Meus pais não me ensinaram que homem não chora, de modo que não
vejo nisso uma falha – evito fazê-lo em público antes para
preservar meus sentimentos da admiração pública. Já chorei (ou
fiquei com os olhos cheios de lágrimas) vendo filme (ok, eu estava à
flor da pele aquele dia), já chorei lendo livro (Um rio chamado
tempo, uma casa chamada terra,
do Mia Couto, e Primeiras estórias,
do Guimarães Rosa, e não foi só ficar com olhos marejados), mas
não me lembro de ter chorado vendo peça de teatro. Isso até sexta,
quando uma amiga me chamou para assistir a Translunar
Paradise, da companhia inglesa
Theatre ad Infinitum. É uma peça que aborda um tema banal e
delicado, e o trata com uma sensível delicadeza. Tanto que, apesar
das emoções despertadas, não foi uma peça que me arrebatou –
ela soube cativar sutilmente.
Sem qualquer palavra, fazendo uso de
máscaras para contrapôr presente e passado, a vida que acontece e a
lembrança do que aconteceu, Translunar Paradise é
a história de uma senhora que, depois de morta, revisita seu
companheiro, para ajudá-lo a superar a perda, fechar o passado e
seguir a vida.
Após a morte da companheira, William se vê solitário, em companhia
apenas do tic-tac do relógio – desse barulho monótono que se
repete, que parece não passar, enquanto a vida segue como sempre,
fora do compasso preciso das horas. Ele recusa a perda: insiste em
pôr duas xícaras na mesa, em servir café para si e para a cadeira
vazia ao seu lado. Diante de uma mala com objetos queridos, fica a
lembrar de momentos diversos do casal: o emprego da mulher, a
gravidez, o aborto (natural), a ida para a guerra, os traumas dessa
experiência, o primeiro encontro, os desencontros. São cenas banais
(apenas a guerra não é tão banal assim), retratadas com banalidade
e uma estética de filme mudo dos primórdios do cinema – quase coreografias de uma vida qualquer. Difícil não
se pôr – ou não imaginar pessoas queridas – em situações
semelhantes. No presente, as máscaras com as marcas da idade (a
expressão corporal dos atores é tamanha que eles conseguem fazer
com que as máscaras incorporem uma série de expressões!), os
sulcos de tudo o que se viveu.
William está em meio a essas recordações, dessa fuga para trás de
um agora de dor, quando Rosa ressurge. Não é a história de amor
após a morte – não esse amor cinematográfico. Nada de beijos
entre o homem e o espectro da mulher – o contato (físico) entre os
dois é impossível. O retorno da mulher morta é para livrar seu
amado do peso que ele não quer largar e que o impede de encarar o
presente que há. Ela o revisita para guardar sua xícara no armário,
para pedir seus objetos antigos de volta, para fechar aquela mala
contendo o passado e poder seguir para a morte – e deixá-lo que
prossiga com sua vida.
Minha descrição parece dar uma boa medida da banalidade das cenas,
a grandeza do espetáculo está na sua poética. Na forma como
apresenta o amor: o desejo de Rosa não de esquecimento, mas de ser
posta num segundo plano, porque ela sabe que somos feitos de
presenças e ausências, e que quando estas adquirem excessivo peso
impedem o movimento da vida. Recordar é viver, dizem, mas pode ser
também não-viver (penso que se trata da maioria das vezes).
Deixar o outro partir, aceitar a própria morte, arriscar ser
esquecido: duas provas de desapego e amor pelo outro que poucos
conseguem pôr em prática – eu sigo tentando aprender.
São Paulo, 01 de abril de 2013.
ps: a peça fica em cartaz uma semana mais no CCBB de São Paulo.
ps2: não consegui pôr o vídeo aqui, há uma pequena mostra de uma cena em http://vimeo.com/37026590
ps: a peça fica em cartaz uma semana mais no CCBB de São Paulo.
ps2: não consegui pôr o vídeo aqui, há uma pequena mostra de uma cena em http://vimeo.com/37026590
Sem comentários:
Enviar um comentário