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domingo, 14 de agosto de 2016

Estudo sobre a meia-idade na segunda década do século XXI [Diálogos com o teatro]

Dentro de uma moldura masculina, na pela de quatro homens, Estudo sobre o masculino: primeiro movimento, residência artística de Antônio Duran, dramaturgista do Teatro da Vertigem, fala sobre a meia idade em quatro sujeitos que não seguiram o "caminho natural da vida" - que nada tem de natural, é antes um fluxo socialmente imposto e cada vez mais caduco na modernidade tardia.
Quatro atores, entre 45 e 55 anos, heterossexuais. Deveriam estar estabelecidos, casados - ou ao menos terem sido -, os filhos começando a caminhar pelas próprias pernas, e a atenção voltando novamente para si e sua vida, com a fatídica pergunta: "que fiz eu da minha vida?", ou melhor, "que deixei eu fazerem da minha vida?" - crise retratada em muitos filmes, como Beleza Americana (Sam Mendes, 1999) ou A era das trevas (traduzido como A idade da inocência no Brasil, Denys Arcand, 2007). Não é esse o caso que Estudo sobre o masculino retrata: o caminho heterodoxo dos quatro, sem terem feito nenhum comprometimento maior ao longo de suas vidas, faz com que muitas vezes surja a pergunta se não deveriam ter seguido o tal "caminho natural". Por não seguirem o fluxo, parte do drama dos quatro é não poderem fugir à responsabilidade de estar aonde estão: se não é o ponto aonde gostariam estar, é aonde conseguiram chegar com os percalços que a vida põe - não deixaram de tentar para agradar aos pais, para se adaptar a um padrão social. Pelo contrário, a história que contam é a de quem passou a vida fugir da "vida de merda" que lhes era reservada: bom salário, bom marido, bom pai, almejando ser o funcionário do mês e que seu filho consiga fugir desse paraíso feito de obrigações e privações. Em momentos nos perguntamos se conseguiram realmente fugir, ou apenas postergar.
Se comprometeram pela metade com o sistema, sem fracassarem: estão ali, de terno e gravata, a mostrar que em seu trajeto ganharam respeito - ao mesmo tempo falta a calça e a camisa, a dar prova de sua rebeldia e liberdade, ainda que limitadas. O problema de sua heterodoxia, feita de uma crítica pela metade, é que o corpo começa a demonstrar os sinais do tempo: a barriga, os cabelos brancos ou ralos, a falta de fôlego: "só ao me ver no espelho vejo que envelheço", diz um deles. Não viram o tempo passar, mas vêem a velhice se aproximar, por isso têm pressa, por isso repetem seguidamente que querem mais tempo, por isso correm. A velhice soa um fardo: numa sociedade em que "velho" é ofensa, e em que juventude é valor absoluto, não foram críticos o suficiente para fugir dessa valoração absurda e tida como natural, não souberam envelhecer, encarar os anos que se acumulam invariavelmente sobre as costas com serenidade, e na meia idade não sabem lidar com as limitações que o corpo impõe. Talvez por conseqüência de terem assumido esse valor social, nem o corpo nem os desafios que a idade impõe: em certos momentos parecem adolescentes ainda crus da vida - e que apontam seguir na mesma direção quando têm pressa, como se precisassem usar um certo "capital juventude" que têm estocado e precisa ser gasto antes que passe da validade - antes que passem à invalidez. 
Em dez anos estarei eu na meia-idade. Pelo que caminhei até aqui e para onde aponto, também eu terei seguido por um caminho heterodoxo, crítico da sociedade pela metade - o suficiente para pleitear algum sucesso. Também eu tenho pressa, também eu corro - desde já. Após assistir Estudo sobre o masculino, pus a me questionar: fujo da morte ou da velhice?


