domingo, 3 de junho de 2012

Quando o amarelo piscante piscou para mim (e eu não entrei).

“Entre com cuidado no amarelo piscante” é um crônica escrita no fim do mês passado por uma amiga, Jessica Ueno. Trata-se da frase presente em duas placas na avenida Vergueiro, que em seu texto Jessica não apenas faz uso do duplo sentido, como se insinua ela própria num texto insinuante. Uma crônica bem escrita e divertida, que recomendo a leitura [http://j.mp/qcQD6b]. Se alguém resolver ler outros textos dela, vai notar que “Entre com cuidado...” destoa do seu estilo habitual, que bebe muito em Clarice, e soam textos bastante apaixonados, tempestuosos, existenciais.

Terça-feira a acompanhei em parte do trajeto do CCSP até sua casa, que, além de prolongar um pouco mais o agradável papo, ela fez questão de me mostrar os sussurrantes convites para entrar com cuidado no amarelo piscante.

Lembrei desse seu último texto este domingo, quando ia para uma apresentação de dança na Galeira Olido. Pelo caminho me deparei com duas placas como as que Jessica só conhecia na avenida Vergueiro: uma na rua Augusta, quase na praça Roosevelt, outra na esquina da rua da Consolação com a avenida São Luís. Chutando baixo, muito baixo, passei mais de sessenta vezes por ao menos uma dessas placas. Nunca as tinha percebido – e talvez levasse outras cento e oitenta para, quem sabe, me dar conta delas.

Foi, portanto, graças a uma crônica quotidiana – banal, que alguns (eu um par de anos atrás, por exemplo) talvez até a qualificassem de “bobinha”, por não lidar com política ou alguma grande questão –, que o que era mero fundo, indiferente em meio à profusão de estímulos da cidade, despontou em primeiro plano, ganhando realidade por si. Isso me remeteu a Merleau-Ponty, que comenta que em um texto literário, as palavras conduzem tanto quem fala (ou escreve) quanto quem ouve (ou lê) “a uma significação nova, mediante uma potência de designação que excede a definição que elas [as palavras] receberam, mediante a vida surda que levaram e continuam a levar em nós”. Encarar as palavras de uma maneira inusual acaba também por nos fazer – se sairmos do nosso casulo e nos pormos no mundo – ver coisas que fugiam do nosso hábito até então – que seja placas sobre amarelos piscantes, ou mendigos que já fazem parte da paisagem.

Mesmo não se tratando de um gênero com o estatuto do romance, não deixei de me surpreender ao notar que uma simples crônica, escrita em um tom de jogo mais do que qualquer outra coisa, como ela nos oferece outras oportunidades de perceber a cidade, nosso entorno, a vida que nos cerca e em meio a qual passamos nossos dias.

Disse eu algures (para ser mais específico, o texto “a prosa do mundo”, na Casuística 101 [http://j.mp/casu101]), que toda escrita começa pelo olhar. Faço, pois, um adendo: quando de qualidade e posta para circular, novos olhares começam a partir da escrita.

São Paulo, 03 de junho de 2012.

ps: como dá para reparar na foto, uma placa dessas há (ou havia) também na Liberdade.

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