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segunda-feira, 25 de maio de 2015

A coreografia do poder - Sobre a Cisne Negro Cia de Dança e Trama [diálogos com a dança]

Querer representar um éthos nacional é um cipoal que deveria fazer com que qualquer artista pensasse e pesasse bem seu objetivo, a forma como fazê-lo e como apresentá-lo. Não a ponto de desistir, mas para evitar qualquer caminho batido, que ofusque o que a obra pode ter de positivo. Vale para qualquer país, porém creio que ganha ares ainda mais complexos no Brasil, cuja formação da idéia de nação está antes atrelada ao território que a um povo (Antônio Carlos Robert de Moraes faz uma interessante análise nesse sentido em Território e história no Brasil).
O coreógrafo Rui Moreira até teve cuidado na apresentação de seu espetáculo Trama, de 2001, dançado pela Cisne Negro Cia de Dança no CCSP, no penúltimo fim de semana deste maio. Ele trata de avisar no programa: "Neste Brasil mestiço, misterioso e mágico, todos os retratos são tendenciosos, parciais ou comprometidos". Como não podia deixar de ser, portanto, tendencioso também é o retrato que ele traça do "contagiante caminho da alegria neste País". Contudo, por mais que seja avisado da parcialidade, há algo no ângulo por ele assumido que merece uma maior reflexão.
Antes, um breve comentário sobre a primeira obra do programa, Sra. Margareth - excertos de "Monger", do coreógrafo israelense Barak Marshall - que reflete também minha atual opinião sobre a Cisne Negro (não sou um profundo conhecedor da companhia para fazer assunções mais peremptórias). Sra Margareth é um espetáculo bonito, engraçadinho, simpático, porém de um conformismo assombroso. Segundo o programa, ele "conta a história de um grupo de funcionários presos no porão da casa de uma patroa abusiva". O argumento do espetáculo abre uma ótima oportunidade para uma crítica sobre as relações sociais entre classes, sem precisar comprometer o humor das vivências retratadas. Oportunidade que é jogada fora não apenas na descrição recém reproduzida, como na própria peça: ao problema ser a patroa abusiva o caminho mais óbvio é deduzir que fosse a patroa boazinha, não haveria problemas: seriam os mesmos dez funcionários para servir uma pessoa, e isso seria harmonia social. Por sinal, não li na coreografia nenhuma prisão em porão: prisão, apenas a da fome: para comer é preciso trabalhar, e a Sra Margareth era impassível ao demitir as ineptas para servi-la (seria esse o seu abuso, exigir competência e eficiência?).
Sobre Trama, enfim. A forma como retrata a presumida alegria destes tristes trópicos, sem tensão e sem gênese, como se a alegria fosse um traço genético do Brasileiro - esse metafísico ente de nossa unidade nacional -, não apenas conta só metade da história: ela reproduz o discurso do poder. Não se trata sequer de retratá-lo - pois se retratasse esse discurso, teríamos uma crítica potente -, ele o reproduz, reforça, ilustra. Ele convida o público a se conformar.
Vemos corpos alegres, gingados, sedutores - a tal "malemolência" que um narrador (sic) de futebol adora atribuir como nossa característica-mor. De onde vem esse gingado? Para onde leva essa sedução? O coreógrafo passa ao largo de qualquer problematização. Tal qual a emissora oficial da ditadura civil-militar, Rui Moreira - e a Cisne Negro - tenta forjar uma imagem positiva do Brasil e do Brasileiro a partir do esquecimento e da inconseqüência. Será mesmo que vivemos num país em que a sexualidade é encarada com leveza, como diversão? Tenho sérias dúvidas, antes me vejo morando em um país repressor do corpo e dos afetos, muito longe de qualquer liberdade, de qualquer leveza: mais gritante que o padrão imposto e aceito de corpo, ditado pela mídia, é o fato de que tirar a roupa em público seja crime, por exemplo; ou que beijar em público seja considerado impudico, merecedor de reprimenda e insultos - e não atribuo isso à guinada conservadora que estamos presenciando, potencializada pelo crescimento evangélico. Terá o Brasileiro sempre esse corpo gingado? E sequer questiono se seria todo brasileiro assim, assumo que Moreira estaria retratando um tipo específico, "mais povo", o tal mulado-made-in-Brazil-for-export. Mesmo esse, teria essa tal malemolência em qualquer situação? Nas rotineiras abordagens policiais que presencio nas ruas de São Paulo - sempre contra esse Brasileiro típico -, me deparo sempre com corpos duros, rígidos, a cabeça baixa, nenhum sorriso.
"Ah, mas apesar de toda a precariedade do quotidiano, o Brasileiro segue sorrindo, segue feliz, segue otimista", poderia ser argumentado. E eu não discordaria, e sim questionaria: será que sorrir, tentar ser feliz, otimista, não é a forma que o tal Brasileiro achou para lidar com a precariedade de vida que o poder lhe impõe? Por que, então, não mostrar de onde ela vem, para onde ela aponta? Nada. O Brasileiro é feliz por natureza, e isso é o que importa, ponto.
Trama é a louvação do Brasil Grande da Ditadura, da unidade nacional feita da aniquilação das diferenças e dos diferentes apregoada ainda hoje pela Rede Globo. Trama antes de ser arte é propaganda.