14 de agosto de 2016



Estudo sobre o masculino: Primeiro movimento from Andreia Teixeira on Vimeo.

domingo, 24 de julho de 2016

Sujeitos-ruína [Diálogos com o teatro]

Diante de um rio que não mais existe - engolido por uma serpente de asfalto onde noite e dia rugem máquinas abastecidas com a decomposição de tempos imemoriais -, em um cenário que emerge dos destroços de uma vila, ela própria erigida com os escombros de um antigo teatro de São Paulo - esta cidade que hoje habito, feita das ruínas de muitas São Paulos em que mal se vêem vestígios, afogadas pelo novo-logo-velho movido pela força da grana -, ouço histórias de fugitivos de um país onde negros tiveram o desejo de direitos brancos e vêem gerações e gerações pagarem com penar equivalente à escravidão da qual se livraram a audácia de tentarem romper com a maldição européia que recai sobre a cor de sua pele. Fragmentos de vidas, pedaços de sonhos, restos de esperanças. A busca de algum espírito ancestral a guiar uma vida nova nesta cidade que perece dos mesmos velhos males sob roupagem pós-moderna. Pessoas que almejam o direito de ser e existir, quem sabe até ser feliz - por ora, tratados como escória ou algo pior. Da platéia acreditamos sermos pessoas integrais, acreditamos estar à salvo de sermos sujeitos só em parte - até nos avisarem que somos tão-somente o sonho de um personagem (uma hora perceberemos que somos pouco mais que parafusos da máquina que nos mói em nossa humanidade?). O Haiti é aqui - se soubéssemos entender para além das palavras o que falam tantos Louis, Marie, François, Matine, que aqui fincam a bandeira da esperança; se déssemos atenção ao que nos dizem Joões e Marias, fugidos e filhos de fugitivos das periferias destes Tristes Trópicos que buscam abrigo nas periferias da cidade. Metalinguísticamente, Cidade Vodu, da Teatro de Narradores, se perde entre duas dramaturgias que têm dificuldade em dialogar, se harmonizar, se entender. Seguimos separados, corroídos por algo que não sabemos o que é. Tal qual migrantes e imigrantes mal-vindos e recusados, tal qual pretos pobres periféricos enxotados a gritos a tiros e autos-de-resistência, somos sujeitos-ruína sobrevivendo numa pós-modernidade hostil à vida, assistimos à decomposição de nossa própria humanidade - não nos damos conta de que não é a cidade quem morre. Ainda assim, recuso Kafka: há esperança - até mesmo para nós: Cidade Vodu é a mostra que alguns ainda lutamos pelo sonho de um futuro feito de sujeitos plenos, necessário à nossa própria completude.

24 de julho de 2016.


PS: Texto brotado com muito atraso - havia assistido à peça em abril - e ao acaso, enquanto eu refletia sobre o espetáculo O Grito, de Marcos Abranches. A se pensar o caminho que levou de um a outro.




quarta-feira, 29 de junho de 2016

Nós a um passo de nossa condenação [Diálogos com o teatro]

