Ao abrir a porta do apartamento, às sete horas de uma noite chuvosa, me sinto subitamente envelhecido. Um apartamento vazio com alguns pequenos consertos para fazer, as paredes por pintar, apagar as marcas do tempo que sublinhavam os quadros até ontem pendurados. Pela janela da sala há o escuro das árvores - sentirei falta de ver o skyline da Paulista. "Long dark blue". Lembro de Farewell Transmission, de Songs: Ohia. É este, digo ao Vini. E a mim mesmo me pergunto o que pensará o desconhecido que cruzar essa soleira depois de amanhã, para a pesquisa do IBGE ou das memórias do que era o mundo três gerações atrás, na virada do século XXI. Um velho melancólico em meio a livros, três móveis e dois gatos. Talvez eu devesse encher a casa de cacarecos, como a disfarçar a condição que nos habita? Vini inspeciona os cômodos, me avisa da fiação estranha dentro do armário, acha feio o guarda-roupa deixado para trás. Sinto que ali estou guarnecido como alguém que abre um guarda chuva para se proteger de um tempestade de granizo. "Foi tão fácil conseguir e então eu me pergunto e daí?" Estranho quem me parabeniza por ter herança, ainda mais por gastá-la assim, confrontado pelo princípio de realidade que não me permite sequer cogitar um apartamento classe média dos anos 1990 - janelas incrustadas no concreto cheio de quinas, o vidro escuro nas sacadas, as pastilhas na fachada, um peso que não descarta esperança. Com a idade do Vini eu ouvia vinil do Raul Seixas no rádio National de meu pai, usando uma raquete de tênis como guitarra e o esfregão como microfone. Isso foi ontem pela manhã, enquanto Cecília fazia o almoço. Agora preciso me preocupar em pintar as paredes sem manchar o chão, orçamentos e prazos - e viagem para a Venezuela, a trabalho, no meio disso tudo. Tenho um mês para me acomodar e começar a me irmanar do apartamento, sem mais a sensação de provisório que até então me acompanhava cada mudança - eu próprio me sentindo alguém em plena mudança (me sentindo provisório?). Ou seja, posso fazer isso com calma, sem o receio do efêmero - me iludo. E agora? "Stop/ A vida parou/ ou foi o automóvel?". A rua é temporariamente sem saída - até que o prédio vizinho conserte ou caia de vez. Nas manhãs, haverá sabiás e outros pássaros cantando, e o grito das crianças no recreio da escola - como na minha infância, a escola Dona Frida. Me vejo em reminiscências, confirmo meu envelhecimento repentino; leite derramado: não mais um jovem de quase quarenta anos, mas um idoso de quase quarenta anos - que não transmitiu a nenhuma criatura o legado de nossa miséria, não nos termos bíblicos, como a reafirmar a descrença na vida eterna e a adesão ao catastrofismo ecológico, mesmo sem tanta convicção (insisto em ter esperança e achar que melhoraremos, que o mundo de amanhã será melhor que o de hoje). "Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?". Dei o primeiro passo: tributável. Do resto ainda me esquivo. Do contrário disso também. Busco um fio de cabelo branco, para confirmar minha nova condição. Encontro, como sempre, uma espinha a brotar, que espremo com o prazer despreocupado das admoestações da mãe, de que vou ficar com a cara cheia de marcas, quando adulto - já sou adulto e ainda me faltam as marcas. Faço algumas medições, para as redes nas janelas, para os móveis que farei - uma estante de livro, uma escrivaninha, algo mais? A chuva que goteja fora me lembra de quando mudei para São Paulo, 30 de janeiro de 2012, havia um quê melancólico na garoa daquela noite - e uma nova vida iniciando. Deixamos o apartamento, Vini feliz por conhecer minha nova casa primeiro - finalmente algo que ele fez antes da mãe! Há tanto por fazer, uma porção de coisas grandes para conquistar, mesmo a um velho melancólico, um grandessíssimo idiota, ridículo, limitado, que insiste em palpitar sobre mil assuntos, só para dizer que não entende de nada, e assim prefere a ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Ao fechar a porta, em minha mente toca Mogwai, Yes! I am a long way from home.
05 de setembro de 2019
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