25 de maio de 2015

sábado, 28 de março de 2015

Frenético, alucinado, heterônomo: o corpo coagido [diálogos com a dança]

No centro do palco surge o dançarino em uma dança frenética, no ritmo da música eletrônica que toca alta e das luzes que piscam e se movem - não como estrobo, que parcela o movimento, mas vindas dos lados e de trás, fazendo com que tenhamos dificuldade em nos centrarmos naquele corpo que se apresenta genérico, se movendo sem sair do lugar. A música do tempo infinito. Me vem à mente o livro do psicanalista Tales Ab'Saber sobre a cultura eletrônica despontada sob o sol dos paradigmas neoliberais.
Acontece que O silêncio e o caos, do pernambucano Dielson Pessoa, não se propõe a falar, num primeiro momento, de cultura clubber: a obra foi concebida a partir do episódio de um surto psicótico do autor, em dois mil e dez, e dos quatro anos que se seguiram de tratamento.
Loucura, é disso que O silêncio e o caos trata - a questão é saber sobre qual loucura ele fala, de quais loucos.
Identifiquei nove momentos da coreografia. Do movimento solitário e frenético de um corpo genérico, Dielson desce à platéia, como quem almeja o encontro com o Outro. O sorriso vidrado e os movimentos estereotipados ininterruptos impedem um contato que não seja superficial e fugaz. Ele reclama cansaço, mas não pára - como se fosse obrigado a seguir sempre em movimento, sempre alegre. Dança pela platéia, retorna ao palco.
Como se a droga que usou estivesse perdendo efeito, ele vai diminuindo o ritmo, os gestos vão se sexualizando. Emerge um corpo andrógino, que logo se assumirá feminino - o corpo, não a pessoa. A feminilidade é interrompida por um corpo masculino antagônico: a marcha, a continência, o falar grosso. É no seu oposto que o protagonista afirma seu desejo. Dessa contradição parece emergir sua loucura: após isso ele pega um tecido, amarra à cintura - tem uma saia -; a seguir põe-no sobre os ombros - o transforma em manto - e proclama "eu sou o imperador!". No fim, cobre a cabeça e lhe resta a coberta com a qual se escondem os miseráveis. Arranca-a, faz o sinal da cruz, grita - "essa é a minha natureza!".
Delira. Afirma sua individualidade, sua desrazão o faz almejar ser sujeito numa sociedade reificada. Gesticula agressivo, fala sozinho, discute com seus espectros, desafia suas alucinações: "então me mata! Então me mata!". Não se acomoda em lugar algum - não sabe se fica no palco, se fica na platéia. O corpo colapsado não consegue mais seguir o ritmo da música - que segue alta e intensa - e das luzes - cujos focos seguem piscando de diversas direções. A fissão entre o corpo do artista e o espaço que o rodeia causa um incômodo na platéia, que até então mergulhava ela também no ritmo alucinado da música e dos movimentos. Também eu colapso, acompanho o desfazer de Dielson, que não consegue mais acompanhar o ritmo imposto pela música.
Ele pára, se ajoelha, chora, ri. A música e as luzes dão uma pausa. Os gestos se tornam mais leves - segue a necessidade do movimento -, perdem aquela carregada carga sexualizada do início. É como se tentasse se descobrir, para além de rótulos, para além do provar para o Outro. Porém ainda há o Outro nessa busca solitária. Ele pergunta: "é aqui, deus, que você quer que eu fique?" - eu me questiono: quem é deus, que Dielson, como tantos outros, evoca? Com quem se dialoga quando se questiona as alturas? Ele parece achar seu lugar numa réstia de luz, vinda de detrás de grades.
A música eletrônica retorna, num ritmo mais tranqüilo, longe das batidas impositivas do início. Dielson já não traz o sorriso vidrado - sua face pode variar de expressão. Ele vai diminuindo seus movimentos, até calmamente parar. Uma pausa de quem reflete, de quem decidiu ficar parado, não de quem é coagido a ficar assim. Ele ensaia não mais movimentos, mas posições - de como se pôr diante desse mundo alucinado que nos força a nos movermos sem sentido e até a exaustão?
O final é redentor para Dielson - não para nós. Nós saímos da sala Jardel Filho para seguirmos dançando o ritmo alucinado que um mundo louco nos impõe - até nosso colapso. Ou até termos coragem de enfrentá-lo para afirmar, sem nos violentar, nosso desejo de nos descobrir e de estar com o Outro.

28 de março de 2015.


quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Uma flor no viaduto Santa Ifigênia [Diálogos com a dança]

