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sexta-feira, 13 de março de 2020

Filhos: marcadores da passagem do tempo

Por muito tempo achei que a principal "função" dos filhos na vida dos pais fosse dar uma sensação de continuidade: alguém que de alguma forma seguirá algo daqueles que o criaram. A estes, a convicção de que depois de mortos, algo deles continuará - não é a vida eterna, mas é o que mais próximo poderíamos conseguir, sendo humanos (em tempo: tenho pensado como a geração formada no individualismo e adepta do "child free" não acaba por afetar a solidariedade de toda a sociedade, uma vez que a preocupação intergeracional se torna fruto de ato estritamente racional, sem lastro emocional).
Ainda que sem ser pai, a convivência praticamente diária, por mais de três anos, com uma criança - dos seus seis aos seus nove -, me fez notar que a principal função de um filho é lembrar a nós, adultos, da passagem rápida do tempo - ainda mais a alguém, como eu, com muita memória e temporalidade retardada.
Antes de conhecer o Vini, havia algo na minha percepção da passagem do tempo que não se fixava. Afora os cabelos ficarem raros, a impressão que eu tinha é que o tempo passava rápido e devagar ao mesmo tempo. Quase quarenta mas me via como tendo vinte. Uma vez comentei com um iluminador (já passado dos sessenta) que havia visto um espetáculo dele "não fazia muito", ao que ele me respondeu: "isso faz cinco anos!". Era isso: cinco anos e parecia esses dias. Meus amigos que moram longe, com quem me comunico por e-mail, são três, quatro meses para responder, e parece que foram quinze dias. Os vinte anos que moro fora da casa dos meus pais parecem, com boa vontade, seis. Ao reparar no Vini é que noto o quanto de tempo passou: seus três anos parecem nove (e olha que também eu tive uma vida agitada nesses ínterim, cursos de marcenaria, tapeçaria, xilogravura, dança, dramaturgia, etc).
Esta semana marquei de encontrar uma amiga de Recife, que estava em São Paulo por conta da sua apresentação no MITSP, e que conheci na residência em dança do Eduardo Fukushima, há três anos e meio, 2016. Eu ainda lembro de uma crônica sobre essa residência que enrolei e não escrevi, recordo de boa parte dos colegas e de várias conversas que tive - como se fosse ontem. De repente noto: foi quando conheci o Vini. Ele então não sabia ler e escrever, se atrapalhava com os números (hoje faço o "pense rápido" pra ele e jogo uma conta e ele responde, entre o fastio e o desafio), tinha alguma dificuldade na dicção, precisava da luz acesa para dormir, chorava desesperado para tirar um dente mole dependurado. Eu mesmo tinha dificuldade em estabelecer maiores relações com ele, visto que sou muito mais da fala que do brincadeira.
Foi com o tempo, com seu crescimento mais do que com minha maleabilidade (ainda que eu tenha me esforçado, pedi bastante para que me ensinasse a andar de skate, ele que foi recalcitrante), que fomos conseguimos conversar mais e assim aprofundar a relação. Ensinei ele a jogar dominó e bingo, não faz muito quis começar a tomar chimarrão - meu velho e forte hábito -, e presenteei-o com uma cuia e erva argentina. Hoje segura o choro - não sei se porque aprendeu na escola (ou com pai) que homem não chora, ou porque não se sente confortável em expressar sentimentos -, já tem suas responsabilidades e ainda cobra a própria mãe se não cumpre as dela (correndo o risco de tomar bronca por isso, que às vezes ela se vê sem ação diante do filho que não é mais bebê), e começa a cobrar maior independência - ainda que não faça muito que perdeu o medo de tomar banho sozinho.
Todas essas mudanças não acontecem em seis meses e são muito significativas. Não dá para achar que foi ontem que estávamos no Parque das Aves e ele chorando porque insistíamos que lesse o nome do pássaro. E a cada mês é perceptível que aumenta de tamanho, cada seis meses precisa de calçado novo porque o antigo (não tão antigo) não cabe mais: se ele cresce nessa velocidade, é sinal que o tempo passa na mesma toada - eu que antes não percebia. Não por acaso, minha careca parou de incomodar o tanto que antes incomodava: Vini me fez assumir que outra geração está no mundo, e eu não só perco no video game como já preciso de ajuda com os eletrônicos.


13 de março de 2020

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Cenário para livros

Desconfio que para projetos audiovisuais - filmes, novelas, comerciais - haja locais de locação consagrados: na dúvida de onde ir, aquele espaço de sempre dá conta com mínimos arranjos. Minha cabeça também tem seu lugar de locação clichê: Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, de Maya Angelou, é mais um livro que me vejo ambientando na casa do Rose e da Nana, pequenos agricultores amigos de meus pais, em Bom Sucesso do Sul. 
É a história se passar em algum lugar mais rural, com alguma presença comunitária mais forte (dizer "com algo urbano" talvez seja exagero), e lá está a casa deles sendo morada dos protagonistas, ao mesmo tempo isolada como é e, num passe de mágica, no meio de um vilarejo, como o livro exige. 
Quando criança gostava de ir lá por causa dos animais: ver os porcos, as vacas e, principalmente, correr atrás das galinhas. Era uma época de dias muito longos, na minha temporalidade infantil, e eu passava quase a tarde inteira - que devia durar o equivalente a umas doze, quinze horas, na minha temporalidade atual - correndo atrás das galinhas, soltas pelas redondezas da casa antiga (curiosamente, nas histórias dos livros é a casa nova que serve como espaço cênico). Elas fugiam por medo daquela criança da cidade chata, e eu, por meu turno, nunca punha as mãos nelas, porque também tinha medo - vai que me bicassem, como o papagaio da minha avó. Uma vez, de leve, encostei em uma, pega e imobilizada pelo Rodrigo, um dos filhos da Nana e do Rose. Já adolescente, adulto jovem, eu gostava de ir lá para ficar na varanda, comendo frutas recém colhidas, tomando chimarrão, olhando o céu desimpedido de construções, e ouvindo causos que a família toda era boa de contar. 
Nas minhas ambientações de livros, o porão da casa faz as vezes do elemento diferente: no livro de Maya, é o Mercado de Momma; em A Caverna, de Saramago, a olaria de Cipriano Algor. Já temi por um cavalo que forçava a porta, em um conto de Borges. Também imaginei ao menos dois Mia Couto ali, mas não precisei do porão: no último que li, Antes do Nascer do Mundo, a casa antiga transformada em paiol se tornou a casa onde surge Marta para os habitantes da Jerusalém perdida nos confins de Moçambique; já em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, a casa principal era de Mariano, enquanto a casa de seu Lauro fez a vez da de Fulano Malta, com suas gaiolas vazias à espera de pássaros que lhe fizessem companhia.
Fora da literatura, de volta ao mundo real, era na casa deles que meu pai queria comer um churrasco, tão logo saísse do hospital - quando ainda tínhamos, ele e eu, pelo menos, esperança de cura, uma semana antes de seu falecimento. A escolha (inconsciente) de imaginar as histórias lidas lá ajuda a entender o porquê do desejo de meu pai: sem cair em extremismos de paraíso na terra (vegano, religioso ou romântico, até porque toda a região foi terrivelmente devastada no seu bioma natural), havia ali qualquer frágil harmonia sob o ritmo da natureza que então ainda se impunha (tinha eletricidade, mas até fins do século passado não havia sinal de televisão), nas galinhas e vacas soltas, não feito totens para ambientalistas urbanos, mas no ciclo de vida que integra humanidade e animais, no guardar sementes para a próxima lavoura, tudo isso costurado nas conversas, nos causos, marcados pelo pitoresco, não pelo moralismo. Cenário excelente para ambientações de livros passados em outro tempo, quando este era mais humano e acolhedor, menos fabril e febril.

31 dezembro de 2019

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Vai pagar imposto!

Estou descendo a rua Itapeva, na Bela Vista, quando vejo um homem com um mala esbravejando contra um motorista ausente (imagino ter passado em uma poça e molhado o homem). Xinga alto e volta a xingar. Sobe alguns passos e vai até a esquina - onde, presumo, o motorista virou - e xinga mais. A cena é longa, mas o repertório é curto: os impropérios repetidos e repetitivos versam basicamente sobre o desejo de coito, a mãe do motorista, o ânus dela e o do próprio motorista. O homem volta a descer a rua, sempre xingando. Para poucos passos adiante e retorna novamente à esquina, quando a raiva acumulada e mal extravasada parece ter levado a um esforço intelectual incomum e ele pode, finalmente, esbravejar contra o espectro do motorista um vitupério definitivo: "vai pagar imposto, seu cuzão filho da puta!", e pôde seguir, então, seu trajeto sem necessidade de repetir os xingamentos em voz alta.
"Vai pagar imposto", foi esse o xingamento. Não foi desejar que batesse o carro, que tivesse o veículo furtado, a carteira apreendida por pontos, não foi um desejo de que o motorista pagasse uma multa, uma infração, foi o de que ele pagasse imposto, condição básica para a existência e funcionamento do Estado e possibilidade de vida em sociedade - isso enquanto não houver uma revolução que desabroche o novo que até agora somos incapazes de imaginar. Sei que a cena era excessiva, mas o pensamento não é isolado - e isso mostra o quanto as forças progressistas (incluídas as à direita) não souberam reagir aos ataques neoliberais e sequer acordaram para o quão defasados estamos na disputa ideológica.
Afinal, foi uma geração, 25 anos, em que os impostos foram apresentados como os grandes vilões da sociedade e das pessoas, que são roubadas por uma casta de parasitas - os políticos -, sem chance de reação. Era notícia diária, várias vezes ao dia, repetida de hora em hora: o quanto impostos são nefastos, o quanto o Brasil é caro por causa dos impostos, o quanto imposto tira a liberdade das pessoas usarem seu próprio dinheiro conforme desejarem - nem o pai castrador era tão castrador quanto o estado que cobra imposto de renda. Pior: diante dessa avalanche toda, as esquerdas foram incapazes de articular um contradiscurso minimamente combativo, quando não aderiram acriticamente às implicações desse mantra, como é o caso do PT, com Lula, Dilma, Haddad, Pimentel e outros, ou de Ciro Gomes (que, na minha visão, é progressista, mas não de esquerda). Sim, houve propostas sobre a questão tributária, projetos muito bem elaborados a partir de análises críticas robustas - uma recém apresentada na Câmara dos Deputados. Porém, se questões e abordagens técnicas são relevantes, elas são incapazes de mobilizar a opinião pública numa sociedade de massas - ainda mais num país de ensino (formal e não formal) bastante precário. Ouso dizer que a esquerda, deslumbrada consigo própria em suas densas elaborações teóricas sobre o tema foi incompetente em ouvir o discurso neoliberal em toda sua profundidade e incapaz de escutar a população e como ela recebe e processa esse discurso.
As pessoas simplesmente não sabem para que servem os impostos. Não adianta, como fez Gregório Duvivier em um programa muito elogiado na minha bolha classe média demi-crítica, explicar que os ricos pagam menos impostos, porque isso apenas reitera que é preciso, então, baixar os impostos de todos. A apresentação do estado pela mídia praticamente se confunde com o exercício do poder político, sendo que os políticos - quase sinônimos de corrupção - são pagos com o dinheiro dos impostos. Fechando o silogismo simplório num círculo completo, os impostos parasitam a sociedade para pagar uma classe de parasitas da sociedade. As pessoas não conseguem perceber que professores, médicos, policiais são pagos com dinheiro dos impostos; não faz sentido a elas que imposto ajude na redistribuição de renda; a classe média é tapada suficiente para achar que porque paga plano de saúde "sustenta" o SUS sem dele se utilizar, sem perceber os muitos benefícios indiretos, dentre eles o de que seu plano de saúde só tem o valor módico que tem hoje porque seus clientes podem recorrer ao SUS se a mensalidade for extorsiva por serviços de qualidade precária.
A ideia de que o imposto é um roubo é parte de uma longa cadeia ideológica que inclui o estado incompetente, o setor privado eficiente, o político corrupto. Foi por onde se adubou o terreno para antipolíticos da pior espécie vingarem: Doria Jr, Amoedo, Flávio Rocha, Huck tem enorme potencial porque seu discurso foi naturalizado e soa o óbvio, por mais falacioso que seja.
Reitero o que falei há tempos: ou a esquerda complexifica seu discurso, ou não será capaz de vencer essa direita, nem nas urnas, nem fora delas. Mais: precisa desde já fazer frente ao discurso hegemônico, se não quiser ficar refém do capital e de seus porta vozes midiáticos, se quiser reverter o xingamento de "vai pagar imposto". Qualquer vislumbre reformista precisa, necessariamente, assumir a bandeira de defesa de impostos e problematizar a partir do que temos e do que precisamos para nos tornarmos um país mais justo e menos desigual. Vamos pagar imposto!