Qual a relação entre uma ditadura (dita) comunista e a nossa atual democracia (sic)? Para um respeitável cidadão de bem, sempre bem informado pelo William Bonner e o William Waack, que veste a camisa da seleção para bater panela contra o PT (tentando forjar desonestamente uma identidade com corrupção), nenhuma, é óbvio. Para este escriba, como ficou claro ao pôr a questão, a primeira relação entre ambas é o discurso farsesco que erigem sobre si. A Companhia Teatro da Dispersão, com a peça O espectador condenado à morte, de Matéi Visniec, dirigida por Thiago Ledier, me trouxe alguns elementos a mais nessa relação.
Não, o grupo não se propôs a fazer nenhuma releitura da obra do romeno à luz das sombras que tornam estes Trópicos sempre Tristes: simplesmente encenaram uma obra escrita em 1985, com uma ditadura de vinte anos como pano de fundo, e elementos do teatro do absurdo para fazer saltar o realidade tornada absurda - ou o absurdo tornado realidade. A enorme semelhança entre a peça e o cenário atual do Brasil não é obra dos atores, mas dos personagens da nossa história recente, Sérgio Moro, Gilmar Mendes, José Serra, Eduardo Cunha, Michel Temer, Aécio Neves, Fernando Henrique Cardoso, entre outros, cujos nomes já foram esquecidos, passados seus "fifteen minutes of shame", como certa feita cantou Marilyn Manson. No máximo, cenografia e figurino ajudam, muito sutilmente, a fazer a ligação.
O mote da peça é simples e contraditório: um crime será cometido e é preciso julgar o condenado. Não sabemos qual o crime, e isso pouco importa: estamos diante de um tribunal que precisa fazer valer a lei, ou pelo menos precisa demonstrar seu poder. Elege-se aleatoriamente um suspeito, logo acusado, portanto culpado - a retilínea lógica da justiça para ditaduras e seu asseclas. Inicia-se o julgamento com meias intenções de manter os ritos formais: o juiz proíbe que o promotor chame o suspeito-acusado-culpado de criminoso antes do veridicto. Soa justo. Ao mesmo tempo, inicia a sessão sem a presença do advogado de defesa. Deveria soar absurdo, mas se observarmos nosso entorno e não nossos pressupostos teóricos, novamente soa justo, ou melhor, soa a Justiça brasileira. Garante-se, de qualquer modo, um arremedo dos ritos formais para garantir a parecência de imparcialidade do julgamento e de presunção de inocência do réu-criminoso. Sabemos todos qual o objetivo (repare o substantivo no singular) do juiz, do promotor, e não muito depois, do defensor, apenas ficamos aguardando quando será dado o veridicto e a sentença - anunciados desde o início da peça.
Foto: Patrícia Mattos
São chamadas as testemunhas, para que os ritos sejam seguidos. São nove no total, mas já na segunda a fantasia de todos cai: promotor, escrivão, juiz, defensor, testemunhas - da justiça toda, marcada pelo rasgar literal do fardão do juiz -, todos vociferam contra o criminoso - cuja culpabilidade está gravada na testa, segundo o defensor -, desejando não apenas sua condenação, mas seu aniquilamento - muito afim à lógica totalitária que acalenta de stalinistas a fascistas, incluída nossa Grande Imprensa e seu rebanho paneleiro. O promotor reclama: todos acreditam que o espectador é o culpado, por que só o próprio que não?, enquanto o defensor roga ao criminoso, num cinismo digno de FHC, que confesse tudo em público e que com isso alivie o peso de sua consciência e satisfaça a justiça e a sociedade: todos sabem que é um criminoso, por que não confessar? Trinta anos antes da peça ser escrita, essa confissão seria chamada de "auto-crítica", trinta depois, de "delação premiada", o mecanismo por trás, contudo, segue o mesmo - e nada tem de democrático ou justo.