"Se eu falar, não acreditam", comenta o vendedor da loja de instrumentos musicais sobre o porquê estar gravando com seu celular o que se passa defronte a loja. Por um momento fico a me questionar ignorâncias: será que ele é de tão pouca confiança, ou será que seus interlocutores só conhecem a dinâmica previsível e pasteurizada dos shopping centers? Acima da loja, no primeiro andar do prédio, uma mulher surge na sacada, talvez apenas por rotina de ver o movimento da cidade, talvez atraída pela guitarra que não toca nenhum sucesso musical e ainda assim se destaca. Logo outras três pessoas estão com ela, assistindo. Pedestres passam, alguns indiferentes, outros observando sem diminuir o passo, outros param para tentar entender o que é aquilo - ou talvez não seja questão de entender, mas de apreciar, tão-somente -, um vendedor ambulante de carrinho de controle remoto faz oitos com a Ferrari - e assim seguirá, salvo quando o rapa passar -, um segundo se protege do sol escaldante na fina sombra do poste de luz, enquanto oferece água mineral, pouco adiante outro guitarrista toca, esse, sim, sucessos, clássicos do rock, na sua roupa prateada. É em meio a essa paisagem banal do viaduto Santa Ifigênia, no centro de São Paulo, que cinco dançarinos ocupam-no e interferem no caminhar de seus transeuntes.
Novos Experimentos, da iN SAiO Cia de arte, se insere muito bem naquele ambiente urbano, os protagonistas sabem lidar com a instabilidade de interagir com um público que não está ali para assistir a dança ou a qualquer manifestação artística. A inserção, entretanto, não é feita sem perturbar esse ambiente: ela pode ser sentida nos espaçosos átrios formados nos trechos em que os dançarinos se concentram: há algo especial, extra-ordinário acontecendo ali - a arte não está no quotidiano da cidade, das pessoas. Essa ruptura do ordinário traz reações as mais diversas, da ranzinza indiferença ao acompanhamento atento, apesar do sol e da pressa. Ranzinzice que eles muitas vezes são capazes de atenuar, pressa que eles conseguem estancar - logo no início, quando as duas dançarinas caminhavam lentamente uma em direção à outra, uma mulher claramente apressada não conseguia continuar sua marcha, na ansiedade de saber o que viria daquele encontro, dois passos, parava, outro passo, estancava, e as dançarinas em seu passo lento, ela se virava para assistir, até, enfim, ambas se encontrarem, a tensão se resolver e ela poder seguir seu rumo. Ou quando o carro de polícia teve de esperar o dançarino que não interrompia seu bailado para a passagem da ordem. Diferentemente da performance Os cegos, na avenida Paulista [j.mp/cG23dez13], Novos Experimentos pretende romper com o quotidiano num confronto com a banalidade, não com as pessoas que a vivem. Não se pretende agressiva, apesar de não deixar de ser crítica: acredita que os freqüentadores do centro são capazes de mais que olhar, são capazes de ver - basta um estímulo que os tire do cinza da rotina.
Foto: Fabiana Choi [fafayc.wix.com/fabianachoi]
O porém de sair com o intuito deliberado de assistir a uma apresentação dessas, a uma intervenção no espaço urbano, na ordem do dia, é não ser pego de surpresa, é não ser você a buscar alguém quem te explique o que se passa ali - é apresentação mesmo, já que não há nenhum círculo ou semi-círculo de espectadores, apenas cinco dançarinos espalhados, um guitarrista, quatro ou cinco fotógrafos e pessoas passando, algumas se detendo alguns poucos minutos? Me pego observando mais que meu habitual os espectadores, as pessoas que passam, os vendedores que comentam, o carrinho de controle remoto que faz oitos. Passa um rapaz numa bicicleta de entrega, distraído com seu celular - logo ele passará de novo, sem ser sugado pelo celular atentará para aquela estranheza e ficará um tempo a assistir à dança. Lembro do teatro da Vertigem, "A última palavra é a penúltima", apresentado na passagem subterrânea defronte o teatro Municipal - a diferença é que não estou preso em uma vitrine, e na minha frente (e ao meu redor) passam pessoas em seus trajes de todo dia, não atores.
Porém, não ser pego de surpresa pela dança não quer dizer que não pode ser surpreendido durante ela: uma mulher, já passada dos sessenta anos, acompanhada de uma criança, olhos cheios d'água, pede um abraço a uma das intérpretes. "Não tive como negar", comentou ela, ao fim da apresentação. Como não há como negar que para as pessoas que passaram pelo viaduto Santa Ifigênia ao meio-dia desta quarta-feira alguma coisa mudou, algum atrito no seu quotidiano aconteceu, algum colorido exótico elas tinham para reportar a seus próximos no fim do dia. Em que reverberará essa experiência? Impossível saber, pode morrer junto com o dia, mas pode ter sido uma flor que furou o asfalto.

São Paulo, 18 de dezembro de 2014.


domingo, 28 de setembro de 2014

Dark Rooms ao nosso redor, dentro de nós. [Diálogos com a dança]

