terça-feira, 6 de março de 2018

O meio sol amarelo de Biafra e o sorriso amarelo da civilidade pela metade no Brasil [Diálogos com a literatura]

Ganhei o livro de uma amiga, que o lera e gostara muito. Não perguntei sobre o que era, agradeci o presente e aceitei a indicação às cegas - como gosto de fazer muitas vezes, na esperança de uma boa surpresa. Os únicos dados que eu tinha antes de começar a leitura de Meio sol amarelo, da escritora Chimamanda Ngozi Adichie, eram que a autora era nigeriana e que eu nada sabia da história nigeriana - salvo, por alto, algumas notícias recentes, time caneleiro na copa de 94, petróleo, desigualdade social, caos urbano de Lagos e Hoko Baram.
São quatro partes. A primeira, no início da década de 1960. Percebe-se o contexto de independência nacional, ainda que um tanto alheio, distante. Em uma cidade universitária, em um ambiente que me remeteu ao distrito de Barão Geraldo, onde fica a Unicamp, professores universitários - representantes de uma classe média com boa vontade e pouca autocrítica - discutem a libertação dos povos, a união africana, o fim do racismo, enquanto são servidos por serviçais desprovidos de quaisquer direitos, espécie de cachorros de estimação com a utilidade de limpar a casa, cozinhar e outros afazeres - aqui nestes trópicos conhecidos como a doméstica que não precisa de direitos, se for o caso, nem de salário, porque "é praticamente da família", e que o governo Lula corrompeu esse pilar da família brasileira de bem. Domésticos que apanham por furtar um punhado de arroz, ou escondem restos de frango assado nos bolsos da calça, enquanto na sala os patrões se enlevam em sua superioridade moral e bebem bebidas importadas. Num segundo plano, a alta elite nigeriana, dos negócios com o Estado e com os militares, na base dos dez porcento, com filhos a estudar na Europa, e um discurso não de todo longe dos professores universitários, contudo extremamente pragmático - farinha (pouca ou muita, não importa), meu pirão primeiro.
Até essa primeira parte, estava gostando do livro, contexto que me é algo familiar, mentalidade que lembra a brasileira atual, algum drama familiar se desenhando. Na segunda parte, que passa em fins dos anos 1960, ficou evidente minha ignorância em história recente e, mais que isso, o livro me sugou de forma tal que precisei de dois dias para ler as quase quatrocentas páginas restantes.
O pano de fundo passa a ser então a guerra entre Nigéria e Biafra, entre 1967 e 1970. O segundo golpe de estado nigeriano, as perseguições e massacre dos ibos, a declaração de independência de Biafra e a guerra que se seguiu, com a população do novo país sofrendo sobremaneira - enquanto seus líderes (políticos, militares e empresariais) mantinham relativo padrão de vida, até se cansarem e decidirem fugir para a Europa - com passaportes nigerianos. Procurando mais informações sobre essa guerra, fala-se em um milhão de mortos, ataques militares indiscriminados a alvo civis e bloqueio de ajuda humanitária - alimentos e medicamentos.
O livro não carrega nas tintas escatológicas, como Alá e as crianças soldado, por exemplo, nem adentra muito em um subjetivismo, como Os cus de judas (para ficarmos na África), porém é vigoroso na descrição do dia a dia de fuga e humilhação que a guerra implicou - e olha que os personagens principais, se não foram para os altos escalões de Biafra, tem alguma reserva de dinheiro, contatos importante e um carro, que muito facilita a vida deles. Numa guerra - ainda mais na África, onde a população atingida não é exatamente humana, dessas que geram comoção e revolta nos meios de comunicação de massa do ocidente, e sim negra - , fica claro, não há heroísmo, não há glamour, há apenas decadência - dos corpos e dos "espíritos", da humanidade - e morte - por bomba, tiro, doença ou fome. É um contraponto sensível e enfático ao enaltecimento e banalização da guerra feita pela indústria cultural estadunidense - via filme, jogos e séries, principalmente -, que, ao meu ver, é um dos principais ingredientes para o renascimento fascista neste início do século XXI.
O ritmo narrativo fez com que meu desejo fosse de terminar logo o livro, para que terminasse logo aquela guerra - que parecia sem fim. Não entro em mais detalhes do livro para não prejudicar a leitura de alguém, apenas traço alguns paralelos com a atualidade.
