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domingo, 20 de setembro de 2015

O centro de São Paulo não é violento

Em abril deste ano, fomos eu e uma estrangeira que também estagiava no Teatro da Vertigem comer algo depois do estágio. Dado momento conversamos sobre a violência no Brasil, em especial São Paulo. Eu discordava e tentava desmontar a afirmação senso-comum de que o centro de São Paulo é violento e perigoso, ainda mais à noite. Que não seja tranqüilo, ok, mas não é para tanto. Fui elencando meus argumentos, ela ajudou com exemplo vivenciado no dia anterior quando, na Vila Mariana, ao quase ser atropelada ao atravessar a rua ("eu estava na faixa e ele estava virando a esquina", ela argumentava, desconhecedora que diante de uma vaca sagrada só outra vaca sagrada tem poder, nunca o pedestre), seu amigo batera no carro para que ele parasse e acabou apanhando do motorista, que tão valente quanto desceu do carro fugiu a seguir. Ao fim da minha argumentação, me dei conta, estarrecido, do quanto eu tinha razão sobre o fato do centro de São Paulo não ser muito violento, mas para ter essa razão o quanto não naturalizei toda sorte de violências quotidianas - que me chocam e me indignam, mas passam, como as chuvas de verão e as secas de inverno. Diante da violência geral, de cima a baixo na sociedade, a violência do pobre contra o rico ("passa o dinheiro") é só mais uma - e das mais leves: das entradas de serviço à proibição de certas classes de pessoas em locais públicos, da ofensa de classe, cor, orientação sexual, gênero ("pobre favelado", "preto", "viado", "homem de peruca"), à invisibilidade de toda uma classe de sub-pessoas (as "pessoas marrons" tratadas pela Eliane Brum [http://j.mp/1hbvAXT], serviçais da segurança, da faxina, do dia-a-dia que acontece sem que a classe-média ilustrada precise pensar nisso), quando não à aniquilação física ou emocional dos mais fracos (pobres, pretos, periféricos, mulheres, desviantes). Lembrei desse diálogo - que desde então queria transformar em reflexão, e não foi desta vez - por conta de um trecho do livro 1Q84, do japonês Haruki Murakami, que dá um pouco a medida do descaminho da violência destes tristes trópicos:
"- Acho que temos muita coisa em comum, não acha?
- Acho que sim - concordou Aomame. 'Mas você é uma policial e eu mato pessoas. Estamos em lados opostos da lei e isso certamente nos torna muito diferente', pensou". (1Q84, p. 201)
Uma policial e uma assassina: em "lados opostos da lei" porque uma mata pessoas e a outra, não. Pelas nossas leis, esse diálogo poderia ocorrer no Brasil, mas é sabido que soaria totalmente irreal. Sob aplausos de uma classe-média que não pensa e pedidos de "quero mais" e "tem que matar" de apresentadores de tevê tão criminosos quanto os pretensos criminosos assassinados por criminosos fardados de policiais, que agem com o beneplácito do governador Alckmin - PMs que assassinam até com mais frieza que os  pretensos "bandidos".
Deveras: se formos tratar violência como algo extraordinário que irrompe em dado local contra determinadas pessoas, São Paulo não é violenta. Mas se formos tratar por "violência" toda forma de violência, não a encontramos só no centro "degradado", na Cracolândia: São Paulo - a exemplo do Brasil - é violenta nas periferias, nos bairros nobres, nas ruas, nos edifícios privados e nos prédios públicos. É violenta na avenida Paulista tanto quanto na avenida Duque de Caxias. Cidade Tirandentes, Jardim Ângela, Jardim Europa, Pinheiros (e seu fetiche classe-média, Vila Madalena): impossível caminhar dez metros sem se deparar com uma violência - qualquer que seja. Quem enxerga só um lado da violência é porque compactua com o outro. Infelizmente, a maioria parece enxergar só um dos lados.

20 de setembro de 2015.

Favelas são uma violência - tolerada e naturalizada. As favelas auto-inflamáveis durante a gestão Kassab, então. Mas não é isso que torna São Paulo violenta para uma parcela da população.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Menos Odílio, mais Francisco, por favor [ou, praça da Sé, 28 de julho de 2015, 16h]