Entre o provocante e o anestesiado. Entre o infantil e o adulto. Entre o lúdico e o violento. Qual meio é esse em que se situa as salas escuras onde pessoas se encontram e se penetram, sem saber quem é o Outro? Os sentidos à flor da pele - mas quem habita essa pele? Entre a obrigação de gozar e o desejo de dilapidação do corpo alheio, há um sujeito que age ou apenas um corpo que reage? Esses são alguns questionamentos que _DARK_ROOM_, montagem de Claudia Paula para a iN Saio Cia. de Arte, provoca no público.
O palco fechado dos quatro lados e vazio no seu interior é ocupado por cinqüenta espectadores, junto com seis dançarinos e dois técnicos. As cenas - se é que podem ser chamadas assim - ocorrem em algum lugar dentro desse limite, entre os espectadores, que se movimentam para onde a cena aparentemente chama, e também se movem livremente pelo espaço. Nesse espaço algo abstrato, algo familiar - a maioria ali conhece, se não dark rooms, baladas que se assemelham ao palco -, há uma certa dose de risco, tanto para os intérpretes - um homem na meia idade que resolve apalpar uma intérprete, ou algum espectador que decide se juntar aos seis corpos suados -, quanto para o público - um chute no joelho, uma cabeçada no ombro, para ficar nos exemplos que me tocaram. 
Uma dark room é - no imaginário, ao menos - um lugar para quebras. _DARK_ROOM_ também provoca as suas: pausas na música, silêncio para conversas, interrupções do movimento - espaços para o encontro com o Outro, ou apenas momentos de constrangimento? Fico com a segunda opção: a música do tempo infinito não pode parar.
Não raro as cenas começam com certa leveza: jogos infantis ou adolescentes por corpos já feitos - o puxar a roupa ou o tapa de brincadeira, a alegria abobalhada adolescente -, porém não tarda tais brincadeiras perderem sua graça e não resta delas nada mais que agressividade: o tapa na cara, o empurrão que derruba, o apalpar violento: a descoberta do corpo Outro se transmuta em dilapidação desse corpo, caminho e empecilho para o gozo.
Em que medida o mero contato de pele satisfaz nossos desejos de reconhecimento? Esses contatos são capazes de reverter o desejo de aproximação em aproximação do desejo? Há sujeito por trás daqueles corpos que dançam? Há sujeito dentro daqueles corpos que observam? Ignorar o Outro permite aprofundar em si? Em que medida em nossas dark rooms particulares não fugimos desse contato com o Outro e, conseqüentemente, do contato conosco? O narcisismo desesperado nosso de cada dia é capaz de produzir algo mais que excitação, insatisfação, violência ou apatia? 
_DARK_ROOM_ é mais que um exercício de questionamento, é uma afronta à nossa normopatia, nossa capacidade de adaptação e aceitação. Precisa nas perguntas, _DARK_ROOM_ nos abandona sem respostas.

São Paulo, 28 de setembro de 2014.

ps: impossível não lembrar de alguns livros após assistir ao espetáculo. Três pulularam em minha mente: A música do tempo infinito, do psicanalista Tales Ab'Saber; Mal-estar na atualidade, do também psicanalista Joel Birman, e Amor líquido, do astro pop da filosofia, Zygmunt Bauman.

domingo, 20 de abril de 2014

Androgyne: a sagração da máquina, a resistência do fogo.

Um homem atrás de mim disse que sentiu angústia diante do que havia presenciado. Ainda que não seja exata, essa talvez seja a melhor palavra para explicar o aperto no estômago que me deu "Androgyne - Sagração do fogo", solo de Alda Maria Abreu, da Taanteatro Companhia. Pelo título da obra, era de se esperar uma discussão da questão de gênero, da indefinição entre o ser homem e ser mulher. 
E é essa a primeira impressão, quando Alda surge no palco em traje masculino, proletário, do início do século passado: calça terno e boina. Essa primeira impressão dura pouco: o olhar vidrado, o sorriso baço, o gestual rígido, a maquiagem nas mãos ampliam a questão daquela pessoa de difícil definição: homem ou mulher? Adulto ou criança? Humano ou boneco? Pessoa ou máquina? O som de bebê, distorcido, repetido, metalizado, enquanto a dançarina desaparecia no palco totalmente escuro, anunciava o nascimento do sujeito do futuro (ao menos para os padrões do século XIX, ainda vigentes, embora disfarçados): o homem-máquina. 
O humano a serviço da máquina (literalmente falando, mas também da "máquina social"), muito bem definido em seus papéis. Três projetores projetam trés sombras de ângulos diversos, sombras duras, muito bem definidas, em que é possível ver os fios de cabelo de Alda. Contornos precisos como precisos são os movimentos a serviço da máquinas; contornos rígidos como rígida é a moral exigida para o bom andamento da máquina (do organismo) social; triplo em seus papéis, mas todos delimitados, separados, divididos - ainda que advindos do mesmo sujeito. A formação do sujeito - a disformidade do humano. A criação de um monstro?
Em dado momento o duplo de Alda deixa de ser mera sombra: numa projeção em vídeo, vemos ela tirar seu paletó em meio a natureza. Ela acompanha o gesto do palco, adentra a tela e some. Alice através do espelho? Fuga para a fantasia? Alda sugada pelo espetáculo? Ou o contrário, ela para fora da máquina espetacular? No vídeo a ampliação do conceito de androginia para a androginia homem-máquina ganha outros aspectos: androginia homem-animal e homem-natureza. O clima tenso persiste, enquanto assistimos a essa perda de identidade humana: Alda se zoomorfiza, se desfaz do ser na lama. A impressão que dá é que o vídeo é longo, não por ser chato, mas por ser mais angustiante (aquele aperto no estômago) do que a dança. 
Alda volta. Nesse seu retorno não há mais polaridades, dicotomias, seja com a máquina, seja com o gênero, seja com a natureza. Seu corpo perde o fato sisudo e ganha cores pintadas pelas luzes. As sombras deixam de estar separadas, se misturam, perdem os contornos rígidos, e ganham elas também cores. Não chega a ser uma redenção - antes um existir livre de definições, de carapuças, de amarras, de correntes. Alda é tudo e por isso nada a define nesse estado. Por isso mesmo Alda é um perigo: o anti-cristo, como simbolizada na sua crucificação de ponta cabeça com uma cruz com Cristo projetada ao fundo. Um julgamento religioso-moral-social a tira dessa existência indefinida (mas plena). Ela só tem direito de existir enquanto definida, delimitada - a androginia homem-máquina. Voltam as luzes dos projetores, as sombras duras, porém falta o corpo dócil que se deixa definir. Há um corpo que se contorce e se retorce, incapaz de ser menos do que é, e não projeta mais do que a sombra de uma massa amorfa - um isso que um dia teve a potência de ser sujeito, mas que a sociedade sujeitou a ser uma forma dócil delimitada em fôrmas impostas. 
Numa constelação de possibilidades, a forma de não se entregar é se consumir como papel no fogo.