09 de outubro de 2019

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Casa nova (Farewell transmission)

Ao abrir a porta do apartamento, às sete horas de uma noite chuvosa, me sinto subitamente envelhecido. Um apartamento vazio com alguns pequenos consertos para fazer, as paredes por pintar, apagar as marcas do tempo que sublinhavam os quadros até ontem pendurados. Pela janela da sala há o escuro das árvores - sentirei falta de ver o skyline da Paulista. "Long dark blue". Lembro de Farewell Transmission, de Songs: Ohia. É este, digo ao Vini. E a mim mesmo me pergunto o que pensará o desconhecido que cruzar essa soleira depois de amanhã, para a pesquisa do IBGE ou das memórias do que era o mundo três gerações atrás, na virada do século XXI. Um velho melancólico em meio a livros, três móveis e dois gatos. Talvez eu devesse encher a casa de cacarecos, como a disfarçar a condição que nos habita? Vini inspeciona os cômodos, me avisa da fiação estranha dentro do armário, acha feio o guarda-roupa deixado para trás. Sinto que ali estou guarnecido como alguém que abre um guarda chuva para se proteger de um tempestade de granizo. "Foi tão fácil conseguir e então eu me pergunto e daí?" Estranho quem me parabeniza por ter herança, ainda mais por gastá-la assim, confrontado pelo princípio de realidade que não me permite sequer cogitar um apartamento classe média dos anos 1990 - janelas incrustadas no concreto cheio de quinas, o vidro escuro nas sacadas, as pastilhas na fachada, um peso que não descarta esperança. Com a idade do Vini eu ouvia vinil do Raul Seixas no rádio National de meu pai, usando uma raquete de tênis como guitarra e o esfregão como microfone. Isso foi ontem pela manhã, enquanto Cecília fazia o almoço. Agora preciso me preocupar em pintar as paredes sem manchar o chão, orçamentos e prazos - e viagem para a Venezuela, a trabalho, no meio disso tudo. Tenho um mês para me acomodar e começar a me irmanar do apartamento, sem mais a sensação de provisório que até então me acompanhava cada mudança - eu próprio me sentindo alguém em plena mudança (me sentindo provisório?). Ou seja, posso fazer isso com calma, sem o receio do efêmero - me iludo. E agora? "Stop/ A vida parou/ ou foi o automóvel?". A rua é temporariamente sem saída - até que o prédio vizinho conserte ou caia de vez. Nas manhãs, haverá sabiás e outros pássaros cantando, e o grito das crianças no recreio da escola - como na minha infância, a escola Dona Frida. Me vejo em reminiscências, confirmo meu envelhecimento repentino; leite derramado: não mais um jovem de quase quarenta anos, mas um idoso de quase quarenta anos - que não transmitiu a nenhuma criatura o legado de nossa miséria, não nos termos bíblicos, como a reafirmar a descrença na vida eterna e a adesão ao catastrofismo ecológico, mesmo sem tanta convicção (insisto em ter esperança e achar que melhoraremos, que o mundo de amanhã será melhor que o de hoje). "Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?". Dei o primeiro passo: tributável. Do resto ainda me esquivo. Do contrário disso também. Busco um fio de cabelo branco, para confirmar minha nova condição. Encontro, como sempre, uma espinha a brotar, que espremo com o prazer despreocupado das admoestações da mãe, de que vou ficar com a cara cheia de marcas, quando adulto - já sou adulto e ainda me faltam as marcas. Faço algumas medições, para as redes nas janelas, para os móveis que farei - uma estante de livro, uma escrivaninha, algo mais? A chuva que goteja fora me lembra de quando mudei para São Paulo, 30 de janeiro de 2012, havia um quê melancólico na garoa daquela noite - e uma nova vida iniciando. Deixamos o apartamento, Vini feliz por conhecer minha nova casa primeiro - finalmente algo que ele fez antes da mãe! Há tanto por fazer, uma porção de coisas grandes para conquistar, mesmo a um velho melancólico, um grandessíssimo idiota, ridículo, limitado, que insiste em palpitar sobre mil assuntos, só para dizer que não entende de nada, e assim prefere a ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Ao fechar a porta, em minha mente toca Mogwai, Yes! I am a long way from home.

05 de setembro de 2019

terça-feira, 2 de julho de 2019

A morte, que nos joga o presente na cara.

“Viver é ir morrendo aos poucos”, me ensinou uma vez minha mãe, enquanto dividíamos uma dor. Quando for a nossa morte, a morte definitiva, biológica, essa, arrisco, nos será indiferente: não estaremos mais aqui – nem em lugar nenhum – quando ela nos encontrar. É no trajeto até esse  nosso encontro que a morte – seja a real, seja a simbólica – dói: parte da vida. 
O mundo atual tem dificuldade em lidar com a morte: criamos, inclusive, éticas super racionais que tentam negar a morte como parte da vida – e, admito, estou inserido nesse espírito do tempo, ainda que tente ir contra. Porém, a vida só subsiste com a morte: para as vidas que surgem é preciso que outras partam, até para a Terra sustentar todo mundo. Ouso ainda: a vida só faz sentido com a morte: a perspectiva de nosso fim é que dá sentido à nossa existência no mundo. E a morte nada tem de racional: ela chega quando chega, o fim é o fim quando acontece, e não porque se cumpriu um ciclo, se esgotou o que havia para ser. Em geral o fim chega no meio, interrompendo de chofre algo que prometia se alongar ainda muito tempo – não só prometia, desejávamos. E vai sobrar para quem fica a batata de lidar com isso, com a dor da perda, com o luto, com a existência rasgada em algo que era então praticamente essencial.
Talvez uma das coisas mais devastadoras de um fim seja nos jogar no rosto o presente, esse instante fugidio que parece sequer existir, e com o qual preenchemos de futuros, tentando nos antecipar aos instantes fugidios que virão a seguir – ou ao menos acreditamos que virão. E quando chega o fim – a morte –, nossa fantasia de que o futuro de fato existe é interditada. Vem a sensação de vazio, de solto no espaço. Todos nossos projetos, nossos planos, nossos sonhos, nossos desejos para aquela pessoa, aquela situação, de repente passam a ser mera ilusão – e eram tão reais até um segundo atrás: estavam ali, ao nosso alcance, bastava o calendário chegar, o relógio marcar mais meia hora!
Lidar com os cacos – de futuro, de presente, de si próprio, porque parte nossa estava em grande medida ancorada nessa quimera. Puxar o passado com a esperança de que isso aplaque nossa angústia, nosso vazio, que explique que tinha que morrer ali, que justifique aquela dor. Em vão: a dor está presente e de nada adianta a razão negá-la. É difícil estar sozinho essas horas – por mais que seja necessário: a solidão assola, amedronta, e se mostra em sua crueza.
Mas haverá uma hora que a vida se impõe, e recomeçaremos a preencher nosso presente de futuros e projetos, com base em novas fantasias – ou se apoiando mais firmemente em velhas -, desejando que dessa vez o fim não venha, tentando abafar a angústia de saber que a morte é nossa única certeza – sorrateira e iminente –, fingindo ignorar solenemente que, a não ser que nossa morte venha antes, essa dor voltará – porque viver é ir morrendo aos poucos.

02 de julho de 2019

PS: por coincidência, o professor Roberto Romano faz uma postagem hoje em seu facebook intitulada “Sobre a dor na separação”. Indica o livro A separação dos amantes, do Igor Caruso. A ver se não revejo minha posição...