Enquanto o Papa Francisco anima progressistas dos mais variados matizes - incluídos os ateus - com o direcionamento que tenta dar à igreja católica, mais próxima ao povo e sensível às questões sociais, a igreja católica do Brasil - ou ao menos a de São Paulo - caminha na direção diametralmente oposta. Ainda fico a me questionar se os rumos ditados por dom Odílio Scherer são mera questão de vingança de um ressentido, afinal, ele foi preterido por um argentino (e, diria Nietzsche, nada mais cristão que ressentimento e vingança), ou se ele possui uma convicção verdadeira (fé?) no fascismo e nos ideais da Casa Grande.
Começo com um exemplo requentado. Não sei o quanto saiu do círculo dos filhos da PUC (como este que aqui escreve) ou do restrito círculo universitário, a polêmica em torno do veto à Cátedra Michel Foucault, na PUC de São Paulo, feita pelo arcebispo de São Paulo, Dom Odilio Scherer. Com o veto, a universidade - na qual estão dois dos principais especialistas do Brasil nesse seminal filósofo do século XX, Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail - pode ter que devolver os áudios com as palestras do francês, recebidas do Collège de France. O argumento: as idéias de Foucault não estão em consonância com os princípios católicos. Argumento bastante razoável, pensando na igreja da Idade Média. Inclusive, Foucault merecia ter ido para a santa fogueira por pelos menos dois bons motivos: pensar e ser homossexual. Como Foucault mortuus est, ainda se pode jogar seus livros na fogueira - ou ao menos seus heréticos áudios.
Admito, isso de início me deixou perplexo: teria a igreja católica brasileira complexo de ser sempre do contra? Quando no Vaticano estavam reacionários, a PUC-SP abrigava comunistas e ateus; agora que na basílica de São Pedro está um progressista que prega, dentre outras coisas, o diálogo com as outras religiões, a PUC-SP tenta excluir tudo o que soe minimamente desviante dos "princípios católicos" - o pensamento de Foucault ou os professores Peter Pál Pelbart, Jonnefer Barbosa e Yolanda Gloria Gamboa Muñoz [http://j.mp/1D6KSI4]. E onde fica a infabilidade papal para Odílio Scherer? Valeu de Pacelli a Ratzinger, mas não vale para Bergoglio?
Tive nova mostra da cara da igreja católica de dom Odílio na tarde deste 28 de julho.
Eu caminhava pela Sé quando avistei dois policiais militares levando um homem pelo braço. A cena me chamou a atenção pela estranheza da atitude dos militares: agiam com firmeza, mas não com a truculência que, via de regra, dispensam à (chamada) escória social. Pensei que talvez o homem tivesse sido apartado de uma briga com outros moradores de rua que estavam ali perto, mas o homem estava muito calmo para alguém que brigava, e o resto da escória social também - definitivamente, não houvera briga. Ele tentava argumentar com os militares, que apenas ordenavam que caminhasse um pouco mais. Não poderia ser algo relacionado ao metrô, pois para isso há a segurança da empresa. Passando mal? Se era intenção ajudá-lo (mas por que a polícia militar ajudaria um pobre, que não produz nem paga imposto?), por que o levavam com aquela firmeza e tantos passos?
Ao passar ao lado da catedral da Sé, minha dúvida é, ao menos parcialmente, sanada. Comenta o segurança da igreja com um grupo de pessoas, como se estivesse no púlpito, diante da cena que ainda se desenrola ao longe: "olha, olha o que eles vão fazer: levam até lá e soltam. Fazer só isso não adianta nada, logo ele volta...". Provavelmente o homem estava pedindo dinheiro ou havia entrado na casa de Cristo (que heresia!). Fiquei a me indagar o que o segurança da catedral da Sé queria que os policiais fizessem: prendessem-no por ser negro e pobre (e quer motivo maior que esses dois?)? Dessem uma "geral" das antigas, pra ver se ele aprende a não importunar os cidadãos de bem? Ou simplesmente "apagassem" o cidadão, que nada tem a contribuir com a sociedade (afinal, é sabido há longo tempo que o Brasil é esse país de segunda categoria por causa dos negros e nordestinos, incompententes para a vida civilizada, como atestam as recentes investigações sobre a corrupção)?
Bem, essa cena que presenciei talvez prove que, contrariamente ao que disse acima, dom Odílio Scherer siga os passos do papa Francisco: atento à questão social, não hesita em chamar a polícia militar para tratar dela, como sempre aconteceu nestes tristes trópicos; e quanto à proximidade do povo, apenas uma questão de definir povo: se for patriarcal, conservador, branco, heterossexual e com uma conta digna de entrar no ramo VIP dos bancos, a igreja católica e o reino dos céus está de braços abertos ao povo. Por fim, tolerância de pensamento é algo que Dom Odílio Scherer também deve visar: os que ele considera povo têm total liberdade de se expressarem, mesmo que isso possa parecer contraditório aos "princípios católicos" - como ser favorável à pena de morte e à violência contra minorias por serem minorias, por exemplo.
Talvez o papa Francisco seja um ponto fora da curva da história católica - e ainda não conseguiram enviá-lo para se retratar diretamente com deus. Mas nele eu tenho esperança - quase ouso dizer fé. Para o Brasil: menos Odílio, mais Francisco, por favor.


28 de julho de 2015.


Não basta emporcalharem a praça, querem ainda entrar na igreja?

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Cinco seguranças do Metrô de São Paulo

Pouco depois da esquina da Albuquerque Lins com a praça Marechal Deodoro, cinco seguranças do Metrô cercam um homem. Um deles o segura pela blusa, como se fosse para deixá-lo pendurado; parece um gesto de desenho animado, mas não tem graça nenhuma - não para mim. Pessoas assistem à cena - bem próximo, um homem grava com o celular. Penso que a câmera evitará excessos de excessos - porque há claramente um excesso na abordagem, que não é assim encarado por eles, conforme a tranqüilidade que deixam transparecer. É pouco depois das dez e meia da noite. Estranho a abordagem na rua. Vejo tênis celular cigarro e outras pequenas coisas no chão - imagino ser um pequeno delinqüente. Mais próximo, reparo que há apenas um par de tênis e o homem está descalço, apenas um celular, uma carteira de cigarro - são seu objetos pessoais. Ele segue esvaziando sua mochila, um segurança segurando, os outros ao redor. Ao passar por eles, ouço um dos cinco dizer: "se você tem bilhete, então tem que estar em algum lugar". "Eu tenho, deixa eu achar", gagueja o homem. Tenho vontade de intervir e perguntar o que está acontecendo para aquela cena deplorável. Desisto: não sei quais meus direitos de cidadão (a plena publicidade de direitos e deveres como condição necessária para a democracia ainda é piada de mau gosto nestes Tristes Trópicos), não sei quem são os seguranças e não tenho mais meu contato quente dentro da companhia, que poderia descobrir quem eram eles na manhã do dia seguinte. Em compensação, sei de seguranças que cospem em moradores de rua, de segurança que agride colega no vestiário com o profundo argumento do agredido ser um "esquerdinha de merda", de segurança que lamenta não poder descer borrachada indiscriminadamente, como antigamente - até por medo de perder o emprego ao ser pego por uma câmera de segurança -, e agora se restringe a rezar para que algum careca dê uma lição nos homossexuais que se beijam no Metrô. Sim, sei que não são todos assim, espero que sejam uma minoria - mas os cinco que vejo me fazem lembrar desses exemplos nefastos (até dois mil e treze eu tinha histórias quase que diariamente dos meandros do Metrô - chefes, funcionários, seguranças, usuários). Os cinco seguranças do Metrô de São Paulo que humilham o homem na Lins de Albuquerque aparentam ter a minha idade, se tanto. Seriam meus colegas, se tudo tivesse corrido bem em agosto de dois mil e treze - talvez um deles tenha entrado justo na vaga aberta pela minha desistência. São cinco adultos jovens - minha geração -, brancos - talvez, como eu e muitos dos meus amigos branquelos, nunca tenham tomado uma geral da polícia militar por estar andando na rua à noite -, são meros seguranças de Metrô - não são policiais militares, não são seguranças particulares armados, como os que ficam nas redondezas Praça Toronto; não são seguranças de igreja evangélica, de quem não se espera outra atitude (ainda que haja). Eles estão, se escutei a verdadeira razão da cena, humilhando uma pessoa porque ela passou a catraca sem pagar - como se um, dez ou mil passageiros a menos por dia fosse fazer qualquer diferença no orçamento da empresa, que arrecada majoritariamente com publicidade. Certo, é seu emprego, e podem achar que é o correto cumprir seu dever com total diligência: mas eu questiono sé é preciso mesmo esse pretenso rigor - tolerância zero - contra alguém que não pagou o passe, enquanto nos subterrâneos eletrificados da cidade há homens que abusam de mulheres, pessoas que cometem pequenos furtos (um passe não faz diferença ao Metrô de São Paulo, mas cinqüenta reais podem ser a quebra do orçamento do mês de um trabalhador precarizado), assaltos a mão armada (um padre foi baleado na linha azul na semana da parada gay), grupos intolerantes que agridem pessoas por serem diferentes (já que os seguranças não podem mais)? "Pretenso rigor" porque ali não há rigor, porque rigor significa intransigência, e os cinco seguranças do Metrô de São Paulo transigem, transgridem todas as suas atribuições ao humilhar uma pessoa, dez e meia da noite, na rua - seria medo das câmeras de segurança? E ao humilharem uma pessoa, pouco importa o motivo: do quase nada que sei dos meus direitos, sei que o artigo 1º inciso III da Constituição Federal de 1988 garante "a dignidade da pessoa humana", sem condicionantes. Em tempo, não sei se era preciso comentar: o humilhado tinha dois antecedentes criminais: era preto e pobre.