São Paulo, 10 de abril de 2014. 


Teaser Androgyne from Paulo Bueno on Vimeo.

domingo, 30 de março de 2014

Da tensão ao tédio: "Colônia Penal", de Sandro Borelli e Cia Carne Agonizante.

No fundo do palco, à esquerda, cinco pessoas à mesa comem, bebem e conversam. São dois homens, duas mulheres e um boneco na ponta da mesa, todos muito masculinos em seus ternos. No centro do palco, um ventilador com três grandes pás projeta sua sombra intermitente. Entra outro bailarino, vestido de camiseta vermelha e moletom. Há um clima de tensão. Um dos homens da mesa se levanta e vai até ele. Entre agressões diretas, agressões à distância - em que o bailarino segue comandos de mão - e sugestões de violência sexual, em cinco minutos o espetáculo diz tudo o que tem a dizer. O que resta são pequenas variações em cima do mesmo - tautologias do óbvio. Resultado: o tédio - e a tortura do espectador por mais de uma hora diante de um som alto de teclas de piano sendo violentadas. Falo do espetáculo "Colônia Penal", do coreógrafo Sandro Borelli e da Cia Carne Agonizante.
Fui assisti-lo sem me inteirar sobre o que versava exatamente. O cartaz no CCSP fazia referência aos cinqüenta anos do golpe civil-militar de sessenta e quatro. O nome me aludiu imediatamente ao homônimo conto de Kafka. Ao ver o panfleto de apresentação, isso estava explícito: "da obra de Franz Kafka". A leitura do conto demonstrada na apresentação, contudo, é bastante precária, para dizer o mínimo: "O escritor Checo faz uma análise crítica sobre o instituto da pena, analisando os seus limites, a sinistra imposição de penas baseadas em castigos corporais pelo Estado e ilustra com clareza e precisão as barbáries que constituíam as técnicas medievais na aplicação desses castigos punitivos. É uma crítica aberta aos regimes despóticos nos quais o processo judicial e o direito de liberdade são subjulgados". Quase "Kafka um acadêmico da história das ditaduras" (para não falar na confusão de pena, Estado, Idade Média), ao invés de um artista desnudador das burocracias democráticas de direito. Por sorte a coreografia não segue esse mesmo caminho, tem um clima que remete à ditadura brasileira da segunda metade do século vinte.
Retomo a primeira cena. Estão os cinco à mesa - ponto alto do espetáculo -, chega o jovem de moletom. Um dos homens se levanta e começa a sessão de tortura, inicialmente com gestos que conduzem o torturado de longe, depois com contatos corporais, chegando a simulações de violência sexual - que não soam tão violentas assim, visto que o bailarino se põe de novo na posição inicial, como um cão de Pavlov acostumado aos choques. O bailarino não é inerte, porém de uma passividade que o deixa pouco acima da inércia. As agressões às vezes parecem fazer alusão a torturas, ao pau-de-arara, por exemplo; no geral parece que estamos diante de uma sessão de sado-masoquismo soft - cuja regra primeira é que toda prática seja "sã, consensual e segura". No meio do duo há tempo para o homem tirar o paletó, comer um pedaço de pão, antes de voltar à tortura. Os demais quatro seguem à mesa, comendo, bebendo, fumando e conversando, indiferentes ao que acontece ao lado.
Se após os vinte longos e cansativos minutos do primeiro duo engravatado-jovem de moletom a coreografia se encerrasse, eu diria que é uma dança boa, que abre questionamentos, uma série de interpretações: poderia ser a tortura acontecendo no porão das pessoas de bem que jantam despreocupadamente - e não porque não saibam, mas porque não se importam, mesmo -; poderia ser a tortura psicológica das classes superiores às classes subalternas; poderia ser uma alusão à educação: o jovem que se acerca à mesa sem a toalete e a etiqueta do momento, que vai aprendê-la no corpo, a respeitar a hierarquia, a obedecer, a ser passivo, a se submeter. Contudo, a repetição da cena um outras três vezes - com variações insignificantes - acaba com qualquer potência da obra: bem dizia Debord que o tédio é inimigo da revolução - eu diria que é também do questionamento.
Parece que Borelli tinha preocupações com o tempo de duração de sua coreografia - como se espetáculo bom fosse espetáculo longo -, mesmo que tivesse pouco, muito pouco a dizer (admito: antes isso que falar as abobrinhas do texto de apresentação). É no que ele peca: é demasiado sintético no que tem a dizer, excessivamente prolixo no dizê-lo. Pecado mortal, "Colônia Penal" é tortura para o espectador.