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Uma criança brinca na cidade plúmbea

Nos últimos quatro anos, com o passar do tempo que parece que não passa e o suceder das crises que não se resolvem, apenas são suplantadas por novas crises, o Brasil vai lentamente se desenhando com as cores do Ensaio sobre a Cegueira, do Saramago. Zanzar por Ésse-Pê prestando atenção às insignificâncias da cidade é ver emergir um cenário pós-apocalíptico enquanto ainda se espera pelo apocalipse. Talvez o Metrô seja onde isso possa ser visto com mais clareza. O meio de transporte que meia década atrás emulava a imagem idealizada da Europa, com seus trens limpos e frescos e seus usuários bem vestidos, é hoje um micro retrato do país - e de projeto de país, ou melhor, de destruição de.
Em meio a atrasos e interrupções da rede - parte por causa do sucateamento promovido por Alckmin-Doria Jr, parte por usuários dando cabo à própria vida embaixo de um trem -, ambulantes interrompem o anúncio de seus (sub)produtos de cinco reais para brigar entre si sobre quem teria o direito de vender naquele vagão, mulheres clamam misericórdia feito leprosos na Idade Média europeia, crianças disfarçam de prata o preto de sua pele e se exibem algo como um Chaplin imberbe e precocemente envelhecidos em sua desesperança, artistas tocam músicas animadas e deixam escapar seu presente despedaçado - todos em busca de qualquer esmola, uma moedinha, um alento para sobreviverem até amanhã e recomeçarem sem pensar que depois de amanhã o futuro será igualmente claustrofóbico, tal qual um Sísifo míope e mutilado. Nos corredores das estações, violinistas do Titanic, arautos do fim do mundo, balas de côco por um real, guarda-chuvas com sotaque francês-africano, pessoas que dormem cobertas com o que têm à mão, enquanto outras ficam paradas em posições estranhas, olhando para o nada, catatônicas - as primeiras esperam a chuva passar, as segundas parecem esperar que o tempo passe, tão somente, até que chegue o nada. Me lembro que cada sociedade produz seus tipos específicos de "loucos" - quais serão os dos próximos anos?
Na estação República, vejo uma cena ao mesmo tempo bonita e triste. Talvez a tristeza não exista, seja projeção minha, de quem ignora a realidade - assim como a beleza que enxergo também é o aflorar de clichês de minh’alma. É um menino negro, cerca de doze anos, roupas simples - mas que indicam que não mora na rua -, uma coroa de princesa na cabeça e uma boneca loira (estilo Barbie). Está muito entretido, os olhos brilham, tem um sorriso sincero de quem realmente se diverte. Brinca alheio aos adultos que passam encharcados de chuva, pressa e angústias (passado a catraca parece haver espaço seguro para que se brinque ou se perca, sem ser perturbado por estranhos ou seguranças). Na sua mão a boneca voa como um super-herói para logo em seguida rodopiar feito bailarina. A beleza está nessa alegria pueril, despreocupada, centrada apenas em brincar. A tristeza que me bate é imaginar quais preconceitos e empecilhos o garoto não teve que enfrentar para poder vestir uma coroa e brincar de boneca, desde o menino não brinca de boneca até a própria dificuldade em adquirir uma, chegando à mais atual: poder ser a criança que desejava apenas já pré-adolescente, quando o esperado seria negar, ao menos em público, que se é criança. Me parece significativo que seja numa estação de metrô, anônimo, e não em um ambiente de família - e emblemático que a poucos passos do Museu da Diversidade. Tanto tempo esperando por um prazer simples.
Reflito um pouco menos melancolicamente a cena vista. Que haja idade certa para viver começar a ter experiências, não discuto, mas que não se possa voltar e fazer coisas que não são consideradas da idade, isso é tão absurdo quanto o quotidiano claustrofóbico dos miseráveis e dos funcionários do Metrô. A criança com coroa de princesa que brinca com a boneca, apesar de já um pouco além da idade que se brincaria assim, talvez seja uma prévia para o que vem depois da epidemia de cegueira, um ensaio sobre a lucidez que, se insistirmos com nossa luta, lograremos encontrar, um pouco fora do tempo certo, mas ainda no tempo de ser aproveitada.

08 de abril de 2019

segunda-feira, 25 de março de 2019

Não que eu seja acumulador...

Não que eu seja acumulador - muito. Nem tenho como sê-lo, uma vez que moro em um apartamento pequeno, com dois gatos, onde não cabe quase (mais) nada além do que já tenho: quilos e quilos de papel (distribuídos em livros, fotocópias, programas de teatro e orquestra, recortes diversos, acrescidos de três caixas de livros iguais, no caso, os meus, ainda esperando por seus futuros compradores - tem promoção para combo!), uns materiais de pintura e desenho, equipamentos de marcenaria e iluminação, uns tocos de madeira do curso de marcenaria que ainda pretendo um dia usar, e outras coisas menores, como esteira para yoga, espada de tai chi e didgeridoo de pvc (para não falar nas caixas de papelão, utilizadas pelos gatos, que se multiplicam pelos parcos espaços livres da casa). Mas não sou acumulador!
E não sou mesmo. O grande ponto é que fui educado num clima de economia de guerra - fruto da infância de privações que forjaram meus pais - e numa casa com um enorme porão, apto para acolher e acumular todo tipo de cacarecos - desde minha coleção de pedras da infância (há muito expurgada) à minha coleção de latinhas da adolescência (ainda lá, em companhia de cadernos da pré-escola e enfeites de Natal da década de 1980 e 1990).
Nessa "educação para a economia de guerra" (claro, economia de guerra para a população que sofre com ela, não para os industriais e generais que enchem as burras com as desgraças do povo), adquiri um hábito, ou melhor, dois hábitos anticonsumistas: o primeiro, de não comprar por impulso - afinal, não se sabe o dia de amanhã e esse dinheiro pode fazer diferença -; o segundo, de não descartar o que pode ser reaproveitado por impulso - afinal, não se sabe o dia de amanhã e esse treco pode fazer diferença e não ter dinheiro ou não ter onde comprá-lo. 
Numa casa com porão enorme e quando se é criança, isso é ótimo! Construí diversas cidades com madeiras que sobraram da construção da casa, montei naves espaciais com latas e caixas, e até preparei um presépio de natal com homenzinhos (não sei como se chama hoje os "bonecos para meninos", porque boneca era para menina (assim como a She-Ra), ainda que eu tenha tido uma ou duas) e sucatas, tudo pintado com guache - que minha mãe impediu de pôr na sala e eu me revoltei, já que não teria visibilidade para minha arte. 
Quando se é adulto e num apartamento de 40 m² (mal distribuído, ainda por cima)...
Porque vontade de guardar sucata não me falta, ainda mais quando se tem um enteado com oito anos - por mais que ele, a princípio, seja dos eletrônico (apesar que as arminhas que fizemos com rolos de papel higiênico e a faca que fiz com madeira, usou até quebrar). Foi com dor que me desfiz de meu ventilador quebrado, quando Natália avisou que não permitira eu levá-lo para sua casa - eu já planejava uma super nave espacial. Mas o curioso desse hábito é que ele começa a se espalhar para além de sucatas. Nem eu percebo. É comentário de alguém que me faz ver que é... talvez eu esteja exagerando. Como aquele tubo de pasta de dente ou creme de barbear, que você nota que ainda tem um restículo, mas já cansou de espremer, ao invés de jogar fora, guardo para qualquer emergência - vai saber, vai que um dia termina a pasta de dente e eu fico sem. Como se eu não fosse classe média remediada e morasse a quatro quadras de um supermercado 24 horas... foi preciso meu irmão jogar sem dó no lixo para eu ver que podia ter feito. Ou, pior, dia desses ofereci castanha do Pará a um amigo, e ao comermos, perceptível que já havia passado. Pus de volta no armário, ao que ele me questionou: se está ruim, está guardando por que? A resposta estava na ponta da língua: vai que não precise alguma hora... só não fez sentido.
Uma coisa que jogo fora quando vence, isso sem dó, é remédio. Este fim de semana, invejando meu gato e seu omeprazol diário (meu estresse com seu quiproquó se faz sentir no meu estômago) fui atrás de um para mim. Achei uma caixa vazia, vencida em 2017. Resolvi ver se não teria mais remédios vencidos. Quase todos. Havia também um protetor labial, que há um bom tempo não lembro de usar. Fui ver se já não estaria vencido: agosto de 2002. Fiz as contas: no mínimo, esse protetor labial me acompanhou em cinco casas, três cidades! Isso se não levei ele de Pato Branco, na primeira mudança! É quase tão velha quanto algumas das roupas que ainda uso (a mais antiga que ainda me veste seguidamente é de 1995 ou 1996, não tenho certeza)! Bateu aquela nostalgia, lembrar tudo o que passei acompanhado desse protetor labial tão pouco usado e que eu nem lembrava que existia. Até pensei se não caberia a pergunta se não deveria guardá-lo - talvez doar para um museu, vender como protetor labial "vintage" ou "retrô" em algum site? Comentei do achado com Natália e com minha mãe. Talvez tenham combinado pelas minhas costas, mas deram a mesma resposta: joga fora!!!

25 de março de 2019


terça-feira, 5 de março de 2019

Cabeças que sangram (é carnaval)

Me aproximando de uma das entradas da estação Ana Rosa do Metrô, vejo um homem no chão e outro sobre ele. Há um grupo de pessoas que recém saiu do ônibus que dificulta minha visão. Imagino que o homem deitado no chão tentou algum furto e está imobilizado, enquanto esperam as forças da "ordem". Assim que o ônibus parte, reparo que há um carro da polícia e dois militares assistem impassíveis aos dois homens. O homem no chão tem a cabeça sangrando, uma poça de sangue ao seu redor, está bastante agitado e é amparado pelo que está sobre ele. Cabeças que sangram. A imagem me traz a lembrança de cena vista rapidamente do carro, em Florianópolis, em janeiro. Voltávamos do Pântano do Sul, próximo ao meio dia do dia mais quente dos últimos noventa e oito anos (segundo noticiou a imprensa). No acostamento da estrada, no meio do nada, um carro da polícia - dois militares conversam com um homem que sangra pela cabeça. Pode ser que o homem, diante daquele calor e daquele sol, tenha caído, batido a cabeça e os policiais estejam ali a auxiliá-lo. Igualmente possível é que o ferimento tenha sido causado pelos policiais. Cabeças que sangram. Uma polícia de confiança. Certa feita, passava em frente o Edifício Wilton Paes de Almeida (o que desabou em maio do ano passado), e um homem alcoolizado tinha um ferimento na cabeça que vertia sangue. Em desespero se esforçava para afugentar os conhecidos que tentavam facilitar a vida de um bombeiro que chegara para ajudar - "calma, não é a polícia", diziam, sem serem ouvidos. Cabeças que sangram. A polícia que mais mata e mais morre. E os policiais militares, presos em suas viseiras de guerra, não veem ligação alguma entre matar e morrer - e acreditam piamente que a paz dos cemitérios trará uma vida de paz, apenas não atentam que então estaremos todos mortos. Assim como creem que pôr medo é ter autoridade - tal qual fazem os "bandidos" que dizem combater. Com a sensível diferença que se os "bandidos" usam da força para se impor inicialmente, não raro ganham o respeito dos que vivem em seus territórios não por medo, mas por autoridade mesmo - a PM, em compensação, só consegue se impor pelo medo, pelo autoritário, nunca pela autoridade, nunca pelo respeito. Cabeças que sangram. Um Estado que exclui parte de sua população, tida como inimiga. As elites - políticas, judiciárias, midiáticas, econômicas - hipocritamente ignoram que uma polícia que mata é uma polícia que pede também para ser morta - PMs são bucha de canhão para proteger seu patrimônio e seus privilégios, e a violência dificilmente os atinge diretamente para terem com o que se preocupar. Quem não reagiu está vivo. Mirar na cabecinha... e fogo! Cabeças que sangram. Quase sempre as pretas pobres periféricas. Às vezes, mais recentemente, também sangram cabeças brancas - junto com braços que quebram (mas há punição para policiais que são pegos pela imprensa agindo tal qual bandidos: afastamento para funções administrativas; alguns preferem virar motoristas de deputados). É carnaval e é proibido Lula Livre. É proibido Lula. É proibido. Máscaras e Black Blocs no passado, fantasias e blocos carnavalescos no futuro? Mas seguimos livres para festejar a morte, com ou sem sangue, inclusive de crianças, seja de Arthur, seja de Marcos Vinícius - necrossociedade fascista (e ainda assim Marielle Franco vive e resiste!). Cabeças que sangram. Polícia que observa. Porque nossos militares são tão confiáveis no trato com a pessoa, no respeito à vida, que há lei que impede a PM de socorrer vítimas. Polícia sempre suspeita. Um dos militares se aproxima de uma mulher que acompanha a cena e pergunta se ela presenciou algo. São cinco da tarde, pela hora e local, descarto que o sangramento na cabeça do homem tenha sido causado pela polícia: pode ser que tenha sofrido algum ataque homofóbico ou mesmo de algum grupelho neofascista "empoderado" pelo "mito", atacando aleatoriamente quem encontrasse na rua - afinal, é neofascismo -, pode ter sido simplesmente que, muito bêbado, tenha caído e se machucado - afinal, é carnaval em tempos de neofascismo. O homem agita a cabeça como meu gato quando foi atropelado - a cena me perturba, eu sigo meu caminho. Nunca vi PM fantasiado de palhaço assassino portando machado para abordagem nos Jardins*. Cabeças que sangram. 


