quarta-feira, 11 de outubro de 2006

“Vagina não tem osso” e a especialização crônica na universidade (incompleto)

Começo com uma cena do filme O sentido da vida, de 1983, dos comediantes ingleses do Monty Python. Dois médicos vão fazer um parto normal. Estão mais interessados na parafernalha da sala de parto, como “a máquina que faz 'ping!'”, do que na paciente – tanto é que notam que falta algo, mas levam um tempo para perceber que é a paciente. O gestor do hospital sequer sabe o que é um parto, apesar de conhecer “a máquina que faz 'ping!'” e achá-la o máximo, como os médicos. Durante o parto, a mulher pergunta o que pode fazer para ajudar, a resposta do médico é “nada, você não está habilitada para isso”.
Conversando com um estudante de medicina (um dos que julgo mais próximo de estar na carreira por vocação), ele comentava que uma mulher com quase nove meses de gravidez chegou no hospital reclamando de dor “no ossinho da vagina”. Como vagina não tem osso, ele desprezou o que a mulher disse e mandou-a embora. Fosse um caso isolado, tudo bem. Mas é comum também pessoas que freqüentam o posto de saúde com o que os médicos classificam de “ntpn”, não tem porra nenhuma (há também uma outra denominação, mais recente, mas não me lembro). O médico receita uma aspirina e manda a pessoa para casa. Como bem comentou um amigo meu psicólogo: ninguém procura um médico porque não tem nada, alguma coisa essa pessoa tem, por mais que não seja biológico. Mas para quem passou os seis anos da faculdade decorando nome de osso, princípio ativo de remédios e aprendendo a ler resultado de exames, e só olhou para a cara do paciente caso tenha optado pela especialidade de oftalmologista, não surpreende que diga “não tem nada” para quem tem pressão e nível de colesterol dentro dos padrões. Ou ignore a dor de uma mulher, simplesmente porque “vagina não tem osso”.
É possível encontramos ao menos três razões que explicam esse comportamento que antes se esperaria de um açougueiro do que de um médico. Um deles é o prestígio de ser “doutor”, o poder de decidir a vida e a morte, o que faz com que a grande maioria das pessoas que prestam medicina o façam por causa do prestígio ou do dinheiro. Outra é que a medicina tradicional lida com a doença, e não com a saúde. Saúde, nesta visão é a ausência de doença, e a doença é identificada via exames e diagnósticos. Se estes não apontam nada, a pessoa é saudável. Por fim, a formação que os médicos recebem na universidade: uma formação técnica, especialista, cujo ideal – como expressou um empolgado professor meu com os avanços da ciência – é reduzir a medicina a uma matriz, ou a uma função matemática.
Estou lendo o livro A aventura da universidade, do economista Cristóvão Buarque, ex-reitor da Universidade de Brasília. Apesar de escrito há dez anos o livro é bastante atual e, apesar de eu não concordar com muitas idéias ali expostas, Buarque tem o grande mérito de conseguir problematizar a universidade. Um dos pontos que ele insiste é a extrema especialização da universidade e conseqüente perda do seu caráter humanista – essa perda se dá em todas as áreas da universidade, exatas, biológicas, humanas e artes. Para cursos como engenharia este problema não se sente de maneira tão gritante, mas para áreas que lidam diretamente com o ser humano, essa visão da pessoa como um amontoado de carne ou uma fonte de renda chega a ser ofensiva. Sinceramente, de todos os médicos e estudantes de medicina que conheço para além do consultório, não consigo lembrar de nenhum que eu diga ter vocação para a profissão escolhida. Ou mesmo dentro do consultório, médicos “atenciosos”, como são geralmente chamados, são tão raros que são sempre lembrados e comentados.
Falo da medicina, onde essa falta da visão humanista durante sua formação é perceptível mais facilmente, mas eu poderia citar exemplos de psicólogos formados que não têm a menor condição de exercer a profissão, mas a universidade – uma das melhores do Brasil –, e o Conselho de Psicologia dizem que são aptos para tanto.
E a maior dificuldade para mudar esse panorama da universidade está dentro da própria universidade. Como bem disse Buarque, a especialização chegou a tal nível que ao invés de se exigir de um físico ou um engenheiro um conhecimento de filosofia, de artes, de algo não técnico ligado à sua formação, o que se exige é do filósofo e do artista a mesma especialização do físico e do engenheiro.
Uma das formas pela qual essa exigência pela especialização estrita é o sistema de cobrança de títulos e de “coeficiente de produtividade” (artigos publicados) dos professores e de “coeficiente de rendimento” (a nota) dos alunos. Essa cobrança anda cada vez mais rígida, e uma reprovação, algumas notas baixas, o atraso do curso em meio ano pode custar a bolsa de estudos; forçando estudantes (é o caso que conheço mais de perto) a desistirem de muitas atividades que saiam do esquema sala de aula-laboratório, pois se engajar em um projeto social, por exemplo, pode comer horas de estudos, baixar o coeficiente de rendimento e cortar uma bolsa de estudos. E é com tristeza que leio a notícia de que um dos mais empolgados com essa visão especialista-eficiente é cotado para uma secretaria no estado de São Paulo. Trata-se do ex-reitor da Unicamp, atualmente à frente da Fapesp, o engenheiro Carlos Henrique de Brito Cruz, que na reitoria da Unicamp chegou ao extremo de querer vincular bolsa-auxílio (bolsas direcionadas a alunos carentes, que não tem como se sustentar morando fora de casa e fazendo faculdade) ao coeficiente de rendimento. Ou seja, não basta o vestibular já excluir boa parte dos alunos carentes que gostariam de fazer Unicamp, uma vez dentro esses alunos vão ter que provar que mesmo trabalhando, eles conseguem tirar as mesmas notas que aqueles alunos que só dedicam a estudar (e como se nota fosse sinônimo de conhecimento).

Campinas, 11 de outubro de 2006

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