Fazer uma obra sobre
algo que não se vivencia nem vivenciou pessoalmente é complicado,
mas não impossível - há quem argumente a questão do "local
da fala", legítimo, mas se a arte se restringisse ao que foi
experienciado em primeira pessoa, já teria há muito sido
substituída por completo pelo divã. Esse escrever sobre o estranho
- e sobre o outro -, entretanto, exige certos esforços - e mesmo
sensibilidades - para não resultar em um fruto descartável. Tomar
conhecimento pela produção "racional" do assunto, como
teses acadêmicas, artigos e reportagens diversas, é um bom começo.
Pesquisar outras formas de discurso sobre o tema, como o literário,
fílmico, das artes visuais, instalações, etc, é outro bom
instrumento. Ajuda também entrar, de alguma forma, em contato direto
com o outro que sofre ou sofreu aquilo sobre o que se pretende
debruçar. Mas esse entrar em contato exige certa porosidade do
artista e um olhar mais atento a sutilezas, que vai do radicalizar o
estranhamento ao tentar se irmanar dessa experiência - se for para
buscar o outro para que esse aprove o discurso que o artista já tem
elaborado de antemão, melhor buscar logo uma tese acadêmica, poupa
o tempo de todos. Certamente há mais formas de ganhar repertório,
mas não nos alonguemos neste preâmbulo.
Cássio Pires parece
ter feito ficado com preguiça de levar a sério essa fase de estudos
e preparação (tempo ele teve, foi um ano de montagem) ao escrever o
texto para Diásporas, da Companhia Elevador de Teatro
Panorâmico, dirigida por Marcelo Lazzaratto - que parece não ter
conseguido perceber que a pretensa universidade do gestual ocidental
é bem específica da cultural do ocidente judaico-cristão moderno,
e não diz respeito a todos os povos, todas as culturas, todos os
tempos.
Diásporas conta
a história de três povos fictícios: um do mar, um do deserto e um
das montanhas, obrigados a migrar em épocas diferentes por culpa de
imperialismos clichês - EUA, Inglaterra e França -, e que terminam
por se encontrar numa mina de carvão abstrata. É dividia em dois
atos, mas possui três partes, que Lazzaratto chamou de movimentos.
No primeiro movimento, sem fala, esboça-se o que seriam os costumes
de cada um dos povos em seus ambientes - danças, festas,
brincadeiras, rituais. Claramente introdutória, deixa a expectativa
de que a partir dali se construirá cada uma das histórias - porque
em si é uma parte fraca, pobre. Expectativa frustrada. No segundo
movimento, agora com fala, temos pinceladas de conflitos internos e
das causas da migração de cada povo. É quando a peça começa a
desandar. O preconceito dos autores é evidente e posto toscamente:
na construção precária e lacunar das frases - beirando o "mim
Tarzan, você Jane" - e na estereotipia exagerada dos
movimentos, notamos que não são apenas povos "primitivos",
e sim que beiram o animalesco - tirando o povo das montanhas, ao que
tudo indica morador de algum sertão da Europa (a se entender pelo
interesse francês em abrir lá um hotel em 1899), que são capazes,
aí sim, de construir frases na sua plenitude, tem até crendices
primitivas e tem-se muito claro que são pessoas e não meio humanos,
meio cabras

(Parênteses
técnico: para ajudar a piorar a peça, mal iluminada do início ao
fim, com cabeças no escuro e um metro de palco de cada lado na
penumbra - e ainda assim utilizada pelos atores. Não sei se foi só
problema de afinação, ou foi de desenho também, tímido em usar
todo o equipamento que o Sesc possui. Como pontos positivos: a trilha
sonora, feita ao vivo - realmente muito boa! -, e a produção
gráfica do programa. Por sinal, parece ser uma característica
recente do Sesc: diante da sua (ao que tudo indica) enorme bonança
financeira, ao invés de investir em outro espetáculo, talvez mais
modesto (mas de boa qualidade), dissipa-se na produção de primeira
qualidade do programa, algo que será jogado fora logo a seguir,
muitas vezes sem ser lido - um verdadeiro potlatch de verbas para a
cultura. Fim do parênteses.)
São quase três
horas de uma montagem enfadonha que transita entre o senso comum e a
platitude - isso nos seus melhores momentos. Ao que tudo indica, o
dramaturgo estava ciente disso, a ponto de avisar no programa que
"talvez (...) esta não seja uma peça sobre o 'outro' (...). Se
Diásporas é alguma coisa, talvez seja isso: uma ficção
sobre nós que, quando não somos de fato migrantes em algum nível,
ao menos guardamos em nós as marcas ancestrais da experiência da
migração". Clichê e vazio como a peça: não somos
palestinos, haitianos, curdos, sírios, senegaleses, bolivianos -
sequer nordestinos ou nortistas fugidos da seca ou da (quase) total
falta de perspectivas -, e o fato de todos termos umbigos não nos
habilita para acharmos que temos qualquer universalidade na nossa
experiência de migração (da Vila Madalena para Lapa para Santa Cecília para outro bairro da moda?). Achar que há marcas ancestrais em toda
pessoa é de um romantismo adolescente de quem nunca teve um encontro
verdadeiro com um migrante ou imigrante (e falo isso por já ter
compartilhado de visão semelhante, até ter deitado por terra
qualquer ingenuidade do tipo com meus anos de colaboração com o
Serviço Pastoral dos Migrantes (ainda correndo) e um namoro com uma
imigrante taiwanesa). Ler de Cássio que "creio que não há
nada de particularmente novo a se dizer sobre a experiência
migratória" me ofende: é de uma pretensão infantil de quem
não acompanha sequer as notícias diárias mais espalhafatosas sobre
o assunto, de quem não tem qualquer interesse pelo drama particular
de cada migrante e imigrante, e parece crer, com base em tudo o que
não sabe, que será capaz de criar qualquer coisa que valha só com
o pouco que traz na cachola.
Tanto pelo que
apresentou no palco como pelo que disse programa, mais conveniente
que Diásporas se chamasse Reflexos narcísicos de uma alma acomodada, O outro - eu mesmo (para ironizar Kertész), Eu, eu mesmo e Irene,
ou algo assim, e não tentasse enganar o público que, levado pelo título e pela sinopse, imaginava algo sobre migrações, alteridade, o outro...
04 de junho de 2017
PS: Acho chato falar mal do trabalho alheio, afinal, é evidente que não foi algo feito de qualquer jeito. Entretanto, fazer arte é estar sujeito a erros e a críticas.
PS: Acho chato falar mal do trabalho alheio, afinal, é evidente que não foi algo feito de qualquer jeito. Entretanto, fazer arte é estar sujeito a erros e a críticas.