Breve intervalo entre o primeiro e o segundo ato. Nele, o escrivão convida o público a bisbilhotar toda a vida pregressa do espectador condenado à morte, coletada minuciosamente pela justiça (não havia conversas privadas, ao menos), e conclama que os demais espectadores saiam do anonimato, que legitimem o criminoso enquanto tal - e a encenação burlesca enquanto justiça. No segundo ato, já sem qualquer intenção de seriedade, tentativas das diversas personagens em justificar a ordem totalitária de adesão ao poder - que chega ao paroxismo de pôr em risco o próprio poder, se não devidamente resguardado por forças repressivas contra fiéis mais realistas que o rei.
Feliz na escolha do texto para o momento que vivemos e vivenciamos, com atuações e montagens convincentes - o que eu não sei dizer exatamente o que isso significa, numa peça que tem a burla como centro -, o ponto fraco ficou, na minha opinião, na construção do personagem do juiz.
Pelo programa ficamos sabemos que a peça foi escrita nos anos oitenta, no contexto da ditadura romena; a ambientação - sem o cuidado (e a necessidade) de parecer realista - remete aos anos sessenta e setenta do século XX, quando vivíamos, nós também, nossa (até agora) mais funesta ditadura; e o texto parece ter sido escrito no Brasil de 2015, 2016. Entretanto, o juiz acaba por fazer com que o petardo contra a situação político-institucional atual perca um pouco da sua força: franzino e desde o início decadente, em nenhum momento ele tem a arrogância que os juízes brasileiros se dão (profissionais do direito em geral, com excrescências excelências, meritíssimos de merda e doutores em porra em nenhuma, com o perdão do jargão chulo), na expectativa de que a distância de títulos seja sinônimo de respeitabilidade de um judiciário que se sabe caquético, e cuja atitude é louvada pela Grande Imprensa. Se se vislumbra a figura de um Coronel Mendes no juiz, se dá antes pelo ar de bufo (mais que bufão) que o ministro do STF naturalmente possui; falta, pelo menos no início, quando a peça ainda parece séria, a arrogância vestida de camicie nere (camisa negra) de um justiceiro Moro.
Ainda assim O espectador condenado à morte deixa no colo do público o aviso de uma bomba prestes a explodir: evidencia o conforto da proteção que o anonimato de massa nos oferece, e o inconformismo light que estamos dispostos a ter, via curtidas em redes sociais, para não perder esse conforto; nos coloca em xeque quanto à nossa passividade diante de arbitrariedades da justiça, que afronta direitos individuais básicos; deixa explícito que podemos ser o próximo a merecer o aniquilamento, considerados criminosos por capricho de uma corporação de mídia totalitária ou de juiz de província qualquer e por necessidade de sangue do poder e das massas manipuladas - criminosos por termos sentado num lugar infeliz, em que sequer a visão era privilegiada. Em um Estado que é democrático e de direito apenas enquanto farsa, estamos todos a um passo de sermos condenados à morte, morte simbólica ou via auto de resistência. Ou, se o suspeito-acusado-condenado não puder ser executado por qualquer motivo - como sua reputação internacional, por exemplo -, o juiz da peça deixa claro o que se pode fazer:
"Mas se não podemos matá-lo, podemos julgá-lo até a sua morte".
O espectador condenado à morte é espetáculo obrigatório para 2016 - antes que sejamos condenados à morte.