São Paulo, 30 de março de 2014.

domingo, 17 de novembro de 2013

Prisioneiros do próprio corpo

[livre interpretação de “Corpo sobre tela”, de Marcos Abranches]

No canto direito, ao fundo, um homem de camisa social e gravata. Está sentado, pega a garrafa de vinho que está sobre a mesa. O braço treme, entorna a garrafa antes da boca, o líquido cai sobre seu rosto, mancha sua roupa, se espalha pelo chão – pouco sobra para beber. Parece uma cena um tanto batida, porém há algo a mais ali. Não, não é aquele banho de vinho de celebração. Soa antes nossa incapacidade de relaxar, se divertir, celebrar verdadeiramente. O cenário é feito de sete painéis meio a la Pollock – a maioria deles com muito espaço em branco, como se se tratassem de obras inacabadas –, e luminárias também coloridas (a iluminação é de lâmpadas fluorescentes). Ele se levanta, os passos descompassados, os braços rebeldes, contorcidos, como se ele não tivesse controle do próprio corpo. Começa a tirar a roupa. A prisão de nossas máscaras sociais, penso. Fica apenas de ceroulas. O corpo segue seu movimento descompassado, teso e maleável. Lembro da companhia Taanteatro e sua “mandala de energia corporal”. Lembro de meu falecido avô, que teve um avc e por nove anos não se comunicou e não movimentava um dos lados do corpo. Lembro de Pessoa, “O dominó que vesti era errado./ Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me./ Quando quis tirar a máscara,/ Estava pegada à cara./ Quando a tirei e me vi ao espelho,/ Já tinha envelhecido./ Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado”. Me dou conta o quanto somos prisioneiros dos nossos próprios corpos, o quanto aceitamos limitações e mutilações em nome de alguma pretensa normalidade, e depois o quanto precisamos lutar para conseguir nos livrar da prisão que adentramos contentes. Por que nunca nos avisam que o caminho da normalidade é a rota do abatedouro? Marcos Abranches se movimenta pelo palco. O corpo sempre tensionado e os movimentos descoordenados são acompanhados de uma música que reforça o clima de agonia (tanto na acepção de aflição quanto na de luta), gritos guturais e de falas distorcidas, às vezes difíceis de entender. Na frente, à esquerda, uma mulher toda de branco, traduz as falas e gritos para gestos, sinais (libras?). Tem uma aparência impressionantemente plácida e calma. É o contraponto de Abranches. Não consigo pensar o que seria toda aquela serenidade diante daquele corpo agônico: sei que também se destaca, também perturba. Ele vai até a frente do palco, onde um pote de tinta branca o espera. Se pinta todo de branco – a língua inclusive. Sobe numa caixa, faz uma pose que lembra cachorro: na sociedade do espetáculo e da imagem, em que todos posam o tempo todo (sorria, você está sendo filmado), os ideais gregos que tentamos mimetizar nos rebaixam a cães adestrados? Ou simplesmente nos impedem de viver? Lembro de Pirandello: “A gaveta está ceia de fotografias suas. Ela me mostrou várias, antigas e recentes. - Todas mortas – lhe disse (...). Posar é como se tornar estátua por um momento. A vida se move continuamente e nunca pode ver a si mesma (...). A senhora só pode reconhecer-se posando: estátua sem vida. Quando alguém vive, vive sem se ver (...). A senhora fica tanto tempo se olhando nesse espelho, em todos os espelhos, porque não vive”. Abranches volta para a frente do palco, começa a se pintar de azul. “Todos os dias, pela manhã, me pinto de branco para então descobrir novas cores”. Depois do azul, o vermelho. O corpo sempre tensionado sem muita coordenação (mais coordenado na hora de se jogar tinta), se atirando no chão sem muitos receios. Noto que meu corpo também está tenso, acompanhando o dançarino. Jogar sobre si todas as cores – o branco – para ir se desfazendo daquelas que não lhe cabe naquele dia? Ser tudo ao amanhecer para ir se moldando conforme o desenrolar do dia? Depois do vermelho, o amarelo, jogado primeiro na mulher, sobre a qual ele rola em cima. Minha gastrite chega a dar alguns sinais, tento relaxar. Action painting? Havia visto uma performance desse tipo em um Festival de Apartamento, em Campinas – sem originalidade e sem vida, absolutamente dispensável. Aqui é diferente. Abranches se joga então o verde, rola pelo chão, caminha um tanto mais. As cores vão perdendo o vivo que tinham logo ao encontrar seu corpo, se tornam uma massa escura informe. Começa a distensão – ainda que persista o corpo tenso e os movimentos sem jeito. Vai até o fundo e se enrola em um dos painéis, que solta e cai. Se debate sob o painel, e grita “uhul” quando se desvencilha. A tensão praticamente acaba. Ele ressurge, o corpo ainda tenso, mas menos, os movimentos desengonçados. Acho que o espetáculo perdeu o momento certo de acabar: a quebra da tensão ajuda a deglutir melhor o espetáculo, mesmo antes d'ele acabar e cada um seguir para sua casa. O dançarino retira do centro do palco uma tela, pintada durante sua performance – daí o título, “Corpo sobre tela”. Põe-na em um cavalete, dá um ajuste final com tinta branca. Não precisava desse final feliz, podia deixar o incômodo ao público – já faço minha ante-crítica –, ainda que esse fim não desabone o trabalho impressionante do artista. Ele se retira para trás dos painéis (todos pintados em suas apresentações, dezenove com aquela). Há ainda um longo momento de silêncio até começarem os aplausos – faço questão de aplaudir de pé. Abranches volta, o corpo já sem toda aquela tensão e... os mesmos movimentos descoordenados! Só então me dou conta de que ele não os representava! E não sendo só representação, deixo de interpretar o tal final feliz como uma mensagem de “é só tentar para conseguir”: esse final é a afirmação de uma pessoa em sua totalidade: uma mente-corpo que, à despeito de suas dificuldades por conta de uma paralisia cerebral, se afirma como totalidade; diferentemente do que se vê em muitos corpos famosos e invejados – modelos, atores, atrizes –, que não passam de corpos ocos. Descobrir que não era só uma representação faz com que a dança, que já me parecera fantástica, se transforme em dilacerante: Abranches transforma em potência o que é visto como uma fraqueza. Estaria relegado pela nossa sociedade a um peso inútil e incômodo e, ao invés disso, se supera e nos mostra que somos todos feitos do mesmo barro: eu, sem problemas de movimento, me identifiquei plenamente com sua atuação; ao mesmo tempo que joga na nossa cara que nossa pretensa liberdade e saúde oculta que temos nossos movimentos tolhidos e normatizados. Que ele desfruta de cores para colorir suas horas enquanto nós temos nosso olhar embotado para as luzes do dia-a-dia. E o que era aquela mulher tão serena no canto, traduzindo em gestos seus gritos? O recado de que aquela agonia era apenas luta e não aflição? Que dentro daquele corpo teso estava uma alma calma? Que, ao contrário do que eu imaginava, ele representava, sim: não suas dificuldades, mas as nossas limitações?
Olhei para o lado, para os amigos que me acompanhavam. Tínhamos nós, ao fim do espetáculo, dificuldade para articular a fala.