05 de março de 2019

PS: fiquei sabendo após ter publicado a crônica, mais um exemplo dramático de "cabeças que sangram" neste país do neofascismo bolsonarista-evangélico http://bit.ly/2EOWQKY

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Um domingo preguiçoso me leva a outras paragens

Domingo, acabamos de almoçar. A tarde está quente, em especial o sol, porém o calor não chega ser desagradável, antes um convite à preguiça. Convite reforçado pela rede e pela própria casa de Natália.
Desde que ela se mudou fico tentando imaginar como seria quando o prédio foi construído, na década de 1950. A meia quadra da Domingos de Moraes, é o primeiro da proximidade, três andares - no mais, as construções antigas, mesmo as posteriores ao edifício, são sobrados de um andar. 
Lembro de quando, fins dos anos 1980, o primeiro prédio de quatro andares despontou na quadra da casa onde morava, em Pato Branco. Meus pais reclamavam da sombra, da falta de privacidade (o fato de se limitar a quatro andares, diziam, era que isso desobrigava de elevador). Lembro do gelo das geadas que passaram a durar até próximo do meio dia, no fundo do quintal - eu gostava. Logo subiria o segundo prédio, o terceiro, o quarto - no lugar da primeira escola da cidade, expulsando a moradora, uma das pioneiras de Pato Branco, que sofria de Alzheimer e vivia no passado -, o quinto, finalmente, tinha elevador e oito andares, acabando de vez com o sol da manhã na casa. Uma década e Pato Branco se tornaria uma cidade pequena que se acha grande: vertical (porém sem elevador), congestionada, pessoas isoladas em seus caixotes e nada - sequer as fofocas nas cadeiras das calçadas - para dissipar o tédio que se renova a cada nascer do sol junto às plantações cheia de agrotóxicos - doses homeopáticas de Napalm autorizadas pelo governo e regadas alegremente pelos colonos.
Na década de 1950 São Paulo já tinha seus arranha-céus, não a Vila Mariana. Qual teria sido o impacto deste predinho, colado na calçada. O começo do fim do bairro? Ou a escassez de televisores e as forças da ordem ainda não impondo a paz de cemitérios nas ruas, por um tempo mais forçavam as pessoas a se encontrarem, não importava quão acima do chão estivessem? 
A varanda está cheia de plantas, a rede com as cores do arco-íris fica para o lado de dentro. Ainda que haja muitos prédios nas cercanias, poucos atrapalham a visão do céu dali da sala. Acompanho as nuvens desfilarem pelo céu azul, como fazia em criança, deitado na grama, olhando para o céu, para nuvens ou estrelas, sem procurar nada, formas familiares ou constelações (nunca soube identificar nenhuma constelação além do Cruzeiro do Sul), apenas observá-las - no máximo, nas noites sem nuvens, eu gostava de ver aquele borrão branco que diziam ser uma galáxia. Pelo apartamento de Natália ser no primeiro andar, colado na calçada, a rua parece seu quintal. O pouco movimento, a preguiça do calor, o balanço da rede, o azul do céu, fazem com que me sinta em alguma cidade pequena de algum tempo de antanho, de forma alguma em um bairro central da maior cidade brasileira. Pato Branco? Ou São Paulo mesmo? Ou qualquer coisa entre as cidades que já me habitaram? Presto atenção na calçada, uma pessoa passa em ritmo de domingo: mais de seis décadas atrás, o antigo morador, aproveitando a preguiça de um domingo de fevereiro, teria visto Lasar Segall passado pelo outro lado da rua?

24 de fevereiro de 2019

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Uma aventura banal de almoçar na Liberdade num domingo


Para almoçar na Liberdade no domingo, faz-se mister alguns requisitos, além do elementar vil metal (não convém se fiar nas versões plásticas): estar com tempo, paciência, bem acompanhado e sem muita fome ao chegar (pois a fome estraga o humor, corrompe as boas companhias e retarda a passagem do tempo). Quer dizer, ou é isso, ou é um smartfone, que aí você esquece "naturalmente" do tempo, da fome, das companhias chatas (e das legais também) e, se não te cutucarem, esquece até que está num restaurante e pretende almoçar. Enfim, me filio à primeira tradição, e vou com um casal de amigos almoçar num conhecido restaurante chinês, espírito preparado para as aventuras que eventualmente nos aguardam - ainda que, decepcionante, hoje há um garçom e duas garçonetes que falam português nele, diminuindo potencialmente a aventura (como pedir para levar a sobra para viagem e ser servido de um novo prato, igual àquele que resta mais da metade na sua frente).

O casal de amigos queria ir à uma da tarde, bato o pé: ou onze e meia ou duas e meia. A contragosto, aceitam, e chegamos às duas e meia. Eu esperava quinze minutos de fila, eles imaginando entrar direto, cozinha prestes a fechar, e a realidade nos brinda com quarenta minutos para curtir o apetite. A fome aperta nessa espera, e ao vermos um casal que se levanta e sai, deixando o cardápio sobre a mesa, já nos antecipamos no que vamos pedir, para não termos o mesmo infortúnio de sequer conseguirmos fazer o pedido.
Sentamos à mesa e não tarda para uma garçonete se aproximar e perguntar se é dali que pediram frango com gengibre - negamos e ela sai com o prato para a frente do restaurante. Caçamos outra garçonete, ela praticamente atira o cardápio e se prepara para sair, sem nos dar tempo de fazer o pedido, quando é parada pela primeira atendente, carregando o tal frango com gengibre - que após breve conversa parte para o fundo do restaurante. Aproveitamos a deixa e não deixamos ela sair sem anotar nosso pedido. Não demora muito e chega uma garçonete perguntando se é ali frango e carne com legumes - nosso pedido é apenas frango (meu amigo é alérgico a carne bovina). Ela sai para a frente do restaurante, a moça com o frango com gengibre volta a passar, agora para o andar superior, a carne e frango com legumes passa também, em direção aos fundos do restaurante - e logo veremos novamente o frango com gengibre indo passear na frente do restaurante. Nosso pedido chega (o que faz com que nos distraiamos da saga do frango com gengibre), frango com legumes - simplesmente tiraram os pedaços grandes de carne do prato de carne e frango com legumes há cinco minutos trazido. Aviso que não faz sentido reclamar, até porque pode ser tarefa hercúlea que nos entendam; se for o caso, melhor ficar só com o segundo prato - tofu com camarão. Meu amigo olha desolado, eu comento: "avisei que aqui é com aventura", "mas quando viemos foi tudo certinho, trouxeram exatamente o que pedimos", "é que vocês deram azar, agora estão conhecendo o restaurante em toda sua plenitude". Ele opta por fazer uma seleção criteriosa do que por no prato, tentar aquilo que não estaria contaminado. Leva tempo nisso, bem mais que para tirarem as carnes, na cozinha, minha fome apertando enquanto ele analisa detalhadamente cada coisa que pega - é o momento em que o humor vai dar uma voltinha e só volta depois de comer um mínimo. O tofu demora, mas chega. E a última parte do pedido, o arroz branco, para acompanhar, nada. Pedimos a uma garçonete, "tá bom", ela diz e some. E logo passa por nós, e nada do arroz. Pedimos a outra. "Está faltando? Já trago". Mas não traz. Pedimos à garçonete brasileira, ela nos explica: "quando é assim, tem que pedir logo que trazem o prato, porque se não é capaz de esquecer". Agradecemos e esperamos pelo arroz... que não vem. Os pratos principais já estão pela metade quando pedimos a outra garçonete, e ela não tarda dois minutos para trazer três potes - havíamos pedido dois.
Se o arroz havia sido uma novela, pedir para embrulhar o que sobrou para viagem e pagar a conta foi tarefa ainda mais árdua. A terceira garçonete - uma das brasileiras - nos faz um gesto pedindo paciência de uma delicadeza que nos faz temer levar um soco. Na quarta garçonete a quem pedimos, ela sai do nosso campo de visão, para logo voltar, se dirigir ao armário que fica na nossa frente e pegar duas embalagens de isopor. Finalmente!, comemoramos, e ela então vai embrulhar a comida de outra mesa. "O restaurante está já pouco movimentado, não dá para justificar como com o arroz, que tinha movimento", meu ingênuo amigo tenta entender, eu explico: "eles tentam manter o padrão de qualidade, independente de muita ou pouca gente, ou então o restaurante perde mais uma boa parte do charme" (parte desse charme ele perder quando passou a se adequar às normas da vigilância sanitária, para evitar ser fechado de tempo em tempo). Ao cabo de vinte minutos e seis pedidos, nos fizeram o favor de embrulhar para viajem e nos dar a conta - estávamos libertos!

