Quatro e meia da tarde, estou no
intervalo da minha aula. Em frente a praça Roosevelt, do outro lado
da rua da Consolação, dois mendigos estão apoiados na "mureta"
que evita que os pedestres se aproximem da rua que passa abaixo - o
fim do Minhocão. Um deles aparenta embriaguez, o outro parece
alheio. Passam por eles três jovens, na casa dos vinte anos, trajam
roupas de marca. Um deles pára, olha para trás, tira seu iPhone,
entrega a um amigo: "tira uma foto", e se põe entre os
dois mendigos. "Uma foto cozamigo", ainda ouço ele dizer.
Quando a miséria, a dor ou o sofrimento do Outro não merecem nada
mais que escárnio, qual o limite para a desumanidade? Não sei, e
tenho medo de descobrir. Mais medo ainda porque já me parece muito o
pouco que sei. Adiante, novas pistas de que nada sei. Garotas passam
pintadas e com as roupas rasgadas. Garotos passam pintados, cabelos
estragados e bêbados. Uma bonita demonstração da divisão sexual
do trote: às mulheres, perder a roupa, aos homens, o juízo. Comento
com meu amigo o quanto, desde a Unicamp, me alegra presenciar esses
simulacros de celebração da juventude hitlerista. O fato dos
fascistóides na nossa frente serem da Universidade Presbiteriana
Mackenzie (ah, como o cristianismo ajuda a construir um mundo mais
digno!), em nada altera: um pouco mais ou um pouco menos, são a fina
flor do país, a nata intelectual e financeira - junto com os
acadêmicos da PUC, USP, Unicamp, UFAbc ou algumas outras. Até a
UNIP tem seu simulacro fascista, expondo a pobreza de todos -
veteranos e calouros - de maneira absurda: porque ali não há berço
esplêndido para ocultar a pobreza do ato. De volta à escola de
teatro, um exemplo que me ainda choca, e não acredito que algum dia
deixe de me chocar: comento com a secretária - sempre leve, bem disposta, bonita - que não consegui ver o
vídeo em que ela é entrevista pela BBC, apenas lera o breve resumo
do seu relato. Ela me conta ao vivo, então, o que pode ser resumido
como: teve a sorte de "só" perder um rim após levar um
chute - e desta vez não estou sendo irônico. Nove pessoas - homens
e mulheres -, entre dezesseis e vinte e dois anos atacaram-na quando
passava pela praça da República, em direção a uma lanchonete. Ela
perdeu um rim, o amigo que tentou protegê-la, "só" sofreu
escoriações e acabou com o nervo ciático grudado no fêmur - três
meses de fisioterapia para começar a voltar a ter os movimentos da
perna. Seu crime: ser uma transexual. E eu que ingenuamente achava
que esse tipo de violência seria excesso de testosterona, e não
premeditação pela qual esteve presente a razão. Dava tudo isso por
suficiente para o dia, queria chegar em casa, escrever esta crônica,
seguida de uma mais leve, mas o dia me ofertava mais um belo exemplo
do neofascismo das classes paulistanas favorecidas. Estou entrando no
Centro Cultural São Paulo, um homem fecha sua mochila enquanto
reclama: "é claro que eu vou ficar assustado, saio do banheiro
e três seguranças me cercam e me intimidam", o segurança fala
algo que não ouço, ele responde: "então vamos entrar e
conferir", ele e dois seguranças entram no banheiro, um
terceiro fica na porta. O homem está bem vestido (bem melhor do que
eu), demonstra bom domínio do português. Seu crime: ser negro. O
CCSP segue aprofundando seu processo de limpeza social para se tornar
um Sesc público. Talvez seja isso uma das coisas que me faz gostar
de São Paulo, em especial de seu centro: ela não é uma cidade
hipócrita, não esconde suas mazelas, não disfarça seu racismo,
não doura seu preconceito, não finge nenhuma democracia racial ou
social. Não que eu goste de presenciar isso tudo, mas esconder o
rosto para não ver toda essa violência simbólica diária e
ostensiva não a torna menos violenta ou menos quotidiana. O centro
de São Paulo nos cospe na cara nossa precariedade como sociedade e
como humanos.
São Paulo, 30 de julho de 2014.
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