18 de junho de 2015

Não custa lembrar que o exemplo e a legitimidade vêm de cima.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

A transexual crucificada, os arautos do ódio e a disputa pela palavra cristã

Viviany Beleboni cutucou com vara curta os arautos do ódio - Viviany é a transexual que apareceu crucificada na décima nona parada GLBTS de São Paulo, no domingo, dia sete. A reação foi a esperada: “São pessoas que não tem respeito a ninguém; são pessoas que são preconceituosas, sim; são pessoas que são intolerantes, sim (...). Estou indignado aqui com o que aconteceu na Parada Gay de São Paulo. Estou indignado por terem pegado os símbolos da minha fé, que é a fé cristã, e exposto publicamente num ato de completa falta de respeito. Estou falando aqui de pessoas que acham que seu direito é maior do que o meu direito”, disse, em vídeo na internet, o pastor e deputado Marco Feliciano. Ele ainda pede a união dos arautos do ódio travestidos de pastores cristãos, sugere o boicote às empresas que patrocinam a Parada Gay - assim como um colega seu já havia pregado o boicote às marcas que tentam se associar a atos de amor e afeto entre pessoas -, e afirma que há um movimento de "cristofobia", e que deve ser combatido.
Os arautos do ódio não podem estar mais errados: o ato de Viviany foi de extremo reconhecimento de Cristo. Ninguém se põe em uma situação semelhante à de Cristo, humilhado na cruz, se não reconhece o poder dessa imagem, se não assume a profundidade da mensagem, se não compartilha dos princípios. Mesmo que não seja cristã - e tenho séria desconfiança de que seja -, Viviany assumiu que o cristianismo é importante, tem uma mensagem que não está sendo ouvida - muito menos seguida. Não há ali deboche nem provocação com os símbolos cristãos, Viviany encarna a si própria, e sua crucificação representa (e acusa) a violência que ela e as outras travestis e transexuais sofrem diariamente - muitas delas cristãs, tal qual Marco Feliciano se diz. Se Feliciano acha realmente um desrespeito o ato de Viviany, pode devolver na mesma moeda: se fantasiar de transex para desfilar na próxima Marcha pra Jesus. Por que ele não vai fazer isso? Porque seria reconhecer a importância dessa questão, desse discurso - e o que ele quer é a sua supressão total.
O que realmente perturba os arautos do ódio é que o grito-feito-imagem de Viviany desafia a palavra deles. Uma transexual crucificada é a afirmação de que a palavra de Cristo não se restringe ao que é dito por Malafaias, Felicianos, Hernandez (se é que Cristo em algum canto disse o que eles pregam): é um grito de intolerância e de despeito a toda palavra dogmática, a todos os que se pretendem donos da verdade. Um grito de não me calo diante de quem manda calar, de não baixo a cabeça diante de quem não me respeita, de não reconheço nesse seu Cristo o Cristo que é amor e morreu na cruz pela humanidade. Um grito de revolta contra as injustiças, como o de Cristo, na sua época, contra os romanos.
Nada mais ultrajante a um pastor que uma transexual - que ele recusaria como sujeito com direito à existência, se pudesse - dizer que a palavra dela tem tanto valor quanto a dele, que o direito dela é igual ao direito dele. Sim, Viviany-feita-à-imagem-e-semelhança-de-Cristo (como todos, conforme o princípio cristão) contesta a pretensa superioridade - civil, moral, intelectual, espiritual - que Feliciano e sua trupe se adjudicam, e essa igualdade soa como um desrespeito aos seus privilégios por serem brancos, cristãos, heterossexuais (sic).
Porém, melhor que um ateu falar é dar a palavra a um cristão que não pode ser posto em dúvida quanto à sua fé: “Na missão pastoral tenho conversado com vários LGBTs que estão pelas ruas da cidade, alguns doentes, feridos, abandonados. Muitos relatam histórias de violência, abusos, assédio, torturas e crueldades. Alguns contam como foram expulsos de igrejas e comunidades cristãs, rejeitados pelas famílias em nome da moral. Testemunhei lágrimas, feridas, sangue, fome. Impossível não reconhecer neles a presença do Senhor Crucificado” - eis o comentário do padre Julio Lancellotti sobre a polêmica da crucificação na Parada Gay.
O Cristo de Julio Lancellotti e Viviany Beleboni me representa!

12 de junho de 2015.
Verônica Bolina, outra vítima da intolerância dos cristofóbicos?
ps: sobre a "cristofobia", concordo que existe e acho que deve, sim, ser combatida: já é mais que a hora da Igreja Universal mandar sua milícia paramilitar lutar contra o Estado Islâmico, que já matou vários cristãos pelo simples fato de serem cristãos. Que levem seus líderes juntos - afinal, um verdadeiro líder deve estar à frente do seu exército.

ps2: ainda sobre "cristofobia", achei outra colocação do padre Julio Lancellotti: "A meu ver, sujeito a erro, Cristofobia é medo de amar os irmãos e irmãs, amar os inimigos como pediu Jesus Cristo, defender os pequenos, proscritos e evitados, amar os o que ninguém quer. Jesus caminhou no meio dos pobres e pecadores, os defendeu e nunca os condenou. Em Mt 25,31-46 Jesus identifica-se com os que sofrem. Amá-LO é ser semelhante a ele, o resto é fobia!"

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Apenas outro momento da intifada brasileira.