04 de fevereiro de 2019



sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Duas Floripas

A temporada que passei em Florianópolis foi também uma viagem no tempo - rememorações muitas brotaram nas duas semanas que passei na chamada Ilha da Magia, na casa de meu irmão, em companhia da minha mãe, da noiva do dono da casa, da minha companheira e seu filho. 
Floripa para mim, em minhas memórias afetivas, é duas cidades absolutamente distintas. Uma que vai de 1988 até 1994, outra que começa em 2000 e segue até hoje.
A Floripa atual me soa uma São Paulo que trocou a efervescência cultural por praias, uma especulação imobiliária mais selvagem e um trânsito muito pior que o da capital paulistana - levemente aliviado por um túnel que parece ter sido encomendado pelo Maluf (trem, metrô, corredor de ônibus pra quê?). Uma cidade em que o point de cooper, paqueras, passeios em família é a avenida Beira Mar, um calçadão estreito entre duas poluições: de um lado, um mar onde bostas boiam, do outro, uma highway a fazer barulho e levantar fumaça de óleo diesel - uma espécie de marginal Pinheiros que teve a sorte de ser escolhida pelos bacanas para fazerem seu "footing", seu "slackline". No mar, em quase todos os locais que frequentamos, lanchas e barcos "piratas" dão um ar brega à paisagem.
Quando o avião começava seu procedimento de aterrissagem, me lembrei o que ela foi para mim nos últimos vinte anos. É a cidade em que descobri o quanto minha família é preconceituosa, racista, estreita - e o quanto meu pai era ponto fora da curva. Meu tio que contava mil piadas e me divertia na infância imitando Pato Donald, descobri em 2000 que a grande maioria das suas "piadas" eram de negros (saí ofendido desse nosso derradeiro encontro). Em 2006, ouço outro tio questionar se eu achava que a Veja ia mentir, enquanto falava mal do Lula por ter escolhido um "preto" pro STF - afinal, o que se esperar de um presidente "cabeça chata"? Em 2011, na comemoração dos 80 anos de minha avó, começou a me cair a ficha do que eram as noitadas de meu primo de Curitiba, com seu grupo de amigos neonazi: não era para balada, era para humilhar, agredir, torturar (talvez matar?) negros, nordestinos, "viados", travestis, pobres e outros "lixos humanos" do tipo. Nesse encontro ele dizia ter mudado, era professor de yoga, tinha virado pai há pouco - não acreditei e esta eleição me fez ver que eu estava certo, segue o mesmo fascista de sempre, igual seu pai. Pior: foi nessa viagem para Floripa, em 2011, que recebi a notícia de que o câncer de meu pai voltara.
Ao ir para as praias me veio a velha Florianópolis, de quando eu era criança, ingênuo, não entendia bem o que acontecia no mundo dos adultos, e por isso a cidade era basicamente feliz. Viagem em família, nos fins dos anos 1980 e início dos anos 1990, quando mochilão não era moda - não aos habituais destes Tristes Trópicos -, tampouco viagens de turismo comercial - em lugares transformados em semi não-lugares para consumo. Férias era pegar o carro, comida, meia dúzia de fitas, e sair visitar parentes e amigos durante quase um mês. O roteiro básico da minha família era Pato Branco - Florianópolis - Curitiba - Matinhos - Ponta Grossa - Pato Branco. Os quatro no carro, eu incomodado de ter que usar cinto de segurança - mas na estrada é preciso, dizia minha mãe, sem chance de negociação -, e mal esperando a hora de chegar na cidade para tirarmos aquele trem que limitava o livre movimento em caso de acidente. Não raro minha mãe tinha que viajar atrás, entre mim e meu irmão, para evitar brigas. Em 1989, lembro do Corcel branco que passou por um buraco e precisou parar no acostamento, perto de uma lagoa - alegria para a criança que eu era. Meu tio com seu buggy, imitando Pato Donald; assistir à Pantera Cor de Rosa com meu outro tio; inventar um computador com duas folhas de papel e apresentar jornal de frente para o espelho, o quarto fechado, abafado, porque se abrisse a janela seria impossível dormir de tanto pernilongo; os ratos no quintalzinho do prédio de meus tios; Raça Negra fazendo versão de Legião Urbana no carro, Jorge Ben Jor cantando Engenho Dentro em "homenagem" ao meu conterrâneo no ministério da saúde de Collor, Skank com Indignação e Biquini Cavadão com Vento Ventania; meu irmão fazendo um escândalo desesperado para entrar na sala de dentista para tirar um dente de leite pendurado, eu descobrindo que sou daltônico, e meu irmão que é míope; meu tio agressivo contra o flanelinha dizendo que estava armando e não precisava "pensar duas vezes antes de dar um tiro na cara de um preto safado" (e eu não entendi o porquê de toda aquela agressividade gratuita, ainda não conhecia o que era o preconceito); a chica argentina tentando puxar conversa comigo na praia dos Ingleses; as dunas da Joaquina, onde achei uma nota alta de cruzeiro; a água viva queimando meus pés enquanto eu puxava meu irmão na prancha de body-board verde; os congestionamentos para voltar da praia e a parada, na volta da Lagoa da Conceição, numa venda de milho verde e rosca de polvilho, de onde víamos ao longe o trânsito fluir lentamente; o Pântano do Sul era uma praia nos cafundós da Ilha, quase deserta, três famílias de turistas que eram chutados da praia no fim da tarde pelos moradores locais, pois era hora de eles jogarem futebol, no meio do caminho (acho que era para o Pântano) uma igreja antiga, da época colonial, branca e dourada (ou seria amarela?), caindo aos pedaços, pela fresta na porta via seu interior, uma viga de sustentação caída sobre bancos rotos. Ruínas de uma cidade antiga.

04 de janeiro de 2019


domingo, 23 de dezembro de 2018

Popeye vai ser papai?

Sei lá por que cargas d'água me veio Popeye hoje à memória - o elo mais forte que encontrei foi rever um amigo cuja última vez o vira no chá de bebê de um amigo em comum. Popeye sequer era dos meus desenhos favoritos. Mas veio, e justo na hora do banho, quando parece que minha mente trabalha em ritmo alucinado fazendo conexões aleatórias e tendo insights fenomenais - muitos dos quais irão pelo ralo assim que eu desligar o chuveiro.
A escolha de uma marinheiro para personagem de desenho infantil não deixa de ser curioso: ainda que utilizado (como vi na Wikipedia) para propaganda de guerra durante os anos 1940, trata-se de um marinheiro civil e não militar, ou seja, a escória da sociedade: pessoas não-família (pela própria natureza do trabalho), pouco instruídas - brutas -, "pederastas" (como n'O Bom Crioulo), tatuadas - vale lembrar que até meio século atrás, além de marinheiros, apenas presidiários, mafiosos da Yakusa e povos primitivos se tatuavam. Ademais, vinha um marinheiro ensinar não apenas virilidade, mas da importância de se comer vegetais - apesar que seu espinafre soava mais um anabolizante de efeito imediato para bater nos fortões (winners?) da vida que uma salada (vi que há uma versão atual, com apito no lugar do pito e espinafre orgânico). A própria Olívia Palito, era o contrário do padrão de beleza da época (sua forma palito tornou hypster-up-to-date apenas no último quarto de século).
A lembrança que trouxe Popeye à baila, contudo, foi da música tema. Mais especificamente, da letra que, na minha infância, cantávamos a partir desse tema: "Olívia vai ter neném, Popeye vai ser papai, o Brutus vai ser titio, ô lê lê, e viva o marinheiro Popeye!" (pesquisando achei uma tenebrosa versão atribuída à Eliana que mais parece que alguém fez para queimar a imagem da apresentadora infantil, mas parece que é de verdade a versão). O que fiquei matutando no banho foi: por que diabos o viva tem que ser pro Popeye? Que ele fez demais para merecer as vivas e não a mãe, que está ali, com suas finas pernas, sustentando outro ser.
Ainda que no meu círculo de amigos os pais sejam ponta firme, dos que cuidam de verdade, trocam fralda, põe a criança para dormir, dão bronca, banho e brincam, me consta que sejam exceções à regra, predominando, entre os pais "presentes" (numa acepção bem lata), os "pais de selfie", que ficam só com a parte do brincar e mostrar pros amigos (e, não raro, xingar a mãe pro filho), isso quando não são pais-fantasmas. Ainda que esses meus amigos mereçam elogios, não me parece que mereçam vivas - tentar ser bom pai deveria ser obrigação, como tentar ser boa mãe, dentro das possibilidades e erros da paternidade e maternidade. O filho de Popeye e Olívia sequer nasceu para darmos vivas pelos bons préstimos do marinheiro de cara torta no cuidado e educação do filho. Seria, talvez, porque Popeye tinha disfunção erétil (efeitos colaterais do fumo), e mesmo sem Viagra conseguiu fecundar Olívia, é por isso o viva?
Ao fim e ao cabo, ao escrever esta crônica e saber que Popeye está politicamente correto, me questiono se além disso está prafrentex també: pacifista, defendendo causas ecológicas (como a pesca responsável), assumindo o poliamor (latente desde sempre nas suas histórias) e ajudando a cuidar do filho parido pela Olívia - independente do resultado do teste de DNA -, afinal, pai é quem cuida e ajuda a criar.

PS: ainda estou indignado em pensar que passei minha infância cantando "e viva o marinheiro Popeye" porque ele engravidou Olívia Palito...

23 de dezembro de 2018

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Pequenas lembranças em uma tarde quente

Acompanho Luis até a rodoviária da Barra Funda. Comento com ele que o calor de São Paulo destes dias me faz lembrar do título de um filme que vi quando fazia curso de espanhol, em 1995, 1996, por aí: "El aliento del Diablo". Não lembro de absolutamente nada do filme - salvo o título -, mas esse bafo seco que sopra em SP me parece digno de relatos bíblicos infernais ou dos meus piores dias em Campinas ou Ribeirão Preto. Estou vestido todo esporte, mas a roupa não é fresca para os mais de 30°C. A camisa de futebol não é dry fit ou qualquer tecido especial, é do Putaquepariuprafora!, time da faculdade, do campeonato de 2004. A calça é um pouco mais nova, dois ou três anos, do tai chi, tactel, boa para dias de chuva, pois seca rápido - quando saí de casa ameaçava chover -, para agora, me gruda nas pernas suadas. O óculos que uso não é esporte e também já tem uns anos de uso - oito, para ser mais preciso -, e grau que não me cabe mais, descobri semana passada (minha miopia regrediu 0,75 em cada olho); está todo troncho porque Libertad, minha gata, o derrubou e vários livros em cima e ela em cima de tudo. O tênis, esse sim, é novo! Tem uma semana, é mais bonito, mais confortável e - alegria do mão de vaca aqui - vinte reais mais barato que meu anterior, comprado dois anos antes (isso dá 17% de economia, não é pouca coisa!). Luis toma seu ônibus e eu vou pegar o metrô. Estou na escada rolante quando o trem chega e resolvo apressar o passo - desejo de entrar logo em um ambiente com ar condicionado e de chegar logo em casa. Ao sair da escada rolante me vem uma lembrança anterior ao meu óculos com grau a mais, à minha calça grudada na pele, à minha camisa do Puta, ao filme da aula de espanhol do professor Erivelton. Lembrança de quando estudava no Colégio das Irmãs (não era o nome oficial, mas cidade pequena autoriza essas simplificações), meus doze, treze anos, o corpo começando a crescer mais rápido do que a cabeça era capaz de atualizar a auto-percepção, e o chão visto de perto reiteradamente, o que me fazia morrer de vergonha. Pois saí da escada rolante e corri para pegar o trem. Meu tênis novo enroscou na minha calça e enquanto meu óculos e meu celular (celular flip, com vibracall, me sinto um up-to-date de 1999) deslizam pelo piso ouço "uuuufffffs" e "aaiiiis" de pessoas empáticas às dores do outro que se estatela no chão - o piso do metrô é gelado, como era o do Colégio das Irmãs. Recolho meu óculos, meu celular, confiro que minha carteira segue no bolso e retomo o trote para o trem, como se não tivesse acontecido nada, apesar das dores dizerem o contrário. Foi só quando ele fechou as portas que me lembrei de ver se minha chave de casa também estava no bolso - estava. Já no aconchego do meu lar - onde faz falta um ventilador - me certifico que um quarto de século se passou, e se o joelho direito ralado não se fez acompanhar de vergonha pela queda em público, tampouco veio sozinho: uma leve dor no ombro direito e uma baita dor nas costas ajudam a recordar minha pequena desventura nesta segunda feira de bafo infernal.