29 de junho de 2016.

PS1: O espectador condenado à morte estará em cartaz em julho e agosto, no Viga Espaço Cênico, em São Paulo, quartas e quintas, às 21h.
PS2: Involuntariamente, muito feliz também o local de estréia: a Funarte ocupada, com um #ForaTemer sobre o "ordem e progresso" golpista no folder.
PS3: Advogo a tese de que Temer é só o bobo da corte que encabeçou um golpe de Estado dado por ditadores pós-modernos, sem um rosto específico, ou com vários rostos, a mudar conforme o ano e a ocasião, mas com uma função bem específica na engrenagem estatal, livre de qualquer controle público e, mais ainda, distante do povo. Uma ditadura dessa casta que desde sempre é uma das principais donas do poder nestas terras, uma ditadura judiciária - por ora mancomunada com o PSDB, enquanto este atender a seus interesses principais.


quarta-feira, 9 de março de 2016

Bem-vindo ao senso-comum do espetáculo [Diálogos com o teatro]

As cem pessoas no palco são representativas da cidade de São Paulo, segundo os dados do Censo 2010 do IBGE, em termos de idade, sexo, local de residência, estado civil e cor. São pessoas comuns, estudantes, aposentados, desempregados, taxistas, pesquisadores, pastores, tatuadores, gays, héteros, negros, pardos, amarelos, brancos, direitistas, esquerdistas, cristãos, ateus, umbandistas, espíritas.
Estão no palco do Theatro Municipal de São Paulo por conta do espetáculo 100% São Paulo, do coletivo berlinense Rimini Protokoll - formado por Helgard Haug, Stefan Kaegi e Daniel Wetzel -, e em cartaz por conta da terceira Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITSP). Antes do espetáculo, ao ler o programa, a idéia parece boa e a expectativa é grande. Ao fim, resta a decepção e a impressão de que a boa idéia foi mal desenvolvida. Após um tempo, concluo que a peça é fiel ao que se propõe, e não poderia esperar nada além de um medíocre reality show. O paralelo com reality show vem da diretora do Goethe-Institut, responsável por trazer a companhia, ao comentar na apresentação do programa que "o resultado é a encenação de uma demografia metropolitana em forma de 'reality show'" - se eu tivesse lido o programa antes, não teria perdido meu tempo no Municipal. Ela é precisa: 100% São Paulo é uma franquia a la Big Brother - a diferença é que o produto da Endemol é para a televisão, e o do Rimini Protokoll para teatro -, replicada em várias partes do mundo e, desconfio, em todas registrando o senso comum mais rasteiro. Talvez se aqui em São Paulo houvessem apresentado 100% Filadélfia ou 100% Atenas ou 100% Taipei, dando ao público a possibilidade de contrapôr suas concepções com outra cultura, poderia ter causado um impacto maior do que um entretenimento de segunda linha. Segunda linha, inclusive, esteticamente - um eficiente e convencional modelo inspirado em programas de televisão.
O início é interessante, as pessoas se apresentam rapidamente, e apresentam o objeto que carregam e que as representa. A seguir, distribuem-se pelo espaço conforme as cinco categorias - um telão ao fundo mostra imagens de cima, que ajudam a visualizar a estatística da cidade. Parece uma aula de geografia animada - e sem questões relevantes, como nível de renda, de endividamento familiar, de ocupação, de acesso a serviços essenciais de qualidade. Ainda assim, cresce a expectativa que depois disso o espetáculo perca esse ar de tele-aula e venha a dramaturgia. Não há vem: o início é o que há de melhor. 100% São Paulo lembra o quadro Tentação do Programa Silvio Santos, em que as pessoas precisam escolher uma das portas que acham conter a resposta correta. No caso de 100% City, as pessoas se distribuem entre o grupo dos "eu sim" e do "eu não", sem que haja resposta certa e prêmio ao final. Longo tempo assim, e muda-se a forma de resposta, primeiro para uma opção de quatro opções pré-determinadas e representada por cores, a seguir para o levantar a mão. Ainda que esse tipo de questionário não abra possibilidade de maiores reflexões, poderia ao menos haver perguntas boas. Não é o caso. O caso aqui é entreter e dar ao distinto público do Municipal a impressão de que poderiam ser eles no palco. Tanto é que muitas das pessoas da platéia também participam, comentando com seus companheiros se sim ou não, ou levantando a mão.
Ao contemplar as respostas dos selecionados, descubro que o ex-PM e atual taxista é a favor da redução da maioridade penal, que o pastor evangélico é contra o aborto, que o patinista gay da Mooca é contra bolsa família e cotas nas universidades, contrariamente ao negro morador do Capão Redondo. Em suma: descubro o que se sabe ao andar por São Paulo, ou ao ler qualquer levantamento de instituto de pesquisa.
Em algumas das brevíssima apresentações que cada uma das pessoas faz de si no início, há indicações de possibilidades que o trio alemão passa ao largo. O ex-PM e taxista, por exemplo, mostra uma foto da sua turma da polícia: segundo ele, dois viraram bandidos, três foram assassinados. Talvez na sua história de vida fosse possível compreender o que o leva à posição de favorável ao porte de armas e redução da maioridade penal - compreender não para ser favorável, mas para não reforçar a polarização que hoje se vê em todo o mundo, do Brasil de coxinhas e petralhas aos Estados Unidos de Trump versus Sanders, passando pela Europa que não sabe se reafirma a civilização ou adere de vez à barbárie. Mas o que os diretores oferecem é apenas uma resposta simplista que reforça preconceito e estereótipo, e causa indignação do casal ao meu lado.
Admito nunca ter me interessado por reality show, e o pouco que vi achei descartável, inclusive como entretenimento; e que tele-aula tampouco me empolga (ok, andei assistindo a uns documentários na TV Escola que gostei, e muito!). Mas não é por isso que 100% São Paulo é fraco. Da possibilidade de sortear trajetórias de vida para serem narradas ao público, de contrapôr visões divergentes de duas ou três das cem pessoas em assuntos polêmicos, de causar estranhamento e mesmo tensão nos participantes ou no público, tudo isso é descartado em favor de um medíocre reality show cara-a-cara, que força identidades precárias - sou palmeirense, sou corinthiano, sou vaidosa, sou da paz, sou da zona sul, da zona leste -, aguça egos e nos oferece uma amostragem do que pretensamente opina o paulistano - não digo pensa porque as respostas "sim" e "não", salvo quando muito bem trabalhadas, não autorizam reflexões nem maiores pensamentos. Ao fim, o que há de mais profundo em todo o espetáculo são os objetos trazidos pelas pessoas.

09 de março de 2016.

O melhor momento da peça, quando cada um representa o que cada um costuma estar fazendo em determinada hora.

sexta-feira, 13 de março de 2015

Stifters Dinge em uma leitura kafkiana [Diálogos com o teatro]