Início da noite, me encaminho para a avenida São João, ao trecho que freqüento ao menos uma vez por semana, onde fica a Galeria Olido, um dos palcos da dança paulistana. Ficara sabendo do ataque militar - amparado pela justiça - aos trabalhadores sem teto no meio da tarde. Praticamente uma quadra antes da São João, na Ipiranga, carros dos bombeiros e da polícia ocupam a pista da esquerda. Alguns militares têm armas em punho, de guarda para abater algum maluco suicida que resolva atacar a tropa. Outros estão em rodas, como se fosse intervalo de trabalho, conversam, fumam e gargalham. A banalização do mal me vem à mente. Dou uma de joão sem braço e tento entrar na São João. "Está interditado, não está vendo?", fala um guarda, arma em punho. Obedeço e atravesso a rua. Havia visto imagens na tevê e fotos na internet. Justiça, reintegração de posse, ataque de objetos por parte dos sem-teto, revide da polícia militar - o roteiro é banal nestes tristes trópicos, tal como a cobertura da Grande Imprensa seguir a linha da polícia militar pacífica se defendendo de uma turba violenta. Era esse o discurso inicial sobre as manifestações do Passe Livre, ano passado - banderneiros, violentos, vagabundos. E onde estão aqueles milhares de homens-gado e mulheres-vaca a gritar "sem violência" e pedir mudanças? Ou o fato da PM não ter agredido aquela massa de chimpanzés mal-adestrados que gritavam "sem violência" é prova de que os sem-teto fizeram por merecer? Lembro dos manifestantes - "manifestantes" - vestidos com as cores do Brasil, tirando foto com os militares. Esse pessoal não veio para a São João, aqui estão só os chatos e os jornalistas. As imagens de mais essa intifada tupiniquim me dão mais que raiva, me dão vergonha: aqueles pobres-coitados fardados agem em meu nome. Não têm meu respaldo, mas têm o da maioria da população de São Paulo, que elege Maluf (estupra mas não mata), Alckmin (quem não reagiu está vivo), Aloysio (pela redução da minoridade penal, enquanto crimes de bilhões de reais são ocultados pelo seu partido), Serra (higienização social do centro de São Paulo) e tantos outros violadores dos direitos humanos, criminosos lesa-humanidade. Quando era ocupado por prédios abandonados, esperando valorização, e moradores abandonados à própria sorte pelo poder público, o centro era tido por um lugar sem vida, apesar da profusão de línguas, culturas, cores e sabores que o marcavam. Agora que pululam empreendimentos imobiliários e dinheiro floresce onde antes era quase um aterro social, as pessoas que nunca deixaram o centro morrer são tirados a bomba e balas de borracha para "revitalizar" com a vida de quem tem direito de viver. Na internet, fotos da depredação dos sem-teto: curiosamente, em mais de três anos que freqüento aquele local, à noite, com aquela e outras ocupações, nunca tive problema algum, nunca presenciei cenas de violência, que não a de seguranças privados e policiais militares. Dizem que a diplomacia é a guerra por outros meios, no Brasil, a justiça é a violência por seus próprios meios: que língua tão incompreensível falavam aquelas muitas famílias que não foi possível dialogar, negociar com elas? Por que a elas o único diálogo legítimo é o de obedecer as ordens dadas pela justiça, para favorecimento de um, em detrimento de muitos, em detrimento da cidade? Isso é diálogo? Resolver problemas na base da porrada é democrático? Os cinqüenta mil assassinatos por ano, as agressões gratuitas, por coisas pequenas, mesquinhas, insignificantes, a violência simbólica disseminada de alto a baixo da sociedade, tudo isso nos veio em mais uma epifania neste dia dezesseis de setembro, no centro de São Paulo. Vêm os carros do choque, já cumprida sua missão de garantir a propriedade. Reproduzo um gesto que os governantes do Estado mais rico da nação e seus eleitores fazem inconscientemente em suas salas de estar (e nas seções de votação): levanto o braço direito, em saudação nazista. Os carros passam, talvez por sequer entenderem o significado do meu gesto, talvez por não terem visto, talvez por estarem ocupados segurando suas armas, nenhum soldado me saúda de volta - assim como nenhum parece ter se sentido ofendido.

São Paulo, 16 de setembro de 2014.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

São Paulo não esconde sua violência

Quatro e meia da tarde, estou no intervalo da minha aula. Em frente a praça Roosevelt, do outro lado da rua da Consolação, dois mendigos estão apoiados na "mureta" que evita que os pedestres se aproximem da rua que passa abaixo - o fim do Minhocão. Um deles aparenta embriaguez, o outro parece alheio. Passam por eles três jovens, na casa dos vinte anos, trajam roupas de marca. Um deles pára, olha para trás, tira seu iPhone, entrega a um amigo: "tira uma foto", e se põe entre os dois mendigos. "Uma foto cozamigo", ainda ouço ele dizer. Quando a miséria, a dor ou o sofrimento do Outro não merecem nada mais que escárnio, qual o limite para a desumanidade? Não sei, e tenho medo de descobrir. Mais medo ainda porque já me parece muito o pouco que sei. Adiante, novas pistas de que nada sei. Garotas passam pintadas e com as roupas rasgadas. Garotos passam pintados, cabelos estragados e bêbados. Uma bonita demonstração da divisão sexual do trote: às mulheres, perder a roupa, aos homens, o juízo. Comento com meu amigo o quanto, desde a Unicamp, me alegra presenciar esses simulacros de celebração da juventude hitlerista. O fato dos fascistóides na nossa frente serem da Universidade Presbiteriana Mackenzie (ah, como o cristianismo ajuda a construir um mundo mais digno!), em nada altera: um pouco mais ou um pouco menos, são a fina flor do país, a nata intelectual e financeira - junto com os acadêmicos da PUC, USP, Unicamp, UFAbc ou algumas outras. Até a UNIP tem seu simulacro fascista, expondo a pobreza de todos - veteranos e calouros - de maneira absurda: porque ali não há berço esplêndido para ocultar a pobreza do ato. De volta à escola de teatro, um exemplo que me ainda choca, e não acredito que algum dia deixe de me chocar: comento com a secretária - sempre leve, bem disposta, bonita - que não consegui ver o vídeo em que ela é entrevista pela BBC, apenas lera o breve resumo do seu relato. Ela me conta ao vivo, então, o que pode ser resumido como: teve a sorte de "só" perder um rim após levar um chute - e desta vez não estou sendo irônico. Nove pessoas - homens e mulheres -, entre dezesseis e vinte e dois anos atacaram-na quando passava pela praça da República, em direção a uma lanchonete. Ela perdeu um rim, o amigo que tentou protegê-la, "só" sofreu escoriações e acabou com o nervo ciático grudado no fêmur - três meses de fisioterapia para começar a voltar a ter os movimentos da perna. Seu crime: ser uma transexual. E eu que ingenuamente achava que esse tipo de violência seria excesso de testosterona, e não premeditação pela qual esteve presente a razão. Dava tudo isso por suficiente para o dia, queria chegar em casa, escrever esta crônica, seguida de uma mais leve, mas o dia me ofertava mais um belo exemplo do neofascismo das classes paulistanas favorecidas. Estou entrando no Centro Cultural São Paulo, um homem fecha sua mochila enquanto reclama: "é claro que eu vou ficar assustado, saio do banheiro e três seguranças me cercam e me intimidam", o segurança fala algo que não ouço, ele responde: "então vamos entrar e conferir", ele e dois seguranças entram no banheiro, um terceiro fica na porta. O homem está bem vestido (bem melhor do que eu), demonstra bom domínio do português. Seu crime: ser negro. O CCSP segue aprofundando seu processo de limpeza social para se tornar um Sesc público. Talvez seja isso uma das coisas que me faz gostar de São Paulo, em especial de seu centro: ela não é uma cidade hipócrita, não esconde suas mazelas, não disfarça seu racismo, não doura seu preconceito, não finge nenhuma democracia racial ou social. Não que eu goste de presenciar isso tudo, mas esconder o rosto para não ver toda essa violência simbólica diária e ostensiva não a torna menos violenta ou menos quotidiana. O centro de São Paulo nos cospe na cara nossa precariedade como sociedade e como humanos.