Se na primeira parte vi muita coisa em comum com o Brasil atual, na segunda, guardada as proporções, também vi. Claro, uma opinião baseada na minha posição de observador distanciado: sou branco, classe média, moro na região central - a guerra brasileira acontece nas margens das cidades, da sociedade, nas periferias, nas favelas, no morros, contra negros, "pardos", periféricos, movimentos sociais, etc. Ernst Junger, na década de 1920, um dos primeiros a falar em "democratização" da guerra, graças aos avanços técnicos: para atirar de um rifle no alto de um jipe não é preciso ter mobilidades das pernas, por exemplo. Paul Virilio, na mesma linha dos avanços da técnica, só que no fim do século XX, começa a dissecar ordem mundial atual como uma situação de guerra permanente, sem objetivo específico que não a manutenção da própria guerra. A exemplo do cerco a Biafra, nestes Triste Trópicos, à ação de guerra aberta da Polícia Militar (atualmente no Rio de Janeiro, com exército mesmo) soma-se estrangulamentos econômicos e de subsistência, uma propaganda que diz que a vitória está próxima, ao mesmo tempo que os retrocessos são cada vez mais palpáveis. Se os anos Lula permitiram que o cerco humanitário contra os pobres fosse levantado, os homicídios seguem em crescimento contínuo, e o golpe volta a usar a tática de crime de guerra, de matar a população civil na base das carências básicas. Nada tão ostensivo, claro: o Brasil parece ser um país adepto à homeopatia, ao menos nas questões sociais. Quer dizer, ostensivo, sim, mas não declarado: 60 mil mortes por ano, 78,1 mortes por 100 mil habitantes, como em Fortaleza, é índice de conflito bélico, de guerra - ainda mais quando sabemos claramente o perfil de 90% desses mortos em "combates". Os aplausos de endinheirados à proposta de Bolsomico de metralhar indiscriminadamente a favela mostram o estado da arte dos discursos de ódio ocultos nos ternos bem cortados de Bonner ou no pretenso esquerdismo de Datena.
A diferença essencial entre o cenário brasileiro dos anos 2010 e o de Biafra de 1960 é que lá havia um inimigo e um território delimitado, com um ponto a se chegar - a união nigeriana, com ou sem a população ibo que ocupava os campos petrolíferos biafrenses. No Brasil, territórios se imiscuem - o morador da favela trabalha no shopping dos bacanas, acaba por transitar nas mesmas vias principais - e as funções cumpridas pelas populações "inimigas" não seriam assumidas por "cidadãos de bem e de posses" - lixeiros, seguranças, porteiros, prostitutas, enfermeiras, faxineiros, etc -, de onde o impedimento de simplesmente soltar bombas onde moram e nos trajetos que frequentam essas pessoas "perigosas" que garantem o funcionamento mais elementar da sociedade - quer dizer, cabeças de planilha não conseguem sequer enxergar isso, tamanha sua estultice. Resta o que chamei de doses homeopáticas de guerra, o que também atesta claramente o lado confortável de onde falo: não sofro na pele com toque de recolher não-explícito mas efetivo (111 tiros em 5 homens negros, como canta Jé Oliveira em Farinha com Açúcar) e restrições no direito (teórico) de ir e vir, não tenho parentes assassinados pela polícia em autos de resistência (pelo contrário, parentes que defendem abertamente a tortura e aplaudem toda sorte de violação de direitos humanos e depois ainda vem com papinho de boas energias). Assisto indignado porém sem riscos ao estrangulamento da dignidade humana dessas "populações perigosas", até o ponto onde não aguentam e se revoltam, dando o ensejo esperado para serem abatidas, após ganharem o rótulo de "vagabundos" ou "bandidos". Se meu desejo era terminar logo o livro - que aquela guerra acabasse logo - imagino o que não passa com quem vive sob essa guerra (psicológica e real) brasileira permanentemente, desde que se entende por gente - não creio haver como se habituar a essa situação sem fortes efeitos à saúde mental. Imagino, pela leitura do personagem Odenigbo, que para quem está no meio do fogo cruzado, o presente é um tempo eterno, em que a ameaça de ser atingido não permite pensar em futuro, com tudo o que essa espera desesperançosa implica.
No fundo, a elite brasileira que se julga tão cosmopolita não passa de um arremedo das elites africanas da segunda metade do século XX, um misto de elites nigerianas com a elite sul-africana - preconceito, ódio, servilismo e um exército armado para lutar contra a população do território que julgam sua propriedade.

