domingo, 23 de fevereiro de 2003

Um melão!

Aviso aos distintos que, mesmo tendo outras tarefas a cumprir, costumam ler minhas crônicas, que a presente está bem auto-ajuda: superficial e inútil. Aviso logo de antemão para que não se sintam lesados.

Conversava eu com um amigo este final de semana que estava passando por uma crise existencial. Perguntava ele, que sentido tinha a vida. O que ele precisava fazer para chegar no final de vida e falar que ela tinha valido a pena.

Digamos que com minha pouca idade e grande imaturidade, experiência é algo que não possuo nem para me satisfazer, o que dizer para dar conselho aos outros. Mas assim mesmo o metido aqui resolveu palpitar.

Passei por uma crise existencial no segundo semestre do ano passado (Marx explica o porquê de eu citar ‘segundo semestre’). Uma hora me detive, olhei para os meus pais e me perguntei, mas qual o sentido da vida? Será ela simplesmente nascer, crescer e morrer? Não acredito em explicações metafísicas nem em missões. Ainda que acreditasse, no que embasar minha crença? Como saber que eu estava realizando corretamente a minha "missão"? Passei mais de três meses matutando em cima disso e no final não cheguei à resposta alguma. Mas aprendi muito, sem dúvida. Me conheci melhor (para isso foi inestimável a ajuda de alguns amigos, que tiveram muito saco para agüentar minhas viagens depressivas-intimistas). Como comentei, não cheguei a resposta alguma quanto ao sentido da vida, mas cheguei à conclusões muito importantes; e já dizia Guimarães Rosa: o importante não é o final, mas o trajeto até ele (não são essas as palavras, mas é essa a idéia).

Depois de meu amigo dizer um pouco das suas angústias quanto ao futuro, quanto à vida, ao que fazer com ela, ao aproveitá-la, deixei ele um tanto confuso com uma pergunta que lhe fiz (dizem que as perguntas são as respostas que um dia necessitaremos) – pergunta essa, diga-se de passagem, que também me deixara confuso, quando a formulei. Simples como um livro do Paulo Coelho, mas, creio eu, profunda como um de Guimarães: "E qual o sentido de uma flor?" A resposta, após um instante de perplexidade foi a esperada: "Como assim, uma flor?". "Uma flor, qual o sentido de uma flor", insisti. Físico, ele se atrapalhou mais um pouco, até apelar para sua área: "Tendo o que como referência?". Mas eu não queria referência alguma, queria o sentido em si, como aquele que ele buscava para a vida, afinal só poderíamos discorrer com propriedade sobre a vida se pudéssemos nos afastar dela – o que, em vida, é comprovadamente impossível.

Ele não conseguiu achar resposta, e apesar de ter compreendido o ponto que eu queria alcançar, não concordou comigo. Sugeri então que aproveitasse os pequenos detalhes da vida, que esquecesse das grandes revoluções, porque elas aparecem só depois que já está tudo pronto para que elas aconteçam, e esse "tudo" é feito de inúmeros pequenos detalhes, detalhes insignificantes e aparentemente sem valor. A resposta é que ele se interessava pelos detalhes. Como bom filósofo, duvidei: notar os detalhes é uma coisa, valorizá-los é outra. Citei um exemplo um tanto absurdo, mas real: um melão.

O que tinha demais esse melão citado? Absolutamente nada. Era um ordinário melão, que não faria diferença alguma para alguém que tem sempre comida e frutas à mesa. Mas um melão foi um dos meus grandes acontecimentos da semana passada. Exagero? Pode ser. Como pode ser apenas que minha megalomania das grandes revoluções tenha diminuído. (Atenção! não confundir diminuição da "megalomania das grandes revoluções" com fim das utopias, que utopias eu continuo tendo e julgo-as necessárias, se não imprescindíveis, para a vida).

Na minha crise percebi que eu não possuía rotina Por mais que eu tivesse que acordar todo dia à mesma hora, ir para a escola, para a faculdade, voltar à mesma hora, fazer tudo aparentemente como havia feito no dia anterior, eu não poderia, como Malone, reclamar do tédio. Um melão, um futebol com os amigos, saber da dieta de seis mil calorias das pessoas da idade média, uma borboleta, o começo de uma dieta, uma criança que tenta se equilibrar num patinete maior do que ela, um pôr do sol, uma nuvem em forma de anjo: aprendi a dar valor às pequenas coisas da vida, encará-las como momentos grandiosos, por mais insignificantes que parecessem. Passei a olhar a vida com olhos de criança, como nos sugeriu certa feita Pessoa (esse sim com sapiência e experiência para nos falar muito!). Não descobri o sentido da vida, mas descobri a vida.

Seria esse o segredo para se aproveitar a vida? Com certeza, não; mas estou cada vez mais convicto que dar valor aos detalhes faz parte do caminho.

(Para os espíritos-de-porco de plantão, que argumentariam que já há muito dão valor aos pequenos detalhes da vida: um brinco de ouro, um diamante num colar, um anel de safira, uma etiquetinha escrita "Ferrari" no volante, respondo com um verso do poeta Zeca Baleiro, na ótima música Piercing: "Lugar de ser feliz não é super-mercado").

Por fim, um último comentário sobre o que meu amigo falou: nada mais deprimente que chegar no fim da vida e dizer ‘valeu a pena’, tal como o personagem principal de Beleza Americana. O correto é percebermos isso todos os dias, de preferência em todos os momentos, sejam de alegria, sejam de dor.