São Paulo, 30 de julho de 2014.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Marginais, bárbaros, selvagens nos estádios: e nós?

O assunto é o da moda, e minha abordagem aqui, eu sei, não é nada original; mesmo assim escrevo sobre o evento entre atleticanos e vascaínos, na última rodada do campeonato nacional ludopédico. As imagens de brigões apanhando covardemente (porque não conseguiram bater covardemente) apenas coroou a face tida como aberração do esporte mais popular do planeta no país do futebol. Vale lembrar, contudo, que o conflito entre torcedores não é novidade no esporte, como não foi novidade neste campeonato. 

Teimando em tratar como excepcional o que é corriqueiro, em negar que isso é parte do esporte e reflexo da sociedade (o enorme contingente de policiais destacado para o estádio e arredores em dia de jogo apenas corrobora a violência inerente e não ritual do futebol-show), a imprensa arrota, verdadeiramente horrorizada e inconscientemente satisfeita (afinal, é notícia, é capa do jornal, é motivo fácil pra colunas), uma série de pretensos desqualificativos desse Outro, reflexo maldito de nós mesmos. De bandidos e marginais a bárbaros e selvagens, o espectro de adjetivos é amplo, mas me restrinjo a um breve comentário sobre esses quatro, muito utilizados.

Sobre bandidos, convém sempre lembrar que doentes e criminosos são crias da própria sociedade onde vivem – atiradores de escolas nos EUA, suicidas em universidades brasileiras de ponta, agressores sem motivos e policiais sádicos ao redor do mundo. Marginais, como o próprio nome diz, é porque há um núcleo do qual alguns – em geral muitos – foram excluídos. Àqueles que acusam o Outro de marginal sobra sempre auto-incriminações implícitas: ou crêem que os tais marginais se põem à margem por opção? Entre viagens pra Disney, baladas caras e carro importado, escolheram tráfico de drogas ou a vida medíocre em escritórios temperada com brigas em estádios.

É a mesma função de auto-comiseração, porém num plano mais ontológico e menos social, o uso do ajetivo bárbaro: vem da tradição greco-romana, quando os homens ainda não eram todos iguais, tratar o diferente não como um Outro, mas como uma sub-raça inferior. Se o Outro nos devolve nosso reflexo e nos obriga a repensar nossa condição no mundo, o bárbaro apenas serve para provar nossa superioridade narcísica frente sua ignorância e rudeza.

Por fim, o adjetivo selvagem, que tanto me agride: um pouco menos de etnocentrismo e positivismo nos cairia bem. Os selvagens, se guerreavam o faziam com fins mais nobres do que a violência gratuita que foi filmada em Joinville: a violência podia ser real, mas era também ritual, o adversário era um Outro digno de respeito – a tal ponto que o ritual de antropofagia significava incorporar as suas qualidades. O que se vê hoje em dia – nos estádios e fora deles, que o diga a internet – é o adversário como inimigo, um ser ignóbil (pelo elevado motivo de não concordar conosco) que merece ser destruído e aniquilado. Não é alguém que respeitamos e invejamos suas qualidades, é alguém que pequeno e que nos perturba por nos apresentar nossa pequenez. A violência gratuita dos estádios não é ritual nem auto-reflexiva, mas é um reflexo de nossa sociedade, em que as pessoas são reduzidas a um insignificante e facilmente substituível parafuso no sistema que tem por obrigação gerar lucro e crescimento econômico. Não é selvageria, é hiper-civilização.

E então abundam propostas de como conter tal violência: aumento do efetivo, fim das torcidas, prisão de torcedores, torcida única, jogo em estádio vazio. A cada proposta eu ouço a afirmação da falência de uma sociedade, de uma cultura em que um jogador de futebol mediano ganha mais do que um escritor ou um intelectual de ponta. E tudo isso é normal, porque violento são os outros.

São Paulo, 10 de dezembro de 2013.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Na fila do mercado, numa madrugada de domingo

Oxe, nunca tinha visto, me respondeu a caixa quando perguntei se era comum aquele tipo de cena. Esses esqueitistas, resmungava um homem na fila, no alto de sua sabedoria preconceituosa e senso comum, ignorando que não havia ninguém com prancha ali. Foi a conversa de momento pelos cinco, talvez dez minutos que me demorei ali. Pouco antes havia saído um rapaz, puxado – finalmente – pela sua namorada, aos berros: covardes, dois contra um! Vem só um! Vem só um! Se fazia vítima agora, o macho alfa, que instantes atrás chamava os dois pra briga. Eu entrara na fila de pequenas compras – até vinte itens. Na minha frente um rapaz de uns vinte anos, um saco de pão e uma bandeja de frios. Aparentemente, tudo normal, cada um pensativo com sua compra e na semana por vir. Foi quando o rapaz na sua frente se vira e pergunta que ele está querendo arranjar confusão. Estou aqui na boa, quieto. O da frente insiste, mostrando toda sua testosterona, ignorando os apelos da namorada para que parasse: cadê teu amiguinho? Pouco depois chega o amigo, alargador na orelha, várias tatuagens (como o macho alfa): que foi, ainda enchendo o nosso saco? Nenhum bombado, todos com seus um metro e setenta. Algumas trocas de adjetivos e o de alargador manda calar a boca: vem fazer eu calar. Desafia o macho enquanto empurra o primeiro rapaz, que já havia avisado pra não ralar nele. O de alargador aceita o convite e os dois se abraçam aos gritos de pára da namorada. O primeiro rapaz vê uma garrafa de vodca, pensa rápido e não titubeia: logo voava pelo ar o líquido amarelado ao som de vidro quebrado. Algumas pessoas aparecem para separar: não tem segurança aqui? O segurança chega depois, quando o macho alfa já havia saído com a namorada, se fazendo de vítima. No chão, junto com a vodca, sangue. O primeiro rapaz comenta, indignado, com o segurança: eu tava de boa, ele veio encher, e olha o que ele fez eu fazer com meu brother: reparo no rosto do rapaz de alargador, o sangue jorra do supercílio aberto pela garrafada do amigo

Morais da história: se chamar dois pra briga não os acuse de covarde porque aceitaram o convite; e quando for brigar, só use armas se souber usá-las: você pode acertar seu amiguinho.

