segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Entendeu ou quer que eu desenhe?

"Entendeu ou quer que eu desenhe?" Não sei de quando vem essa frase, sem que é do século passado, ao menos, porque ouvia quando era adolescente. Não se usava muito, não que eu me lembre - ao menos no rincão do Brasil onde eu morava. Hoje tenho lido ela com certa freqüência em minha bolha virtual - minha linha do tempo do Fakebook -, ocupada majoritariamente por pessoas de esquerda e/ou progressistas (por favor, menos idealismo ingênuo ao querer identificar a esquerda com mentalidade progressista). 
Seu uso mais recorrente tem sido ao falar dos desdobramentos do golpe judiciário-policial-midiático de 2016. A cada nova demonstração de que a Lava Jato não era contra a corrupção, que Temer era o desastre em pessoa, ou qualquer coisa do gênero, vejo alguém comentar a notícia com um singelo "será que agora os seguidores do pato amarelo entenderam, ou será preciso que desenhe?" Já li em comentário de jornalistas de esquerda, de professores, de sociólogos. A frase é dita de boa fé - vamos dizer assim - e evidencia um enorme (e justificado) ressentimento com colegas de classe, incapazes de enxergar um palmo à frente. Entretanto, evidencia também uma falta de auto-reflexão, que grita na entrelinha.
Evidencia primeiro um preconceito acadêmico: por que um desenho seria mais fácil de compreender que um texto? Ora, porque um texto é um texto, exige estudo, anos de estudo, exige articulação da linguagem escrita, exige decifração de um código. E um desenho, um Poty, um Picasso, um Pollock? 
O que evidencia por segundo, portanto, é ignorância acadêmica (e social): achar que um desenho não possui um código, uma decifração, uma articulação de linguagens. Como se uma representação fosse um dado imediato da consciência. Um pouco de conhecimento de artes (e não só selfie numa exposição) ajudaria a notar tamanha ignorância. Conversar com pessoas analfabetas ou pouco letradas também.
A questão é que como o objeto de escárnio está obrigatoriamente fora da academia (quer dizer, está dentro, limpando banheiros, mas isso é irrelevante), não há porque (nem quem) defendê-lo. Afinal, um analfabeto, por não ser capaz de decifrar um texto, vai ser capaz de ler qualquer coisa? Um desenho - bem simplório, talvez esquemático - ajudaria ele a pelo menos não ficar na ignorância total. Mais um pouco e voltaremos a discutir o voto dos analfabetos. Enquanto isso, esquecem que quem bate panela e segue o pato são pessoas com "nível superior", mestres, doutores, pós-doutores.
Não estou aqui defendendo que instrução seja supérflua. Há tempos digo: instrução formal é a salvação dos medíocres. Muito provavelmente se eu fosse analfabeto, ou pouco letrado, não teria um quinto da leitura de mundo que tenho hoje - no meu caso específico, as letrinhas me abriram as portas da percepção. Porém, tive alunas de alfabetização, em especial dona Maria, uma senhora com então 76 anos (hoje, se estiver viva, tem 90), que tinha uma visão crítica de mundo impressionante, amplo vocabulário, e vinha de longa data sua leitura de mundo: brigou pelo seu divórcio no sertão do Brasil, na década de 1970, mal passada uma década do Estatuto da Mulher Casada, tão logo a Lei do Divórcio fora aprovada. Ou então o Amarildo, um porteiro com quem tinha amizade, em Ribeirão, era analfabeto e tinha criado um código próprio: não perdia um recado que pediam a ele para dar. Mas eram dois analfabetos, dois incapazes de entender o mundo, então façamos um desenho.
"Entendeu ou quer que eu desenhe?" Não sei, pode ser preconceito meu também, mas um quadro de Vermeer ou da Paula Rego me parecem bem mais complexos e cheios de significados que a obra completa do Paulo Coelho. Ou um desenho de um grafo do Lacan, em que se pergunta porque ele não tratou só de escrever, porque dá muito trabalho tentar entender? Mas no ressentimento, nossos preconceitos afloram, e no subtexto dos meus amigos virtuais de esquerda e/ou progressistas um raciocínio que vai ao encontro do professor de medicina da Unicamp, Paulo Palma, que para justificar como as cotas são perniciosas à ciência explica para os apedeutas como este escriba que para cursar dança não se exige QI - afinal, o que é o corpo, esse amontoado de carne, diante de um texto ou de um estetoscópio? 
Não quero com esta crônica pintar a completa falta de perspectivas. Creio que há uma significativa diferença entre os amigos da minha linha do tempo que perguntam se quer que desenhe ou o professor da Unicamp e os seguidores do pato: enquanto estes se orgulham do seu preconceito e ignorância, se algum daqueles chegar a ler esta crônica, certamente vai se sentir incomodado e rever suas expressões.

07 de agosto de 2017

Entendeu, ou quer que eu escreva?

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