São Paulo, 17 de novembro de 2013.

sábado, 16 de novembro de 2013

Corpo em movimento

[livre leitura de “Onde o oposto faz a curva, de Patrícia Árabe]

A dançarina caminha em círculos pelo palco cercado pelo público. É curioso notar o monótono girar de cabeças de meus pares, necessário para acompanhar o caminhar sem sentido e sem pausas de Patrícia Árabe. Não me exige muito para estabelecer uma relação com o transtorno obsessivo compulsivo (TOC). Mas essa primeira parte de “Onde o oposto faz a curva” me remete também a algumas teses de Paul Virilio e Ernst Jünger, sobre o imperativo de se estar em movimento: vivemos em uma sociedade que por mais que não esteja em guerra, é calcada nos princípios que a norteiam desde o século passado, principalmente após a segunda guerra: a guerra em permanente latência, toda a sociedade, todos os seus cidadãos preparados, armados “até a medula, até o mais fino nervo da vida”. Na guerra de movimentos, estar parado é ser um alvo fácil, daí que parar não é um opção aos viventes do século XXI. Esse corpo compulsivo, em movimentação sem fim, é substituído pelo corpo futilizado, banalizado: um corpo que aparentemente pára, aparentemente reflete: aparentemente. De fato é só um corpo subinvestido do pensar compulsivo, que anda em círculos sem sair do mesmo: um corpo que reflete idéias já postas, hegemônicas, e o faz como uma forma de aparecer – daí fazê-lo para o vídeo, gravar sua própria experiência de, parada, entregar seu peso ao chão, como dizem que é interessante.
Em movimento ou parado, o mesmo corpo capturado: há alternativas?
Patrícia Árabe indica que sim: o corpo em consciência. O corpo em movimento de auto-reflexão: corpo com marcas (não vistas num primeiro momento), que ao buscar a autoconsciência se move mas também pára, e consegue permanecer parado em e permanecer calado, enquanto observa – a si e ao seu entorno.

São Paulo, 16 de novembro de 2013.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Discurso fora de tempo

Há incômodos e incômodos que uma obra-de-arte pode causar no seu receptor. Há aquele incômodo que aflige ao sair da sala de espetáculo ou exposição: que mundo é esse que estou vendo, que não é o mesmo que via ao entrar? Às vezes de modo sutil, às vezes em detalhes até então tidos por insignificantes, a obra-de-arte, o espetáculo, nos devolve ao mundo com alguma nova inquietação, com uma nova fissura diante dessa realidade que levamos ordinariamente, no modo automático, para não ter que lidar com os golpes que nos atingem a todo instante. E há aquele incômodo que, ao fim da apresentação, nos faz pensar que alguma coisa no espetáculo está fora da ordem, fora da nova ordem mundial: não altera significativamente nossa percepção do mundo, em que a sucessão dos dias em uma cidade segue com a mesma naturalidade com que Terra gira ao redor do sol. Foi com essa sensação que saí da Galeria Olido, após a apresentação de Angu de Pagu, da Companhia Sansacroma, companhia de dança radicado no extremo sul da capital paulistana. Não que a apresentação seja ruim – pelo contrário – mas no fim o foco acaba ficando na obra.

Ao tratar da vida de Patrícia Galvão, a ativista comunista de meados do século XX, era de se esperar que houvesse um forte componente político na obra. Assim foi. Ora fiquei tentado a achar que a companhia se restringia ao ambiente da época; ora que tentava um diálogo com o presente – a começar pela distribuição do “Manifesto da antropofagia periférica”, do poeta Sérgio Vaz. Se era esse o caso, o uso excessivo da palavra, ainda mais quando se tinha um trabalho corporal de grande expressividade, me causou certo incômodo: o discurso de 1930 trazido para dialogar com 2013 perde muito do seu sentido, por mais que os problemas verbalizados persistam. Ouvir “temos que ir para as ruas” em uma sala de teatro soa o equivalente ao “consuma com consciência” de alguns anúncios publicitários: pode aliviar a consciência de alguns, mas é risível na sua efetividade.