Mas costumamos estar tão ocupados com nossos grandes planos para o futuro, que esquecemos de aproveitar nosso presente. Queremos dizer valeu a pena, mas esquecemos que mais importante é dizer (com convicção) vale a pena!

E aí, já pensou qual a função de uma flor?


Campinas, 23 de fevereiro de 2003

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2003

Violência moral é coisa de maricas!

Passar rasteira toda vez que um colega passa, "pedir" parte do lanche no recreio, dar um apelido a um colega. O que tem isso demais? Trata-se de brincadeiras de criança, molecagens que sempre ocorrem nas escolas. Talvez a resposta não seja apenas isso. Demorou, mas finalmente começa-se a falar em violência moral no Brasil. O assédio moral (como pode ser chamado) seria situações de maus-tratos, opressão e humilhação que ocorrem entre colegas – geralmente nas escolas, onde são obrigadas a conviver juntas. São as brincadeiras de criança, brincadeiras "inocentes", que muitas vezes os adultos também participam.

E o que há de mal em apelidar um colega, ou fazer uma traquinagem como passar rasteira nele? São peraltices que não podem ser levadas a ferro e fogo. Os problemas principais são dois: primeiro que isso pode ser traumático à criança que sofre a violência, pode criar bloqueios, problemas de socialização, de auto-estima, entre outros; segundo, que os agressores não estão restritos às crianças: adolescentes e adultos também costumam fazer uso dessa violência.

Não é qualquer um que pode se dar ao luxo de praticar tal violência. Para tanto é preciso ter força, não somente física, mas poder de liderança sobre um grupo. A violência moral serve para garantir ou aumentar o poder e prestígio sobre o grupo, e é praticado normalmente contra "marginalizados", mas pode ocorrer dentro do próprio grupo, quando se escolhe um infeliz para Cristo por ter "orelhas de abano" ou qualquer outro "defeito" passível de gozação.

Não sabia que tinha esse nome, mas sofri na pele a violência moral. Tinha então oito anos e a turma toda, liderada por um colega, contra mim. Todo recreio, brincavam de me perseguir. O problema foi aumentando, aumentando até que pedi para sair da escola. Meus pais conversaram com a professora, com os pais do líder do grupo, e o problema entre mim e ele foi sanado, tendo ele se transformado, no ano seguinte, no meu melhor amiguinho. Por que me perseguia? Talvez porque eu fosse muito quieto, ou por pura implicância. Isso é algo corriqueiro nas escolas e não é necessário nenhum motivo além do "não fui pra cara". Na maioria dos países europeus os ministérios da educação obrigam as escolas a evitar esses atos, o que passa, necessariamente por uma conscientização dos pais.

Felizmente a saída no meu caso foi boa, e serviu para que anos mais tarde, eu suportasse outras violência do gênero sem maiores traumas (vale frisar o maiores).

Exemplos de violência moral que são encarados como normais há às pencas. Eu tinha doze anos e na minha escola havia um garoto, um ano mais novo, que tinha jeitos delicados; coitado... metade da escola tinha como principal passatempo do recreio ir atrás dele vaiando e chamando-o de bicha. A escola nada fez, não chamou atenção coletiva, não escolheu bodes-espiatórios, não conversou com pais, e o garoto não durou um ano no colégio.

Uma grande contribuição à violência moral é o cinema e os programas de tevê estadunidenses. Na sua maioria são programas de um preconceito nojento e um dualismo mocinho-bandido tosco no limite. Resultado: quem nunca teve um nerd na turma, sempre sendo alvo de piadas, bolinhas de papel e ridicularizações? No terceiro ano do COC Ribeirão de 2000 um dos "nerdes" da sala foi encontrado se batendo no banheiro. Tenho uma amiga que era taxada de nerde e se pergunta como que fulano ou beltrano, sendo pop, conversa com ela. Brincadeiras super-saudáveis, como se vê.

Mas estamos, por enquanto falando de "iguais". Quando há desigualdade a coisa fica ainda pior. "Me lembrei da empregada que se chama Maria/ Ela me dá comida, me dá roupa lavada/ Mas quando estou em casa ela é sempre humilhada/ Você precisa ver como eu trato a coitada/ Eu a rebaixo, a esculacho, fico dando risada". Os versos do Gabriel O Pensador não precisam de muita explicação. Além de ter que se contentar com um salário baixo e serviços pesados, empregados, faxineiras, serventes, limpadores de latrinas e trabalhadores afins ainda são obrigadas a suportar a humilhação dos seus patrões, dos seus "senhores". Mesmo trabalhadores mais graduados não estão à salvo, basta ter um chefe para haver a possibilidade de sofrer violência moral (por favor, não estou dizendo que todo chefe, nem que a maioria seja assim, mas quero apenas ilustrar que quando há a desigualdade hierárquica há a possibilidade da violência).

Ou seja, a inocente brincadeira de criança se perpetua até a idade adulta. Violência "invisível", mas tão danosa quanto a física, deve ser combatida por todos, o que implica, necessariamente, o reconhecimento dela e a disposição a mudar de atitude (não falo apenas dos agressores, mas às vezes você pode estar, de certa forma, estimulando um).

Aceitar as diferenças é um primeiro passo. Que tal começar hoje?


Campinas, 21 de fevereiro de 2003