17 de dezembro de 2018

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Sextou na marginal Tietê

Sextou! São quase dez da manhã de uma sexta-feira banal nestes Tristes Trópicos. Diferentemente dos últimos dias, o clima está ameno e o céu, nublado. À pé, atravesso a ponte Cruzeiro do Sul. Da marginal Tietê sobe o ruído do trânsito carregado. Da ponte, vislumbro a São Paulo das escolhas erradas: a retificação do rio de Ulhoa Cintra - e a própria negação de possível função paisagística (ou mesmo de transporte, que não de esgoto) do rio, dando um respiro ao cinza urbano -, a marginal de Prestes Maia, o metrô de Faria Lima que corre ao meu lado - cujo projeto do consórcio alemão descartou estruturas e espaços prontos ou reservados para o modal (como o que depois viria a ser a terceira pista de Serra, outra escolha errada para éssepê), em favor de uma rede de custos elevadíssimos. Na beira do rio, junto a uma saída de águas pluviais (quero crer), observo entre as tremulantes bandeiras do Brasil fixadas na ponte, um homem. Ele está terminando de lavar roupa. Está na última peça, que estende ao lado das demais, no concreto. Mais de uma dezena de pombas o rodeiam, acompanham sua lida. Ao terminar de estender, ele pára e fica olhando para algo que não percebo - outra bandeira atrapalha minha visão. Ou talvez olhe para o nada, para a São Paulo das escolhas erradas, para o Brasil de patriotas canalhas, que amam os "USA" e odeiam o brasileiro. A previsão é de chuva a partir do meio dia - temo que não dê tempo de sua roupa secar -, o trânsito segue pesado.

07 de novembro de 2018


sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Zerovinteum vinte anos depois

A última (e primeira) vez que estive no Rio de Janeiro foi há vinte anos. Era o ponto final de uma excursão de vinte dias, que saiu de Pato Branco, parou em algumas cidades mineiras, atracou em Porto Seguro (onde ninguém fumou maconha nem perdeu a virgindade, e apenas dois exageraram na bebida, mas sem excesso - tínhamos entre 15 e 17 anos, acompanhados de três professores da escola, não muito mais maduros que os alunos, apenas maiores de idade), e na volta parou no Rio, antes de retornar para Pato Branco (eu ficaria no meio do caminho, em Ponta Grossa, para visitar meu avô, ocasião em que comprei um tênis que me acompanhou até o mestrado).
Não sei dizer onde ficamos aqui no Rio. Talvez Copacabana. Era perto da praia, creio, mas eu não fui - preferi ficar dormindo até mais tarde, estava cansado. Como também não fui ver a final do carioca (aí por besteira, mesmo), Botafogo e Vasco, no Maracanã antigo, com vitória do Botafogo (que, admito, tem um dos distintivos mais bonitos do mundo, se não O mais bonito, um Malevich suprematista com uma leve firula na borda, que não enfraquece a potência da estrela solitária). Lembro da visita ao Jardim Botânico. Sei que fomos no Cristo Redentor (mas desse passeio só lembro do taxista babando ovo pro Roberto Marinho, que tinha feito a rede de água e esgoto da comunidade acima da mansão dele - e que ele tinha um Volvo ou Jaguar de buzina poderosa, dizia o taxista). Visitamos o finado Museu Nacional, um museu triste, mal conservado, com infiltrações, inclusive na sala com as múmias (em nada parecia com as imagens que vi do museu que ardeu sob o desdém do golpe das elites). Fomos também até Petrópolis, onde dois PMs vieram tirar satisfação comigo, por eu estar com uma camiseta do Bob Marley (que por sinal ainda uso, mas mais para ficar em casa, até por conta de ser não muito discreta). Era a época em que haviam prendido Marcelo D2 e o Planet Hemp, por apologia às drogas (e eu até escutava Planet Hemp, mas gostava das músicas mais políticas, e não as apologéticas).
Isso foi há vinte anos. Hoje tenho outros olhos, outras leituras.
Antes de chegarmos à capital, trânsito pesado e congestionamento ao longo de cidades que pareciam saídas da crise de cegueira do livro do Saramago - congestionamento em ruínas habitadas de um estado pós-democrático em um pais pré-moderno, onde impera o arcaísmo tecnicamente equipado. Cenário pobre de Mad Max. Ou pior. Um carro traz um grande adesivo "Constituição NÃO. BÍBLIA SIM" (deve ser do tipo que arranca e queima algumas páginas da Bíblia, como o livro de Isaías, quando diz "serás libertado pelo direito e pela justiça"). Não é promessa de bang bang, é projeto de um Afeganistão Tropical. No caminho, vislumbro um ex-Ciep ainda bem conservado e tenho a impressão de que um Sesc é um ex-Caic (educação de qualidade sempre foi uma prioridade de nossas elites - evitar que ela chegue aos filhos dos populares). Ao chegar na Tijuca, o choque. Pouco antes, passamos pelo Maracanã - e, sim, bate alguma emoção (só não maior porque o sete a um não foi sofrido para a Argentina, na final). No bairro destino, diminui o número de transeuntes negros, calçadas com poucos carros estacionados (há pilastras de concreto que interditam o livre estacionar da vaca sagrada brasileira), ruas arborizadas, um quê de Palermo ou Recoleta (diante de alguns casarões antigos, me pergunto se algum dos romances de Machado não foi ambientado ali, eu que nunca entendi nem nunca me esforcei para entender os bairros e a espacialidade carioca). Dois mundos absurdamente diferentes e antagônicos. É como se tivéssemos passado um portal (como o que passo em São Paulo, para chegar à baixada do Glicério vindo do Paraíso). Meio portal, na verdade, porque nos morros, moradias precárias dividem espaço com a natureza deslumbrante e não é possível não enxergar. É um contraste, mas há algo que parece ordenado nisso. De qualquer modo, como canta Gilberto Gil, o Rio de Janeiro continua lindo - e vale para o Morro do Borel que vejo da minha janela, com suas luzes multicoloridas, à noite - o Rio de Janeiro continua sendo. Perto de chegarmos ao nosso destino, ouvimos um estouro. Alguém no carro pergunta se são fogos. Eu olho para o homem da lei, no outro lado da rua. Ainda o vejo atirar duas vezes em direção ao chão (as cápsulas parecem cair no asfalto lentamente após cada estrondo, algo onírico, um início de pesadelo caprichado na cenografia -  nunca havia presenciado uso de arma de fogo que não em ambiente esportivo e controlado). Desconfio que deva ter errado o alvo, pois corre na direção contrária e monta na moto (penso agora, talvez houvesse outros alvos). Só então meus colegas de viagem descobrem que foram tiros (eu ainda esclareço: não, não foi um tiroteio, apenas o PM atirou). A outra faixa tem o trânsito interditado temporariamente; na nossa, tudo normal, como nas calçadas, a vida segue como se fossem fogos de artifício, não tiros. Aqui é zerovinteum.

30 de novembro de 2018


terça-feira, 20 de novembro de 2018

20 de novembro, centro de São Paulo

Não são nem nove horas da manhã, passo pelo largo de São Bento. Um jovem está sentado em local não permitido. Aparentemente está passando mal - e não parece ter sido da noitada. Dois policiais militares se aproximam, interpelam o garoto - negro. Estou à distância, não sei o que conversam, o clima não é tenso (dentro do que estou habituado a presenciar nessas abordagens), mas a conversa é intensa, com os policiais eretos e rijos e o rapaz de cabeça baixa entre as pernas e uma garrafa de água na mão. O local é público, mas é proibido estar - certamente uma dessas regras de validade geral e aplicação específica, como presenciei várias vezes no CCSP, onde era proibido deitar nos bancos, por exemplo, mas se for branco dava para conversar. Um terceiro militar se aproxima, mais firme que os outros que já estão. Seguem a palestra, eu sigo meu trajeto. 
A praça da Sé mantém seu ethos para os dias inúteis (já que só os de comércio aberto são os úteis): deambulam por ela os renegados do baile, os humilhados do parque - pobres moradores de rua drogadictos loucos imigrantes bêbados, os improdutivos, os inúteis, os descartáveis -, observados por GCMs e seguranças do Metrô. Sequer a palavra do diabo serve para eles, como atesta a ausência dos pregadores que nos dias úteis gritam na praça sobre pecados e infernos. Em meio à escória e ao policiamento, alguns turistas com suas potentes máquinas fotográficas. Estou na fila do Caixa Cultural, para retirar ingresso para o espetáculo "Todo camburão tem um pouco de navio negreiro". Novamente, não conseguirei assistir à peça. Até saber disso, sigo na espera, intercalando a leitura de Dois Irmãos, do Milton Hatoum, com atenção ao entorno. Na minha frente um casal de jovens, vinte anos, se muito, negro, conversa - assuntos aleatórios. São ingênuos, idealistas - mas de uma ingenuidade que não invejo, e torço para que logo passe, sem cair no cinismo ou na desesperança. Depois de um policial civil (branco) passar pela fila (cheia de negros) ostentando uma metralhadora, dedo próximo do gatilho, a garota comenta que gostaria de poder voltar no tempo, voltar ao tempo da escravidão, para com um machado quebrar as correntes que prendiam seus antepassados e permitir que eles fugissem. O namorado estranha: você com um machado? Mais fácil seria roubar a chave. Nenhum dos dois parece ter tido ainda a ciência de que a escravidão não se resolveu (como ainda não se resolve) com a fuga, e sim com o enfrentamento, a luta, o embate, o combate - Palmares de Zumbi e tantos outros que o diga. A escravidão, como tantos problemas, em especial os que assolam pretos pobres periféricos, são absolutamente impossíveis de resolução dentro da moldura pequeno-burguesa (europeia-branca) de fuga isolamento e evasão, de deixar o tempo passar para resolver: somente na luta - consciente e coletiva - é possível a mudança efetiva. Quem sabe a peça do grupo Nóis de Teatro, de Fortaleza, desse um pouco de consciência a esses dois jovens negros, mas infelizmente eles tampouco conseguiram ingresso. 
Passo novamente pelo São Bento, não estão mais lá nem o jovem, nem os policiais - apenas a garrafa d'água e um outro pertence, parece uma pasta, que estava com o rapaz. Quero crer que os policiais trataram de dar socorro a ele, mas martela em minha cabeça: todo camburão tem um pouco de navio negreiro.
Hoje é vinte de novembro, dia da consciência negra. O desde sempre roto tecido social brasileiro se esgarça ainda mais, a violência antes tentada disfarçar na cordialidade brasileira hoje é bramida orgulhosa da sua ignorância bruta. O país segue como um navio negreiro em meio à tempestade - e em alto mar não há possibilidade fuga.