"Uma composição para cinco pianos sem pianistas, uma peça sem atores, uma performance sem performers" - eis a descrição do espetáculo Stifters Dinge, de Heiner Goebbels e do Theatre Vidy-Lausanne, apresentado na segunda edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITSP). Um espetáculo sem atores - no máximo dois contra-regras - em uma mostra de teatro não poderia deixar de causar algum estranhamento; porém há algo no que é apresentado que nos soa familiar, natural - e não deveria ser.
A obra de Goebbels é inspirada na do escritor austríaco do século XIX, Adalbert Stifter (daí o título, "Coisas de Stifter"), o qual reconheço desconhecer - daí que minha leitura possa ficar seriamente prejudicada. 
Ao fundo, os cinco pianos, com suas entranhas de cordas e martelos à mostra, contracenam com árvores secas e outros elementos dos quais se extraem sons para acompanhá-los na apresentação. No meio, uma grande chaminé. Esse cenário me remete a Metrópolis, filme de 1927 de Fritz Lang - a fábrica engolindo pessoas com suas chaminés soltando fumaça. A diferença está que não há pessoas neste caso - a máquina libertando o homem ou suprimindo-o? (A aridez do cenário me faz acreditar na segunda opção). Entre os pianos e o público, três retângulos no chão. Ao lado desses retângulos, caixas de sons e outros "instrumentos musicais", como dois grandes tubos de pvc. À direita de cada retângulo, uma grande gaiola com um recipiente plástico cheio d'água.
A figura humana não está totalmente ausente: dois contra-regras aparecem para auxiliar a máquina, no início da apresentação - daí me vir a lembrança de Na colônia penal, de Franz Kafka. O homem a serviço da máquina, bem adestrado para o bom funcionamento da engrenagem. Primeiro eles jogam um pó sobre os retângulos pretos, tornando-os brancos. A seguir, abrem a água para cada um dos retângulos. Passado um tempo, recolhem as mangueiras e a cena fica toda ela por conta do cenário-máquina. 
O que presenciamos, a partir de então, é a demonstração daquela estranha engenhoca e sua música, acompanhada de um trabalho de luz complexo e discreto, marcante sem ser espetacular: basicamente focos nos diversos "instrumentos" espalhados pelo palco, projetores sobre nos retângulos, auxiliados por ribaltas rente a cada um, e um projetor para os pianos do fundo. O clima é sombrio, tenso. Sinto como se estivesse assistindo à demonstração da máquina kafkiana de Na colônia penal, porém sem o condenado - ou seríamos nós os condenados, apenas sem perceber que temos nossa pena sendo marcada no fundo de nosso corpo enquanto comemos nossa ração diária?
A ausência humana é interrompida pela projeção da imagem de um quadro que retrata algumas árvores e o céu - que se modifica, perde e ganha contornos e realidade conforme são alteradas as cores, contraste e saturação -, acompanhada de um longo texto em off - o qual, acreditei eu ser de Adalbert Stifter. Uma meia presença, portanto, diante de um movimento estático. Contradições que não nos perturbam. A seguir, uma entrevista com um Levi-Strauss pessimista e desesperançoso. Me questiono o quanto um estruturalista assentir a falta de perspectivas para a humanidade não corrobora Kafka: "há esperanças, mas não para nós". Em dado momento, o antropólogo relembra de uma brincadeira juvenil, de sair caminhando em linha reta até cansar, na esperança de achar algo esquecido pela civilização nas margens de Paris - esperança que, velho, ele recusa até para os rincões do mundo. Fachos de luz passam a percorrer os retângulos, como scanners, como a enfatizar Levi-Strauss: nada passa despercebido pelas máquinas da civilização tecno-industrial. 
A música volta a ser executada - o show não pode parar, a música não pode parar, o trabalho não pode parar. O ritmo é frenético, há coreografia para os martelos dos pianos, fumaça é solta próxima à base da chaminé. Levo um tempo até notar que os pianos e todo o cenário meio Fritz Lang avançam por sobre os retângulos, em direção ao público - seria a máquina kafkiana colapsando? Não era o caso. A máquina percorre os retângulos, pára diante do público, como a encarar sua próxima vítima, e ao retroceder restam as águas borbulhando. Me sugere o inferno de Dante, mais ainda o Hades - seria esse o caminho que a máquina reserva aos homens?
O espetáculo acaba. Aplaudimos o homem por trás da máquina, mas é a máquina que avança para agradecer. Rimos com a piada, não estranhamos a ausência humana, e descemos para ver de perto a engenhoca que parece saído de um conto de Kafka para nosso deslumbramento ingênuo.

