Diante
de um rio que não mais existe - engolido por uma serpente de asfalto
onde noite e dia rugem máquinas abastecidas com a decomposição de
tempos imemoriais -, em um cenário que emerge dos destroços de uma
vila, ela própria erigida com os escombros de um antigo teatro de
São Paulo - esta cidade que hoje habito, feita das ruínas de muitas
São Paulos em que mal se vêem vestígios, afogadas pelo
novo-logo-velho movido pela força da grana -, ouço histórias de
fugitivos de um país onde negros tiveram o desejo de direitos
brancos e vêem gerações e gerações pagarem com penar equivalente
à escravidão da qual se livraram a audácia de tentarem romper com
a maldição européia que recai sobre a cor de sua pele. Fragmentos
de vidas, pedaços de sonhos, restos de esperanças. A busca de algum
espírito ancestral a guiar uma vida nova nesta cidade que perece dos
mesmos velhos males sob roupagem pós-moderna. Pessoas que almejam o
direito de ser e existir, quem sabe até ser feliz - por ora,
tratados como escória ou algo pior. Da platéia acreditamos sermos
pessoas integrais, acreditamos estar à salvo de sermos sujeitos só
em parte - até nos avisarem que somos tão-somente o sonho de um
personagem (uma hora perceberemos que somos pouco mais que parafusos
da máquina que nos mói em nossa humanidade?). O Haiti é aqui - se
soubéssemos entender para além das palavras o que falam tantos
Louis, Marie, François, Matine, que aqui fincam a bandeira da
esperança; se déssemos atenção ao que nos dizem Joões e Marias, fugidos e filhos de fugitivos das periferias destes Tristes
Trópicos que buscam abrigo nas periferias da cidade. Metalinguísticamente, Cidade
Vodu, da Teatro de Narradores, se perde entre duas dramaturgias que
têm dificuldade em dialogar, se harmonizar, se entender. Seguimos
separados, corroídos por algo que não sabemos o que é. Tal qual
migrantes e imigrantes mal-vindos e recusados, tal qual pretos pobres
periféricos enxotados a gritos a tiros e autos-de-resistência,
somos sujeitos-ruína sobrevivendo numa pós-modernidade hostil à vida, assistimos à decomposição de nossa própria
humanidade - não nos damos conta de que não é a cidade quem morre. Ainda assim, recuso Kafka:
há esperança - até mesmo para nós: Cidade Vodu é a mostra que
alguns ainda lutamos pelo sonho de um futuro feito de sujeitos
plenos, necessário à nossa própria completude.
24
de julho de 2016.
PS:
Texto brotado com muito atraso - havia assistido à peça em abril -
e ao acaso, enquanto eu refletia sobre o espetáculo O Grito,
de Marcos Abranches. A se pensar o caminho que levou de um a outro.
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