Com a queda do bloco soviético, o discurso hegemônico se impôs com tamanha força que ficou muito difícil opôr a ele um contra-discurso, ainda mais quando esse discurso de oposição foi forjado em outra época, num contexto muito diferente. Ele acaba soando ultrapassado, não importa que as condições de reprodução social sejam, na sua base, as mesmas.

O poder atual autoriza um sem número de falas e atitudes de oposição, à esquerda e à direita. O que ele não tolera é a recusa.

Diante desse poderio, mais efetivo que um contra-discurso parece ser a desconstrução do discurso hegemônico, levá-lo ao extremo, até sua própria contradição. É o que foi feito, por exemplo, pelos Nini, na Espanha: a recusa da lógica do trabalho, negado pela própria sociedade que o defende como único valor: estamos desempregados, iremos nos desocupar juntos em praça pública, ao invés de buscar empregos que não existem e nos culparmos por uma condição que não somos responsáveis. Os saques de Londres, em 2011, também podem ser vistos como a recusa do desejo sempre postergado em favor da realização do consumo aqui e agora: não nos mataremos de trabalhar sonhando um dia em conseguir Apples, Nikes, Nokias para sermos felizes: temos direito à felicidade, e se ela se encontra nesses produtos, seremos felizes já (quem sabe se tivesse havido um segundo momento, esse movimento conseguisse se consolidar como uma contestação política mais efetiva, mas a repressão foi forte). Nestes tristes trópicos, movimentos como o MST, MTST, Rádios livres e congêneres são a recusa do discurso defendido por nossas elites, de que habitamos um país moderno, avançado e integrado – o modo menos “pós-moderno” desses movimentos, reivindicando direitos básicos é prova da nossa modernidade de retaguarda.

Nestes novos tempos, de fim das ideologias – pela vitória da ideologia do pensamento único – não faz sentido, fora do contexto de fábrica, locais de trabalho, grupos reivindicatórios, pregar a união das pessoas: ela se sentem unidas de alguma forma, na sua torcida no Big Brother, nos seus compartilhamentos de “Fora Renan” no Facebook, na sua ojeriza a um ou a todos os partidos políticos: há uma série de opções de falsa união disponibilizadas pelo sistema – apresentando como perigoso todo aquele que não é de um núcleo muito próximo, ou os bodes expiatórios (com ou sem razões) de sempre, com a vantagem de tais opções não exigirem esforços –, o que obscurece a real solidão de cada um defronte a tv, o computador, o palco.

Se tivesse deixado ao público o silêncio que hoje o acomete em sua vidinha classe média (por mais que esperneie em redes sociais e xingue atendentes de mercado), se oferecesse a violência sofrida por Pagu como uma variação da violência que atinge (com poucas variações) moradores da periferia, talvez a Cia Sansacroma tivesse sido mais feliz na sua crítica.

São Paulo, 18 de fevereiro de 2013.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Conquistas, encontros e solidões

Um espetáculo solo numa coreografia que pretende tratar do encontro amoroso, da relação com o Outro. Soa curioso, mas a escolha de Sílvia Geraldi em Todas as tardes está longe de qualquer absurdo: podemos até ser uma inexperiência crônica na arte da conquista (como este que escreve), porém estamos longe de sermos virginais no encontro com o Outro: seríamos antes síntese dessa infinidade de encontros que foram nos formando, conformando, transformando no correr da vida, desde (via de regra) o encontro com o Outro-mãe.

Encontrar o outro é perder-se um pouco de si. Contudo, perdido de si é possível encontrar o Outro? Essa perda que parece tão sintomática da atualidade. Que encontros nos permitem as receitas dos manuais de sedução, que “dão dicas” (porque “ensinar” seria chamar claramente o leitor de ignorante) de flerte, de postura corporal, de frases-chave, de olhares cronometrados?

Não há muitos elementos de palco em Todas as tardes: um gravador portátil e três molduras de tamanhos variados, com rodinhas – com as quais Sílvia interage em alguns momentos. Numa dessas interações, com a moldura um pouco mais larga e alta do que ela, põe-se a correr com o acessório, deixa se levar por ele, apóia-se nele como se apoiasse no ombro de alguém – e a moldura escapa, evitando a entrega completa. Ao fim, dançarina e Outro-moldura acabam frente a frente, como em um espelho: encarar o Outro talvez seja encarar o reflexo de si mesmo. E Sílvia hesita se deve atravessar esse espelho: seria que isso seria a superação de si em direção ao Outro? Ou seria o consumo de si pela própria imagem? Seria o enquadrar-se? Ou seria a descoberta que para além não há nada – ao invés de um país maravilhoso, o deserto do real? Sílvia atravessa para logo retornar, desencontrada.

Táticas de guerrilhas, gestos ensaiados, ordens de não planeje como conduzir a conversa a abordagem: a exigência de confiança e firmeza, e a realidade de hesitações e insegurança. O fato da intérprete não ser uma jovem reforça a sensação de que não há fórmula pronta, de que cada encontro é um ato solitário de atirar-se até o Outro – ou pode ser um estar sozinho a dois, como diante da imagem fria no espelho.

São Paulo, 02 de fevereiro de 2013.