:
1) Não haveria o estigma de cotista, dado que o aluno, apesar de cotista na escola, na universidade entraria apenas por méritos próprios, e teria condições de acompanhar as aulas.
2) Haveria o choque entre dois mundos: o dos ricos, sempre trancafiados em condomínios fechados e em shoping centers, e o dos pobres, onde, quando muito, há luz elétrica. Isso poderia criar uma certa rixa entre esses dois grupos, mas também despertaria para a realidade social aqueles das camadas mais abastadas.
3) A classe média, num primeiro momento, seria prejudicada, já que as escolas se veriam obrigadas a aumentar as mensalidades. Isso forçaria muitos alunos classe média a se transferirem para a escola pública, e como a classe média tem mais voz que a pobre, haveria um movimento sério e verdadeiro de reivindicação da melhoria do ensino público. Atendida essas reivindicações, com a escola pública perto do nível das particulares, muitos alunos destas transfeririam para a pública, aumentando a pressão para a sua melhoria, forçando um aumento de mensalidades nas particulares, e assim num círculo vicioso, até que a escola particular voltasse a ter a mesma conotação que tinha nos anos 50, 60: um ensino diferenciado, não em qualidade, mas em espécie (mais religioso, por exemplo).
Claro que o sistema de cotas, seja onde for, é um paliativo. No sistema que proponho há a vantagem de formar um aluno desde a sua base, e não apenas na fase final da sua educação tentar consertar o mal ensino que ele teve. Não sei se isso seria possível com a lei atual, mas isso não é problema, com vontade é possível fazer o que for preciso (não chegaram mesmo a mudar a constituição para permitir a reeleição?). O maior problema é que os primeiros calouros apareceriam somente daqui dez anos, e certos números no Brasil assustam, como o citado por Elio Gaspari, de que a proporção de negros nas universidades federais do Brasil é menor do que na África do Sul, na época do Apartheid; certas horas parece ser necessário o paliativo que for para tentar minorar, um pouco que seja, esse problema. Mas aquilo que é feito pensando apenas no curto prazo acaba, muitas vezes, sendo ainda mais prejudicial no médio e longo prazo.
Claro, como eu disse anteriormente, trata-se de uma opinião de um branco, que estudou sempre em escola particular e já está numa universidade. Se perguntar a um negro do terceiro ano do ensino médio há grandes chances da resposta ser diferente, e com argumentos melhores que os meus.

Pato Branco, 24 de outubro de 2002