20 de novembro de 2018.

domingo, 14 de outubro de 2018

Fábricas de desajustados (texto atrasado para o dia das crianças)

Passo o domingo preguiçosamente. Me propus não entrar no Fakebook, para evitar maior desgaste (é preciso um dia de descanso na batalha), e aproveitei a rede na casa da namorada para responder ao e-mail de um ex-colega da faculdade, um dos meus grandes amigos até hoje, que reside na Colômbia, onde mora com o marido (e o namorado de ambos). Sim, estou sempre na antepenúltima moda comunicacional: quando todos trocavam e-mail, eu escrevia cartas (parei apenas em 2010 com esse hábito); agora que todos mandam mensagens breves por Fakebook ou Whatsapp, troco e-mails (com a temporalidade de cartas, ainda por cima). Enfim, no e-mail me sinto quase Chico Buarque em "Meu caro amigo", sem querer atiçar as saudades de meu amigo, ao menos não por esta terra, onde ele correria perigo, ainda mais, nos dias atuais - porque a saudade dele segue, e sei que a recíproca é verdadeira.
Enquanto escrevo, minha namorada e seu filho jogam o videogame que ele recém ganhou. O garoto tem oito anos, um pai que dá as caras (quando dá) a cada quinze dias, e serve apenas para prejudicar a educação filho, conforme queixa da mãe (e olha que ele sequer é dos piores, não só não aderiu ao fascismo como vota na esquerda), que eu mesmo já conferi - como o medo exagerado dele por certas situações, após ter assistido a um filme inapropriado para sua idade, para não falar do exemplo que o garoto acaba tendo. Não ajuda, e ainda atrapalha - como sói acontecer com tantos pais (ausentes ou presentes). Assim como outras mulheres, minha namorada ficou indignada ao ser acusada pelo general Mourão, candidato a vice presidente na chapa de Bolsonaro, de que, a despeito de todo seu esforço, dedicação e abnegação, estaria criando um desajustado. A indignação é justa, e a fala do general mostra bem a percepção que a chapa de Bolsonaro possui da presença feminina e seu papel na sociedade: a mulher, cuja função primordial seria a de criar os filhos e viver para a família, é de uma incompetência tamanha que nem isso sabe fazer, se não estiver sob a tutela de um homem. E pior que sei de mães solteiras de filhos negros que votam no fascista.
Mas ao ver a educação/formação que meu enteado recebe, e pensando também na de filhos de muitas amigas minhas (que os criam sozinhos ou com a presença ativa do pai, estejam casados ou não), alguém como general Mourão, como Bolsonaro dizer que fabricam desajustados não deixa de ser um elogio. O que seria uma pessoa ajustada, dentro da ótima desses neofascistas?
Ajustado seria aquela pessoa que não questiona, que não tem interesse real pelo mundo e pela vida; a pessoa adestrada feito um camundongo de laboratório, que aceita tudo, diz sempre sim; incapaz de refletir, incapaz de pensar, incapaz de sentir por conta própria - o mais profundo que alguém ajustado ao neofascismo conseguiria chegar seria um kitsch de segunda classe (conforme Kundera sintetizou o kitsch). Por isso o ajustado a Bolsonaro (como ele próprio) ama a morte: porque no fundo sabe, sente (mas precisa reprimir) que não vive de verdade, conforme seus desejos e seus anseios, que apenas segue a boiada, imita o que dizem que é bom, persegue objetivos que dizem que é bom, teme um deus que dizem que é bom (e nem nota a contradição), tenta ser alguém que dizem ser o bom - o cidadão de bem. O ajustado ao fascismo é alguém pobre de repertório, apto para acreditar em qualquer mentira, a seguir qualquer medíocre com o qual se identifique - Galvão Bueno ou Bolsonaro -, porque é alguém sem auto-estima, e reconhece o valor que essa sociedade ajustada de Bolsonaro e Mourão lhe dá: nenhum.
Às mulheres que criam seus filhos sozinhas, e aos pais que criam seus filhos em conjunto, minha sugestão, meu pedido: sejam fábricas de desajustados, de Mafaldas e Calvins (para usar meus heróis nos quadrinhos), de crianças que preferem aprender a pintar a atirar, que saibam amar e não odiar,  que toda forma de amor é válida, que tenham autonomia para dizer sim e não, e arcar com as consequências, se preciso, sem se esconderem covardemente sob a sombra de um líder de qualquer espécie; que se tornem independentes não porque pagarão suas contas, mas porque pensam (desde cedo) com a própria cabeça a partir de conhecimentos sólidos e experiências de vida ricas. Desajustados que experimentam, que vivem seus afetos sem preconceitos e com liberdade responsável. Desajustados que questionem tudo e todos, sem se apegarem desesperadamente a qualquer verdade pretensamente unificante e salvadora; que enfrentem com respeito as autoridades, os costumes, a moral e os costumes (em especial os bons), que respeitem as diferenças - mas sejam intolerantes diante do intolerável, a tortura, o racismo, o preconceito, o xenofobia, a misoginia, a miséria, a fome, o desrespeito aos direitos humanos. Desajustados que façam do Brasil um lugar onde ajustados com, ajustados como Bolsonaro, Mourão e seu séquito fascista sejam apenas fragmentos de um pesadelo que não se concretizou. Desajustados que façam o mundo todo caminhar para um lugar melhor - para si e para todos. 

14 de outubro de 2018


terça-feira, 9 de outubro de 2018

Um nove de outubro sob nuvens fascistas

Sigur Rós me deixa um pouco à flor da pele. Um pouco mais, na verdade, porque à flor da pele já ando com a situação do país - eu e tantos amigos meus. O ódio, a burrice, a cegueira e a desumanização  do outro encarnado num candidato militar mal treinado e de raciocínio precário. Sua derrota dia 28 será apenas barrar o desastre total, dar força para uma possível resistência. A mobilização permanente deverá ser a tônica dos próximos tempos, sob o risco de cairmos no totalitarismo neofascista-neoliberal. Uma das nossas missões para tão logo encerre as eleições: fazer as pessoas serem capazes de enxergar. Enxergar o outro como um próximo, um igual, o outro como um ser humano - talvez, antes, ser capaz de fazer a pessoa enxergar a si própria como um ser humano, e não qualquer fantasia rota de super-homem (no sentido nietzschiano) que usa para encobrir sua mediocridade, seu ressentimento, sua frustração em não ser o que o espetáculo diz que deveria ser e ela finge encarnar.
São duas da tarde, já conversei pelo facebook, já mandei um calaboca pelo facebook, já expliquei que política é algo mais complexo que voto na urna, já li muita coisa, compartilhei, escrevi. Agora me dedico a preparar o boletim mensal do Serviço Pastoral dos Migrantes, parte de meu trabalho voluntário de quase quatro anos. São notícias de coisas pequenas, de banalidades das quais a vida é feita: uma reunião aqui, uma missa acolá, um encontro, uma mística com alguns migrantes e imigrantes, um apoio, uma acolhida, um protesto. No meu tempo de faculdade, diria que esse tipo de ação não era para mim, que isso beirava a insignificância, na minha fantasia de que eu deveria me dedicar a uma grande ação - pensamento infantil quebrado pela ação do tempo bem aproveitado, transformado em experiência e maturidade. Muitos dos meus amigos de antanho me olham estranho quando falo do meu trabalho na igreja, e eu sei porquê, e logo explico: sigo ateu, tanto quanto sempre fui, talvez até mais, mas se for buscar uma ação social que eu concorde 100%, me restaria agir sozinho ou em algum grupelho minúsculo, em ações estéreis - mas que poderiam me fazer convencer as paredes do quarto e dormir tranquilo. Prefiro conviver com a diferença, abrir mão de crenças secundárias da minha parte em nome de uma ação um pouco mais efetiva. Uma ação que vise um mundo mais justo e humano - sigo um "humanista ingênuo", como me acusavam na faculdade, definitivamente eu não soube me tornar um adulto responsável e por isso sigo em lutas "idealistas".
Uma dessas notícias que subo para o boletim é do recebimento, por parte de imigrantes que fazem curso de português em Manaus, de um kit com apostila, caderno, lápis, borracha, caneta. Há duas fotos que acompanham a brevíssima descrição. Nelas, 25 pessoas, a maioria negra, mostram suas pastas coloridas - pastas simples, dessas compradas em qualquer papelaria, sem qualquer personalização -, muitas sorriem para a foto, fazem sinal de positivo, algumas se escondem atrás dessas mesmas pastas. Estão ali, orgulhosas de uma caneta, um lápis, uma borracha, um caderno e uma apostila de português. Uma caneta simples, um lápis simples, uma borracha simples, um caderno simples e uma apostila de comunicação e expressão em português e cultura brasileira. Não é um diploma universitário, não é o carro do ano, não é um jantar em algum restaurante de chef que eles ostentam para a câmera. É um kit de cinco reais e aulas que não dão certificado. É quase nada. E mesmo sendo quase nada, para essas 25 pessoas vale muito, vale um fio de esperança com a qual pretendem tecer uma nova vida, por isso mostram suas pastas e seus sorrisos. E por um instante tentam esquecer das agruras que passaram para chegar nesse quase nada que é tanto, é motivo de orgulho, e das dificuldades homéricas que certamente ainda terão pela frente, até terem uma vida digna, uma vida humana - uma vida que não seja sobrevivência.
Olho para a rua chuvosa, nesta terra que pariu o neofascista Dallagnol, falso profeta de deus. Meus vizinhos babam ódio, fazem promessas falsas para um deus que abominam, idolatram a morte, invejam o amor e a vida, mesmo a miserável - que ainda assim é pulsante. Trocaram sua humanidade pelo carro do ano (e agora nutrem a ilusão de que uma arma poderá substituir seu genital murcho ou seco), e precisam aniquilar os "inferiores" porque estes jogam na sua cara, com sua simples existência, que o pacto com Mefistófeles era facultativo - e o que ganharam nem de perto equivale ao que pagaram. Por isso acham muito cem reais no Bolsa Família, acham absurdo dar comida a quem tem fome, livros para quem quer aprender, oportunidade para quem quer se dedicar. Meus vizinhos são infelizes, são pobres coitados com as prestações em dia, uma vida que nunca foi de verdade e dificilmente chegará a ser, perdida em obrigações que a máscara de um "cidadão de bem" coage. Votam no Bolsonaro e fingem não perceber que estão na fila para o campo de extermínio tanto quanto os que odeiam.