São Paulo, 13 de março de 2015

segunda-feira, 17 de março de 2014

Quatro histórias a caminho do nada

Quatro cineastas de diversos estilos - o sucesso de bilheteria, o cult, o acadêmico, o amador. Quatro cineastas que, em algum momento, passam a fazer seus filmes a partir de suas vidas - tentam construir uma obra artística, não um produto da indústria cultural. Vidas que influenciam nas obras, obras que influenciam nas obras: o cenário de "Cineastas", do argentino Mariano Pensotti, apresentado no primeiro MITSP, é dividido em dois: na parte de baixo, a vida real; na de cima, o filme realizado por cada um dos cineastas. A divisão é clara e não permite mistura de ficção e realidade, por mais que se queira - a filha de um desaparecido político obrigada a filmar o roteiro de um desaparecido que retorna trinta anos depois não reencontrará seu pai morto; os objetos de um cineasta à beira da morte, uma vez filmados, não correspondem aos objetos em seu contexto. Personagens não descem, vidas reais não sobem. Em baixo a vida, em cima a representação, e a criação de um duplo, o ficcionar a partir do seu quotidiano, faz com que um ficção e realidade se influenciem, porém não se imiscuam.
O cenário de cima - o da ficção - desde o início é nu: precisa ser assim para poder ser composto com elementos de cena, postos e tirados ao sabor dos roteiros e de suas mudanças. O cenário de baixo, por seu turno, começa bastante carregado - mesas, cadeiras, caixas, poltronas, quadros, plantas - e vai se esvaziando conforme os quatro cineastas têm suas vidas abaladas, e junto com elas os filmes que estão rodando. O desnudar do palco pode ser uma alegoria do desnudar de cada um dos cineastas dos penduricalhos de sua vida, em busca do que realmente interessaria - seus ideais, suas origens, seus passados, seus futuros. No fim, cenário do filme e da vida real se equivalem: cenários nus iluminados por luz de serviço. A equivalência entre ambos deixa clara a invasão da ficção na realidade: o cenário nu não releva uma pretensa essência, antes uma verdade: a mentira de tudo, a espetacularização da vida, à moda do cinema. O um dia exemplo de bem sucedido gerente de McDonald's se dá conta de que é um Zé Ninguém facilmente substituível; a filha de desaparecido é obrigada a aceitar que seu pai está mesmo morto; o cineasta que vai até o cinema de sua infância se depara com um culto evangélico - pastiche de rituais de uma época que não existe mais -; a filha adotiva de uma família descendente de russos vai até a Rússia e encontra a vila de seus antepassados exatamente da forma como imaginava, exatamente como há um século, a mesma estrutura das casas, os mesmos rituais... para logo descobrir que é tão-somente um cenário de um seriado de época, e se ver em meio a uma festa eletrônica comemorando o fim das filmagens.
Por quanto entregamos nossos ideais? O quanto deixamos nossos sonhos serem ditados desde fora, por alguma espécie de deus ex-machina - mesmo sabendo da sua existência e do seu funcionamento? Nossa essência desnuda possui algo de nosso - possui algo? "Cineastas" pode ser vista como uma leve comédia para o fim de domingo. Pode ser vista também como um profundo questionamento do vazio de nossas vidas - de nossas vidas vazias -, preenchidas com ficções que não nos dizem nada.

São Paulo, 17 de março de 2014.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

A presença-ausente do Outro em “Desarticulações”

“Tentar entender este estar/não estar de uma pessoa que se desarticula diante de meus olhos”. Para onde fugir quando o outro que nos ancora se desfaz em um presente perpétuo, um presente que não é feito de presença, porque não possui em si a duração?

“Desarticulações”, peça inspirada na obra da argentina radicada nos EUA Sylvia Molloy, é o relato fragmentado e angustiado de uma mulher que visita uma pessoa íntima sua – Maria Luisa –, que está perdendo a memória – tanto a recente quanto a antiga. A peça levanta a questão da necessidade do Outro enquanto condição de formação de lembranças, de afetos e da própria identidade.

A protagonista nos conta sobre Maria Luisa, que ora se lembra apenas de coisas muito antigas – como se fossem ainda presentes –, ora apenas de coisas recentes, ora não se lembra sequer de ler. Há momentos que esquece até as palavras, e não só não consegue articular frases, como sua fala se reduz a sons. Diante dessa perda de conexão entre o ontem e o hoje e entre cada instante, desse desfazer-se, dessa desarticulação entre uma pessoa e um corpo, a protagonista se vê também desarticulada, ao não conseguir compartilhar as experiências vividas com Maria Luisa, se ver obrigada a contar suas memórias como se fossem novidades a alguém que há um certo tempo tinha o poder de balizá-las, confirmá-las, complementá-las. Sem esse retorno do Outro sobre o que a protagonista conta sobre si, sobre ambas, ela se vê numa situação quase tão precária quanto aquela que se desfaz. Tanto que assim como Maria Luisa aparece como sombra (projetada durante a peça), a protagonista, sem se tornar ainda sombra, se torna espectro, nas projeções em branco e preto no chão.