São Paulo, 14 de outubro de 2013.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

SP não pode parar? (apenas outro relato do dia 13/06)

Sete e dez da noite, mais ou menos. Uma mãe com uma criança de colo - um ano, se muito - sai do carro, na rua Caio Prado, e corre desesperada em direção à Augusta, em meio à fumaça. "Puta merda!, que idéia errada", penso na hora. A mulher nota isso antes de passar pelo primeiro carro atrás do dela, quando uma bomba estoura pouco metros na sua frente. A criança berra, a mãe consegue voltar pro carro antes do grosso da multidão começar a correr na direção contrária, por causa das bombas. Começava aí o tal vandalismo das manifestações em SP, que a Grande Imprensa e o Estado dizem ocorrer – até então a mulher estava há vários minutos presa no trânsito, em meio a baderneiros, arruaceiros e vândalos, e não se desesperara.

Eu chegara atrasado à manifestação. Seis e meia estava em frente ao Theatro Municipal. Havia quase um clima de virada cultural, o trânsito impedido, as pessoas ocupando a Xavier de Toledo - mas a utilizavam para ir e vir, não com rodas de samba. O viaduto do Chá estava fechado: manifestantes? Nem sinal deles: a polícia fizera dele uma base. Caminhei até a República, tranqüila, encontrei a manifestação quase em frente ao Copan. Corri para o início. Estava no cruzamento da Consolação com a rua Caio Prado. "Vamos pra Paulista!", era um dos gritos dos manifestantes, que não avançavam, impedidos por uma barreira de alguns poucos policiais militares. Não contei no relógio, mas depois que cheguei, a manifestação ficou bem uns cinco minutos parada num clima tenso de disputa de território. Passei por trás da barreira. Próximo ao canteiro central, observei e analisei a situação: aqueles poucos policiais militares segurando milhares de manifestantes, havia algo errado: logo ou chegaria reforço - vai que nossa polícia militar tinha sido minimamente inteligente e faria a contenção! -, ou aquilo era provocação e, diante da resposta não-violenta dos manifestantes, logo viria bomba. Fui ingênuo em achar que era a primeira opção e que a polícia militar direcionaria os manifestantes para a praça Roosevelt. Mas não fui tão ingênuo em acreditar tanto na minha ingenuidade e tratei de ver qual parecia a melhor rota de fuga: me pareceu a Caio Prado.

O clima era tenso, palavras de ordem eram gritadas, mas não havia - ali na linha de frente da manifestação - nenhuma afronta à polícia, além do "Vamos pra Paulista" que não se concretizava em ato. Isso até a primeira bomba - que, definitivamente, não foi disparada da população, e sim contra ela. Foi pouco depois que vi a cena da mãe desesperada com a criança de colo. "Não corre, não corre", alguns tentavam acalmar a turba que explodia por entre os carros, respeitando as vacas sagradas que entopem nossas ruas. "Vinagre aqui! Vinagre aqui!", alguns "terroristas" compartilhavam o antídoto para as bombas de gás lacrimogêneo da polícia. Eu tinha os olhos cheio de lágrimas, a garganta ardendo e o nariz escorrendo a ponto de achar que estava sangrando por causa do gás. As primeiras bombas causavam grande corre corre, a partir da quarta ou quinta, era apenas passar o estrondo para os manifestantes tentarem voltar à posição.

Nessa hora, uma amiga que dormiria em minha casa me ligou avisando que havia chegado mais cedo - duas horas - e me esperava no metrô. Fui encontrá-la no Anhangabaú. O barulho das bombas e a freqüência com que estouravam davam um ar de ano novo - minha amiga até brincou e cantarolou qualquer canção da época. O cheiro de vinagre estava no ar. No viaduto do chá - ainda interditado - o choque já havia saído. Fomo comer algo, aproveitei para beber um mate pra aliviar a ardência na garganta causada pelo gás. Na lanchonete, entraram três rapazes em trajes fora de época, um usava cartola, outro tinha uma bicicleta que devia ser antiga na época do meu avô. "Estamos num filme do Pasolini, é isso?", brincou minha amiga. Pouco depois passou um carro da Rota, atrás um militar branco, boina meio caída, o olhar vidrado. Minha amiga concordou que o soldado parecia soldado da SS. Uma das cenas tinha mais peso na realidade, era a segunda. Subimos por uma rua Augusta transformada em cenário de filme, com lixo e pequenas fogueiras em toda sua extensão até a Paulista, lojas fechadas. Carros da polícia militar e dos bombeiros (e até um carro da polícia civil) passavam em alta velocidade.

Na principal avenida da cidade, quem a bloqueava não eram os manifestantes, mas a própria polícia militar. Os focos de manifestação haviam sido dispersados. Tivemos que correr de algumas bombas de gás lacrimogêneo, até acabarmos na esquina da Bela Cintra com a Paulista - onde três pelotões da cavalaria montavam base. Eu me perguntava no que aquela manifestação uma hora antes, pouco mais, precisaria de cavalaria. Ainda havia fumaça das bombas quando notamos um homem sem uma perna. Andava calmamente com sua muleta e parou próximo a uma tropa que estava ali. Calmamente acendeu o cigarro, observou, analisou a situação. Havia mais policiais que manifestantes, mais curiosos do que policiais. Um policial militar tentava fazer os curiosos se dispersarem. Sem poder usar de bombas de gás, não tinha lá grande autoridade. O homem, depois de muita exortação, calmamente se retirou do meio da rua. Veio até nosso lado e ali ficamos, acompanhando à distância, as movimentações. Soubemos que havia um grupo maior na Angélica; vimos uma fogueira na Bela Cintra com a Luís Coelho. Ouvíamos o barulho de bombas vindo da direção da Augusta. Chegavam comentários sobre a jornalista da Folha. Ônibus do choque passavam. Um amigo voltou da Consolação. Lá, com o trânsito já fluindo, um grupo de quinze pessoas, se tanto, gritando "Sem violência" no canteiro central, havia sido dispersada pelos policiais com mais bombas. "Saíram correndo, no meio dos carros, não sei como não foram atropelados", comentou meu amigo. Só depois a polícia militar fechou a via para evitar maiores "efeitos colaterais".