09 de outubro de 2018


segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Lost in Translation na Liberdade

Não sei por qual diabos, acordei com música dos Mamonas Assassinas na cabeça. Costumo brincar que tenho um DJ Interno que só toca podreira dos anos 80 e 90 - às vezes cantarolo para Natália a música que o DJ colocou e ela pergunta de onde foi que desenterrei aquilo, como se eu soubesse. Ela já até me fez assistir à animação Divertidamente para poder fazer piada com o tal DJ. Talvez Mamonas tenha sido vingança antecipada do DJ Interno por saber que o domingo prometia ser bom musicalmente - à noite iria à apresentação d'O Corpo (trilhas de Uakti e Metá Metá), e de dia, a um evento de Minyô, música folclórica japonesa, no qual cantariam Natália e Vinícius (além de outras 77 pessoas, as quais não vi todas, tendo perdido a parte principal, a do concurso que valia uma viagem para o Japão).
Ao chegar na Associação Kyôdo Minyô do Brasil, na Liberdade, me veio Legião Urbana à cabeça (por conta minha, não do DJ): “festa estranha com gente esquisita”, ainda que o destoante ali fosse eu, e sequer tenha sido a festa mais estranha que já fui na Liberdade - nada comparado a uma outra associação cultural japonesa, decorada para natal, onde serviam feijoada vegana em um evento indiano. Enfim. Num salão, o palco ao fundo tem uma discreta apresentadora à esquerda. Discreta quanto ao visual e ao local onde está, porque ela fala mais que apresentador de talk show empolgado com um assunto que gosta. Como só falava em japonês, não sei se o que ela falava era importante ser dito, ou seguia o padrão dos programas televisivos - só sei que falava e falava e falava. Num dos lados do salão, atrás de uma longa mesa, pessoas sisudas vestidas de terno com uma grande flor de origami na lapela, flores que me fizeram lembrar dos gibis da turma da Mônica, as medalhas de concursos nas histórias - desconfiei que eram os jurados da hora do concurso que perdi. As únicas coisas que eu realmente compreendia naquele salão eram a data, escrita em português, as bandeiras do Brasil e a do Brasil comunista que o PT queria impôr - conhecida no resto do mundo como bandeira do Japão. Nem mesmo o pavão ou fênix com cara de peru brincando um novelo de lã (símbolo do evento) me foram de clara compreensão. No início eu até tentei pescar algumas palavras, e achava que estava conseguindo: né, arigatô, uataxi, namastê - e sabendo que namastê é palavra indiana, passei a ter sérias dúvidas se eu entendera qualquer uma, além de Natária, quando chamaram Natália para o palco. Me senti Bill Murray no filme de Sofia Copolla, Encontros e desencontros ("tradução" medonha para Lost in Translation, só não pior que o nome dado em Portugal, O amor é um lugar estranho). As pessoas se levantaram e ficaram em silêncio, eu também; aplaudiam, eu também - inclusive os aplausos eram nos momentos mais aleatórios possíveis para minha compreensão ocidental. Como fiquei apenas na parte que não era concurso, foi interessante ver as reações do público, muito participativo e tolerante com falhas. Na primeira fila, duas senhoras marcavam com palmas o ritmo das músicas, para que nenhum dos amadores ali se perdessem. Alguns dos cantores esqueciam da letra - inclusive um que não parecia tão amador assim -, e a plateia cantava para ajudar. Outras horas acho que cantava junto só para cantar, mas pode ser que fosse outro lapso da letra ou do tom, não sei, estava bacana a festa, e estava boa a música. Na hora do almoço, quase todo mundo com seu isopor com o bentô - parecia recreio de escola infantil, cada criança com sua lancheira, com a diferença que eram um pouco mais velhos e não ficavam vendo e trocando o que cada um tinha, já que todos tinham o mesmo bentô (deixei para almoçar depois, já que Natália estava proibida de comer, pois iria cantar logo após o almoço). Enquanto almoçavam, homenagens a mais pessoas enternadas - uma tática esperta, deu pra cumprir essa formalidade sem incomodar a parte legal do evento. Após o almoço, os dois pontos principais a que vi: uma apresentação de taikô, a batucada japonesa, com um senhor que parecia o Henrique Meirelles cheio de vitalidade ao fundo (inclusive me fez pensar que uma cultura que não produz uma boa batucada deve ser olhada com certa suspeição); e uma senhora muito velha, de bengala e grandes óculos, cantando e dançando feito Liam Gallagher, ex-Oasis. 
E como quando assisti ao filme da Sofia Copolla, ao fim de duas horas pude sair de lá e tudo estava normal, pessoas falando português, a vida que segue, e o horário meio em cima para comer e ir assistir ao Corpo. Entretanto, por garantia, fomos a um restaurante onde todos os garçons falavam português. 

06 de agosto de 2018

PS: Aceito convite para algum evento de música folclórica e comidas gostosas da comunidade árabe (ainda que saiba que a imigração Argelina não é significativa para cá e não poderei desfrutar de música chaabi).

quinta-feira, 19 de julho de 2018

Entre fantasmas e ratos

Ainda que não tivesse horário marcado, sequer compromisso, saio atrasado de casa, vou em passos rápidos para o metrô. Quase chegando na estação cruzo com um homem que me lembra o Valdeni. A viagem é curta, duas estações, mas anda arrastada em meio à lembrança da angústia que me tomou ao saber da notícia, quantos dias passei fugindo dessa imagem, querendo pensar em outra coisa mas não conseguia parar de imaginar ele se atirando na frente do trem, de mochila, camisa vermelha (do Brizola?) e chinelo rider (hoje ele estaria na moda)? Vai, vai se gauche na vida - num mundo onde quem é diferente sofre bullying. Foi em 2004, janeiro. Não sei quanto tempo depois, Paulo comentou que o que o surpreendia não era uma pessoa se jogar na frente trem, era só uma fazê-lo. Deveras. Mais surpreso ainda quando Misson me informou que se suicidava uma pessoa cada duas semanas no metrô - eu imaginava a cada dois dias. Pior ter que ouvir de uma paquera que Valdeni era fraco, por não suportar calado a humilhação desde longa data sofrida - fácil ser dito por uma evangélica que se escora num narcisismo coletivo tosco. Desço do trem e antes de sair da estação passa por mim um homem que lembra outro amigo, Rodrigo. Não quis saber como foi e tenho dificuldade para lembrar o ano em que se matou. 2012? Não, 2012 acho que foi o Márcio se atirando de um prédio. 2013? 2014? Entro no restaurante para almoçar, o mesmo onde escrevi minha última crônica paulistana de 2012. Faz calor e o clima é seco, naquele dia de dezembro talvez fizesse calor, mas a chuva amainava o desconforto. Eu estava com um quê de melancólico então, apesar da vida nova que São Paulo representava. Valdeni não estava mais, meu avô havia partido há dois meses. Mas ainda estava Rodrigo - não sei se em 2012 ou 2013 havia trocado vários e-mails com ele, que tinha tentado suicídio pela primeira vez; "só quer chamar a atenção", acusou um amigo em comum -, estava meu pai, estava Misson. Havia um quê infantil de descobrir o mundo - São Paulo foi um mundo novo - com olhos ávidos e brilhantes de tantas novidades, havia um quê adolescente de achar o futuro ainda prenhe de todos os caminhos - e eu bem tentei, sempre acertando a trave, iluminação, dança, aula no ensino médio, doutorado, marcenaria. Talvez essa melancolia me pegasse aquela época, não sei, por ter levado tanto tempo, depois de ter deixado a cada de meus pais, para achar uma cidade onde finalmente me sentia em casa; pelos amores que aquele ano me deu, mas logo tirou - a morte então tinha antes um sentido figurado e era positivo, abria espaço para o novo. Agora a melancolia que me abate é desse futuro que se estreitou, nas amizades perdidas - não para o tempo, mas para a morte, sem qualquer conotação figurada. Ao menos quesito amor, nunca estive tão bem, com uma pessoa como a que agora compartilho meus momentos. Pela manhã havia recebido uma mensagem de uma  mulher que estava lendo meu livro sobre a perda da Misson. As mortes morridas doem mais que as "matadas", mas um amigo ou conhecido se suicidando por ano, com a regularidade de Cronos, também dói. A crônica daquele restaurante, em 2012, eu escrevi, houve uma outra, anotei os pontos de minha caminhada por São Paulo em um papel, mas nunca a transformei em texto. Era também melancólica, e eu temia o "arcaísmo tecnicamente equipado" que vira no Viaduto do Chá, onde jogadoras de búzios em seus banquinhos, mesas e conchas eram soterradas pelos alto-falantes de pregadores evangélicos anunciando o inferno a todos que não fossem como ele - alguns pastores e políticos anunciavam a morte breve para quem eles não gostavam (ou gostavam demais?). Saio do restaurante, receoso de passar por algum outro fantasma. Meu destino é próximo à antiga rua dos Turcos, a 25 de março. A rua Florêncio de Abreu sempre me traz certo deslumbre, fico tentando imaginar o que não era ali no início do século passado, casas chiques no caminho entre a estação da Luz e o centro da cidade. Algumas casas estão bem conservadas, outras, abandonadas, à espera do tempo derrubá-las para poder entregar o terreno à especulação imobiliária - como não é um lugar da modinha, como a Paulista, não há nenhuma comoção com esse desdém histórico. Defronte a uma dessas casas moribundas está sentado um morador de rua, ao lado dele há uma gaiola. De longe não consigo identificar que bichos traz preso, parecem duas ou três pombas rolas - e me questiono onde teria conseguido, não me lembro de ver desses pássaros em São Paulo. Pouco antes de passar por ele, mexe na gaiola, para melhor ajeitar a comida, três ratos ocres se movimentam no exíguo espaço. Sinto um aperto no estômago - no tal do plexo solar. Uma nuvem negra se põe sobre mim. Certamente muitos veriam ali quatro ratos. Eu vejo uma sociedade doente. Um homem em companhia de três ratos. Três ratos fazendo companhia a uma pessoa, que ajeita com cuidado a comida deles. Será que se sente irmanado dos ratos? Conversa com eles quando tem alguma ideia ou vê algo que precisa compartilhar com alguém? Quanto de afeto dedica àqueles bichos - e imagina ser a recíproca verdadeira -, afeto negado por outras pessoas? Talvez tenha sido uma escolha deliberada daquele homem e ele seja feliz - e eu não consigo captar isso da minha visão de mundo classe média-pequeno burguesa. Talvez seja uma cena banal, e eu faço um dramalhão onde há apenas mais do mesmo, a cidade e aquilo que não queríamos que existisse e por isso viramos o rosto. O que sei é que, em meio a recordações dolorosas e melancólicas, o homem e seus três ratos rasgam feito navalha meu estômago, eu me equilibro para parecer uma pessoa normal enquanto caminho na cidade, até chegar em casa e tentar desabafar de alguma forma - a forma de um texto.

19 de julho de 2018

PS: A PM passa correndo e cantando enquanto escrevo esta crônica. "Subi o morro e tomei um tiro/ mas quem morreu foi o bandido". Um homem alimentando seus ratos tem mais dignidade.