Num espaço branco, com luzes brancas, a protagonista veste o peso do luto: o Outro, cuja presença serve para fazer sombra e nos fazer recordar, antes de mais nada, da precariedade de nosso estar no mundo e da necessidade da contraposição do Outro como sujeito – para não nos tornarmos espectros do que um dia fomos.

São Paulo, 22 de agosto de 2013.


PS: Outro ponto que a peça me provocou: curiosamente, apesar das dos problemas de memória, Maria Luisa não se esquece de regras de etiqueta, de estratagemas de convívio social, as formas de agradar e se mostrar interessada e solícita, incorporadas como uma segunda natureza. Se apresentar bem, ser agradável, não se lembrar de nada – talvez o anúncio do que querem para nós?

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Quando recordar é morrer.

Meus pais não me ensinaram que homem não chora, de modo que não vejo nisso uma falha – evito fazê-lo em público antes para preservar meus sentimentos da admiração pública. Já chorei (ou fiquei com os olhos cheios de lágrimas) vendo filme (ok, eu estava à flor da pele aquele dia), já chorei lendo livro (Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, do Mia Couto, e Primeiras estórias, do Guimarães Rosa, e não foi só ficar com olhos marejados), mas não me lembro de ter chorado vendo peça de teatro. Isso até sexta, quando uma amiga me chamou para assistir a Translunar Paradise, da companhia inglesa Theatre ad Infinitum. É uma peça que aborda um tema banal e delicado, e o trata com uma sensível delicadeza. Tanto que, apesar das emoções despertadas, não foi uma peça que me arrebatou – ela soube cativar sutilmente.

Sem qualquer palavra, fazendo uso de máscaras para contrapôr presente e passado, a vida que acontece e a lembrança do que aconteceu, Translunar Paradise é a história de uma senhora que, depois de morta, revisita seu companheiro, para ajudá-lo a superar a perda, fechar o passado e seguir a vida.

Após a morte da companheira, William se vê solitário, em companhia apenas do tic-tac do relógio – desse barulho monótono que se repete, que parece não passar, enquanto a vida segue como sempre, fora do compasso preciso das horas. Ele recusa a perda: insiste em pôr duas xícaras na mesa, em servir café para si e para a cadeira vazia ao seu lado. Diante de uma mala com objetos queridos, fica a lembrar de momentos diversos do casal: o emprego da mulher, a gravidez, o aborto (natural), a ida para a guerra, os traumas dessa experiência, o primeiro encontro, os desencontros. São cenas banais (apenas a guerra não é tão banal assim), retratadas com banalidade e uma estética de filme mudo dos primórdios do cinema – quase coreografias de uma vida qualquer. Difícil não se pôr – ou não imaginar pessoas queridas – em situações semelhantes. No presente, as máscaras com as marcas da idade (a expressão corporal dos atores é tamanha que eles conseguem fazer com que as máscaras incorporem uma série de expressões!), os sulcos de tudo o que se viveu.

William está em meio a essas recordações, dessa fuga para trás de um agora de dor, quando Rosa ressurge. Não é a história de amor após a morte – não esse amor cinematográfico. Nada de beijos entre o homem e o espectro da mulher – o contato (físico) entre os dois é impossível. O retorno da mulher morta é para livrar seu amado do peso que ele não quer largar e que o impede de encarar o presente que há. Ela o revisita para guardar sua xícara no armário, para pedir seus objetos antigos de volta, para fechar aquela mala contendo o passado e poder seguir para a morte – e deixá-lo que prossiga com sua vida.

Minha descrição parece dar uma boa medida da banalidade das cenas, a grandeza do espetáculo está na sua poética. Na forma como apresenta o amor: o desejo de Rosa não de esquecimento, mas de ser posta num segundo plano, porque ela sabe que somos feitos de presenças e ausências, e que quando estas adquirem excessivo peso impedem o movimento da vida. Recordar é viver, dizem, mas pode ser também não-viver (penso que se trata da maioria das vezes).

Deixar o outro partir, aceitar a própria morte, arriscar ser esquecido: duas provas de desapego e amor pelo outro que poucos conseguem pôr em prática – eu sigo tentando aprender.


São Paulo, 01 de abril de 2013.

ps: a peça fica em cartaz uma semana mais no CCBB de São Paulo.
ps2: não consegui pôr o vídeo aqui, há uma pequena mostra de uma cena em http://vimeo.com/37026590