Na Paulista, vejo um rapaz sendo abordado por, pelo menos, seis policiais. Achei que estava pichando uma agência bancária. Depois conversamos com ele: que pichação, que nada, apenas passava e acharam que tinha cara de suspeito. Diz que ficou chocado com a aula de reacionarismo dos policiais: "de que lado você está?", "vai dizer que não estamos fazendo o certo, que não estamos protegendo a sociedade?". Conceitos abstratos para agredir pessoas concretas.

No fim, a avenida já liberada dos "vândalos" a polícia militar resolveu, enfim, cessar suas manobras e liberá-la para o tráfego. Já passavam das dez e meia. Conversávamos com mais algumas pessoas na esquina quando escutamos três bombas e vimos três homens correndo. Ninguém pode dizer que nossa polícia não é democrática: uma bomba para cada um. E a truculência diária das periferias e locais ermos agora no centro da cidade, na "avenida mais rica do Brasil", ao vivo na TV.


São Paulo, 14 de junho de 2013.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Praça Roosevelt, skatistas, GCM e nosso déficit democrático

O vídeo que circulou na internet no início do mês mostrando a ação da Guarda Civil Metropolitana de São Paulo contra skatistas na Praça Roosevelt [http://j.mp/ZIZmZi], no centro da cidade, acaba sendo uma pequena amostra de tensões latentes (ou nem tão latentes assim) da sociedade brasileira atual, tendo como foco agonístico a questão da convivência com o diferente (e a cidade como palco), com conseqüências para a discussão sobre segurança pública, dos direitos humanos e usos da cidade (que passa de palco para personagem do drama político).

O vídeo é uma prova do que poderia ser tido por despreparo da GCM, mas parece antes ser fruto do seu preparo precário, mesmo. Para piorar, esse preparo não é substancialmente diferente da polícia militar – ainda que a GCM não guarde o nível de letalidade da PM (estimulada e ovacionada pelo governador Geraldo Alckmin, assim como por apresentadores raivosos na TV). Quando se recorda que o fortalecimento das Guardas Civis no governo Lula, que almejava a ascensão de uma força civil de segurança pública que paulatinamente suplantasse a militar (bem ao estilo do seu governo de comer pelas bordas e evitar o conflito aberto), se deu sob o pressuposto de respeito aos direitos humanos – condições para buscar uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU –, é de se questionar seriamente o papel das forças de segurança no país. Podemos retomar, quase trinta anos depois, o refrão de Tony Belloto, agora sob a forma de pergunta: Polícia para quem precisa? Quem precisa de polícia? Que fique claro: não se trata de repetir um bordão não de todo incomum em considerável parte da nossa intelectualidade acadêmica preguiçosa, que prega o fim da polícia no mundo (para pôr o que no lugar? civis com balaclavas, como no Fórum Social Mundial?, ou liberarmos um estado de natureza hobbesiano, cada um por si e uma arma na mão?), ou acha que é levando porrada que se aprende (até ser ele ou seu filho quem apanha, aí descobre que pau-de-arara não é do bem, como certo dramaturgo durante a ditadura civil-militar): o ponto é adentrar esse que parece ser um dos núcleos do gládio político atual, tanto na política-quotidiana, como na esfera político-institucional – há tempos acuso como ponto de divergência essencial entre os dois principais partidos do país, o PSDB sob a égide paulista e o PT, a questão dos direitos humanos.

Passemos o vídeo em revista. Temos seis atores em cena: a GCM, o que chamarei aqui de leão-de-chácara da GCM (ou só leão-de-chácara), os skatistas, a praça Roosevelt, e, escondidos, a prefeitura e os moradores do entorno da praça.

O vídeo começa com um guarda à paisana e sem identificação – o leão-de-chácara da GCM – dando uma gravata em um rapaz. Não é possível saber o que motivou a ação – conforme a imprensa, a GCM acusa os skatistas de estarem em área proibida, por mais que não haja área proibida na praça. Independente disso, não há dúvidas de que o golpe é exagerado: uma gravata serve mais do que para imobilizar, serve para matar alguém. Imobilização pode ser feita com uma chave-de-braço, algo que o leão-de-chácara deu mostras de não saber fazer, em outro vídeo, esse vinculado por reportagem do SBT: apelando para a força, ao invés da técnica, mais do que imobilizar, ele acaba por machucar o cidadão agredido-imobilizado [http://j.mp/TLOkP9].

Depois que ele solta o rapaz, a pequena multidão, que estava em cima, se dispersa um pouco. Ficam em volta, vendo o desenrolar da ação da GCM, sem a mesma pressão até então, mas sem se comportarem como boas ovelhas. A GCM resolve, então, dispersar de verdade o pessoal, e faz uso de spray de pimenta. Nenhuma novidade nesse abuso, coisa que se aprende com a PM:

O uso desse expediente, por mais que seja comum, mostra o despreparo da GCM: não há risco de tumulto, não há ameaça contra os “mantedores da ordem”, nada que justifique o uso do spray, a não ser a tentativa de mostrar quem manda ali.

Logo a seguir, uma guarda discute com o skatista. Isso pode ser tanto mostra de falta de justificativa para a ação quanto de desmoralização da força de segurança: se se está correto, por que discutir, ainda mais assim, dando de dedo? Se se está correto, via de regra, não é preciso levantar a voz – até porque o skatista não estava exaltado a ponto de precisar gritar a ele que se calasse. Creio eu que seja os dois.

Diante da aproximação de um grupo dos dois que discutem, aparece um guarda empunhando um cassetete. A cena é patética, e se olhada com certo distanciamento, quase dá dó: o guarda sabe da sua desmoralização, da sua impotência: não pode dar porrada como o leão-de-chácara (não tem o mesmo porte e, ademais, está fardado), e não consegue impor respeito pela sua farda. Resta-lhe apelar ao falo da ordem, como substituto das suas frustrações.

Depois do breve relato do cinegrafista, é possível ver o leão-de-chácara, junto com outros três guardas, protegidos por um surreal sem-número de outros mais, intimando o skatista. O leão-de-chácara, então, se aproxima – escoltado por outro GCM, lo muy valente do cinegrafista e passa a ofendê-lo e agredi-lo verbalmente (desejava uma reação do rapaz, para ter “justificativa” para poder dar porrada?): “agita, seu arrombado” “seu pau no cu” “cala essa porra dessa boca, quem tá errado aqui é você, seu bosta, não serve para porra nenhuma” “seu merda do caralho” “taca pedra, seu pau no cu” “você não trabalha porra nenhuma, você é vagabundo, que fica aqui andando de skate, seu arrombado”. E depois tenta intimidá-lo: “pode filmar, seu lixo, tem filmagem de você tacando pedra” (a reportagem do Estadão perguntou pela tal filmagem e não foi respondida).