06 de março de 2018

PS: não sejamos também ingênuos em achar que Europa seja paradigma de respeito a direitos humanos e o que for: a guerra em Biafra ou o golpe no Brasil não aconteceriam sem o know-how e o apoio logísticos dos países autoproclamados civilizados.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

A relação da Mídia com o Exército no pós-intervenção do RJ

Ainda estamos tentando entender quais objetivos reais por trás da intervenção federal no Rio de Janeiro, que ganha contornos militares. Interpretações são muitas, de aviso prévio à população para a possibilidade de qualquer revolta popular com a prisão de Lula a um preparo para um golpe militar efetivo. De qualquer forma, não há como não concordar com Nassif, quando fala do crescimento do poder do exército, com Etchegoyen [http://bit.ly/2olkF3E]. A questão é até onde iremos (e coloco o verbo na primeira pessoa do plural porque a população não é parte passiva no processo), até onde os donos do poder estão dispostos a ceder o poder ao militares e até onde os militares estão dispostos a assumir esse abacaxi, digo, esta república bananeira. Também há o elemento imponderável, como em tudo na história.
Se os neoliberais dizem que não existe almoço grátis, nestes Tristes Trópicos podemos dizer que a Grande Imprensa não dá notícia gratuitamente - se não vende a capa por dinheiro vivo, loteia notícias por interesses outros, nunca explicitados. Que faça jogadas erradas é uma coisa, mas a censura e cooptação dos jornalistas é pesada e nada que ganha direito a figurar em suas páginas ou transmissões é isento de avaliação prévia - das delações da JBS às críticas a Pablo Vittar. Notícias sobre a ditadura e a intervenção militar, então, não são por acaso.
Tivemos a intervenção federal no Rio, com ameaça de uso do exército como força policial, legitimado pelo legislativo e aguardando o ok da justiça (sic), com as buscas e apreensões coletivas - como disse Luis Felipe Miguel, isso é um reforço a mais no fim do Estado de Direito nesta terra "sem fé, sem lei, sem rei": "pedidos coletivos de busca e apreensão indicam a percepção de que a lei, ao estabelecer direitos, impede o combate ao crime". Mais impressionante é ver os próprios operadores do direito, aprovarem o fim do império da lei. Certamente essa decisão não foi tomada numa noite. De onde podemos presumir que não foi sem querer que dois dias antes da intervenção, a procuradora geral da república, Raquel Dodge, tenha pedido ao STF para reabrir a discussão sobre a lei de anistia, por se tratar de crimes lesa humanidade os praticados por militares durante a ditadura civil-militar de 1964-85 [http://bit.ly/2oj4mUY]. Nunca é demais que atualmente Globo e MPF praticamente se confundem, com este assumindo o poder de milícia jurídica (sem controle externo) dos interesses vocalizados pela Globo.
Ontem, a notícia de que Villas Bôas, comandante do exército e uma das vozes mais lúcidas da corporação (dentro da limitação luminosa que o exército brasileiro pode ter), pediu maiores garantias de impunidade, para evitar uma nova comissão da verdade do que vierem a fazer (e ocultar) durante a intervenção militar no Rio de Janeiro e alhures [https://glo.bo/2BEihxf]. O general acha pouco a lei de 2017 que põe o exército oficialmente na esbórnia corporativista estatal, onde juízes julgam juízes, políticos julgam políticos, ladrões julgam ladrões (digo do PCC, organização que ficou com a terceirização no combate ao crime e execução da justiça aos reles mortais, ao menos no Tucanistão) e, agora, militares julgam militares - apenas a população e a democracia seguem julgada por outros, com critérios alheios e arbitrários.
Hoje, o Globo noticia a identificação da ossada de Dimas Antônio Casemiro, assassinado e desaparecido pela ditadura [https://glo.bo/2EG4tFt]. No mesmo dia, notícias de como os militares vão ajudar a salvar o Rio de Janeiro da criminalidade, com o próprio general interventor tendo sua narrativa do herói (justiceiro), com o assassinato do irmão pela criminalidade [https://glo.bo/2EVPaYu]), muito mais espetacular para forjar um herói popular (diferentemente do camicie nere Moro); e editorial aplaudindo o efeito saneador dessa intervenção, em revival de 1964: "Intervenção é oportunidade para sanear instituições" [https://glo.bo/2C9Y6bC].