A ação do leão-de-chácara, particularmente (mas a da GCM não está muito aquém), não apenas não corresponde ao que se espera de um agente de segurança pública, como ele age mais como um pit-boy, desses macho-alfa que arranjam brigas em boates, espancam homossexuais, e que parece que a única possibilidade de ressocialização é via castração química. Seu amadorismo é tão grande que dá vontade de duvidar que seja da corporação, parece antes um desses homens de bem que, iluminados e estimulados por âncoras fascistóides como Datena, resolvem fazer uso do que possuem de bom (a força) para ajudar a guarda civil contra os “lixos sociais”. Seu discurso é do fascistismo presente na Grande Imprensa brasileira: a negação do Outro, acusado de lixo (e o que se faz com lixo? joga-se fora ou queima-se) e mandado que se cale; a lógica do ser humano ter que ser útil: “não serve para porra nenhuma (...), não trabalha porra nenhuma”; o agir em nome da defesa da ordem. Arbeit macht frei era também um slogan de defesa da ordem, de uma ética do trabalho, de uma limpeza social.

Mas seria ingenuidade minha acreditar que as forças de segurança do país – não falo aqui da chamada banda podre – não estejam imbuídas, da cúpula à base, dessa mentalidade de inspiração fascista, estimulada por toda uma parcela da população e pelos donos do poder – afinal, para estes, o discurso do medo é altamente lucrativo. Se parte da população critica os “excessos”, é porque ela não vê problema nos motivos da ação: apadrinham a dispersão de vagabundos, a prisão de baderneiros, o “rigor” da polícia contra o crime – sendo que rigor, aqui, não raro, é extrapolação da lei. Está aí para provar a votação enorme do jagunço da PM, que se orgulha de, dentre as suas 36 mortes, não ter matado nenhum “inocente” [http://j.mp/RUtYDP]. Apadrinham, como os moradores do entorno da Roosevelt, a limpeza das praças dos elementos indesejados – só falta alegarem motivo de saúde pública.

A ocupação ou esvaziamento da praça Roosevelt (neste caso, mas não apenas), as formas de ocupação dos espaços públicos, isso está aberto a discussões. Um acordo sobre essas questões deve ser buscado pelo debate, ainda que dificilmente a decisão tomada não desagrade um lado, por mais que se discuta – isso não exime, contudo, de ser discutida. A GCM entra no meio dessa discussão, fazendo o trabalho sujo para a prefeitura – que encampa interesses econômicos na região – e para os cidadãos de bem que vivem no entorno na praça – esses que trabalham com amor e orgulho, não usam drogas e, logo, têm o direito a classificar quem presta quem não. Por isso a guarda não apenas obriga que se cumpra a ordem, mas precisa discutir: a ordem não está tão bem estabelecida para que seja simplesmente cumprida, de forma que a ação da GCM está aberta à disputa política.

Como estão abertas à disputa as funções e as ações da polícia e demais forças de segurança. Assim, cabe a pergunta: quem precisa de polícia? Dessa polícia, não são os moradores das periferias, ao certo; não é a parte mais carente e mais marginal da população – e se pensassem um pouco, tampouco seria a classe média e os moradores do centro e dos bairros nobres. Se a Grande Imprensa evita esse debate, ou tenta desqualificar todos que o põem, é porque seus interesses e dos seus patrocinadores estão sendo atendidos com essa polícia/política. E tais interesses não têm nenhuma afinidade com a democracia – a não ser que formos pensar numa democracia hayekiana, mas não é essa que está em nossa Carta Magna.

Se Gilberto Freire conseguiu construir o mito da democracia racial, a partir da proximidade da casa grande e da senzala, nosso republicanismo sempre agiu na direção contrária, de separar o máximo a casa grande da senzala: da reforma urbana no Rio de Janeiro, no início do século, ao plano posto em prática em Palmas, no Tocantins; a delimitação de bairros para ricos e para pobres, de áreas permitidas para ricos e para pobres. Casa grande e senzala só voltam a se juntar nos espaços privados de uso público, shopping centers e condominíos fechados, em que todos têm seu papel muito bem delimitado e vigilância constante – garantidora de que todos estão cumprindo seu script adequadamente.

A revitalização da praça Roosevelt é uma mostra de que a ordem é uma ordem a serviço de um grupo bem específico – não é em favor da cidade, nem da grande massa dos seus moradores. A se acreditar na versão oficial, a praça passou por um processo de decadência nas décadas de 1980, 1990, e teve uma revivescência com a instalação de diversos grupos teatrais. Aproveitando que a praça já estava sendo novamente ocupada, prefeitura interveio para “revitalizá-la”. O resultado é sabido: a especulação imobiliária tem expulsado muitos desses grupos que foram responsáveis pela reversão da decadência da praça. Não houve, por parte do poder público, tentativa substancial de evitar que isso acontecesse, para manter a praça como um dos centros de cultura da cidade.

Esqueceram, contudo, de combinar com os russos. Uma praça de cimento e escadas no centro de uma cidade carente de espaços públicos é um convite aos skatistas – que vem de todas as partes da cidade, quer seja das áreas ricas, quer das pobres. Ou seja, a senzala invade a casa grande, numa situação sem o controle dos shopping centers e clubes de bacanas. A princípio, não seria nenhum problema: no máximo regulando um pouco seu uso, ao reservar áreas para o skate, áreas para os cachorrinhos (para os pedestres, esses fracassados sociais, não houve sequer direito a calçadas no entorno da praça), e a convivência poderia se dar de maneira pacífica – o que não quer dizer que não haja problemas e conflitos. Mas ao tentar impedir a prática de skate justificando o barulho causado pelas pranchas, os moradores do entorno mostram que seu interesse não é o conviver com o outro, não é o do aprendizado com a prática da alteridade: é o de fazer da praça um versão a céu aberto da sua vida classe média uniforme e precária.

Vamos ver como age o novo governo. Via de regra o PT é mais sensível aos direitos humanos, às demandas sociais e disposto ao diálogo (ainda que isso, muitas vezes, sirva para encobrir a ausência de políticas efetivas para que se atenda as reivindicações dos mais pobres). Tem agora um exemplo prático de consertar no quotidiano da cidade o que seu partido institui no plano federal, tanto nos excessos da GCM como na sua própria ação ordinária, e mostrar que lado Haddad está disposto a agradar e a desagradar no curto prazo. A praça Roosevelt pode se tornar um caso emblemático em favor de uma mentalidade mais democrática em São Paulo. Ou se tornar outro caso em que o governo age em favor dos interesses de quem tem mais.

São Paulo, 24 de janeiro de 2013.