O movimento da mídia com os militares, de morde e assopra, pode ser uma antecipação da estratégia usada com Moro e demais justiceiros da república de Curitiba, que tão logo cumpriram sua função moralizante da nação, condenando Lula, foram desmascarados em uma série de imoralismos e ilegalidades pela mídia que um dia antes os tratava como heróis paladinos da ética. Afinal, exército tem forte senso de hierarquia e as armas à mão, não precisa delegar a tarefa de tiro a ninguém, com o risco de não ser respeitado (como foi a decisão judicial de condução coercitiva de Lula, em 2016), melhor não deixar que eles cresçam demais. O ponto é que isso pode ser jogar gasolina em certos setores da corporação, podendo levar a um fechamento breve e duro do sistema. Interrompem as manifestações a tiro, e calam a mídia na base da censura - com esta podendo posar de vítima daquilo que estimularam e desejam. A internet, essa é fácil de conter, já vimos os ensaios no período de desestabilização do governo petista: basta um juiz de província qualquer ordenar o bloqueio de Facebook, Whatsapp ou outros sites e programas, com base em qualquer argumento - como o combate ao crime organizado (por sinal, se bem notei, depois do golpe, nunca mais a justiça bloqueou o Whatsapp e afins).
A grande incógnita a um reles cidadão como este escriba, sem contatos quentes nas estruturas do poder, é saber a quantas andam as divisões dentro das forças armadas. Há ao menos três correntes identificáveis: os nacional-desenvolvimentistas, talvez ressentidos pela forma como foram tratados pelos aliados no fim da ditadura (Jessé Souza identifica o PND II, em 1974, como ponto de inflexão no apoio da mídia e dos seus patrocinados aos militares), e certamente insatisfeitos com os rumos do golpe atual; os caça-comunistas, em que importante é manter seu status quo frente o grosso da população, ao custo de qualquer aspiração de nação ou projeto de desenvolvimento; e os legalistas, que defendem um papel constitucional e de ação restrita das forças armadas. A disputa interna existe, e ainda que não seja aberta, é visível e não aparenta ser pequena - e nessa briga, a hierarquia fica um tanto esfumada. Convém relembrar que o hoje major Willian Pina Botelho, responsável por forjar um patético flagrante de jovens que protestavam contra o golpe, em 2016 [https://glo.bo/2GwAwEi], estava infiltrado em movimentos sociais há mais de um ano e agiu à revelia da então comandante em chefe das forças armadas do país, Dilma Rousseff - mas certamente não agiu sozinho.
Villas Bôas sempre sinalizou ser do terceiro grupo. As recentes mudanças no discurso, mais que uma mudança de mentalidade do general, apontam uma mudança na correlação de forças dentro da corporação. Diante da inefabilidade (ou da grande probabilidade) de um recrudescimento do regime de exceção e da presença ostensiva do exército, o general trata de tentar dar um verniz legal e civil às arbitrariedades de um futuro regime militar ou semi-militar.
Para o exército (pensando aqui enquanto corporação, alheio às disputas da facções internas e dos interesses do país), o ideal é que o melhor cenário se concretize: a intervenção no Rio se encerre antecipadamente, sem maiores crimes e escândalo; que as eleições aconteçam e não sejam uma farsa, nem incorram em fraude, e que ganhe o mais votado - por ora, Lula. Se assim for, o exército sai de cena sem maiores custos da sua imagem frente a população porém, em compensação, seu poder político cresce enormemente, podendo se transformar em uma espécie de "guarda revolucionária" tupiniquim - ou, para ser mais preciso, guarda antirevolucionária. Se até hoje o preço a se pagar por um enfrentamento dos seus interesses eram altos - mesmo com a modernização da força aérea e a aceleração do navio nuclear, a Comissão da Verdade não foi engolida -, a partir desse cenário serão exorbitantes. A maior possibilidade, entretanto, é de um cenário negativo, com exército envolto em uma série de escândalos, por conta de sua ação policial, e consequente arranhões à sua imagem. Se se começar esse processo de corrosão da sua moral, o golpe pode ser a solução mais rápida para estancar a sangria (com Supremo, com tudo?). E, claro, nessa discussão toda dos círculos de poder, a população que sofra, o país que acabe, a nação que se desmantele.

20 de fevereiro de 2018.