Sete
e dez da noite, mais ou menos. Uma mãe com uma criança de colo - um
ano, se muito - sai do carro, na rua Caio Prado, e corre desesperada
em direção à Augusta, em meio à fumaça. "Puta merda!, que
idéia errada", penso na hora. A mulher nota isso antes de
passar pelo primeiro carro atrás do dela, quando uma bomba estoura
pouco metros na sua frente. A criança berra, a mãe consegue voltar
pro carro antes do grosso da
multidão começar a correr na direção contrária, por causa das
bombas. Começava aí o tal vandalismo das manifestações em SP, que
a Grande Imprensa e o Estado dizem ocorrer – até então a mulher
estava há vários minutos presa no trânsito, em meio a baderneiros,
arruaceiros e vândalos, e não se desesperara.
Eu
chegara atrasado à manifestação. Seis e meia estava em frente ao
Theatro Municipal. Havia quase um clima de virada cultural, o
trânsito impedido, as pessoas ocupando a Xavier de Toledo - mas a
utilizavam para ir e vir, não com rodas de samba. O viaduto do Chá
estava fechado: manifestantes? Nem sinal deles: a polícia fizera
dele uma base. Caminhei até a República, tranqüila, encontrei a
manifestação quase em frente ao Copan. Corri para o início. Estava
no cruzamento da Consolação com a rua Caio Prado. "Vamos pra
Paulista!", era um dos gritos dos manifestantes, que não
avançavam, impedidos por uma barreira de alguns poucos policiais
militares. Não contei no relógio, mas depois que cheguei, a
manifestação ficou bem uns cinco minutos parada num clima tenso de
disputa de território. Passei por trás da barreira. Próximo ao
canteiro central, observei e analisei a situação: aqueles poucos
policiais militares segurando milhares de manifestantes, havia algo
errado: logo ou chegaria reforço - vai que nossa polícia militar
tinha sido minimamente inteligente e faria a contenção! -, ou
aquilo era provocação e, diante da resposta não-violenta dos
manifestantes, logo viria bomba. Fui ingênuo em achar que era a
primeira opção e que a polícia militar direcionaria os
manifestantes para a praça Roosevelt. Mas não fui tão ingênuo em
acreditar tanto na minha ingenuidade e tratei de ver qual parecia a
melhor rota de fuga: me pareceu a Caio Prado.
O
clima era tenso, palavras de ordem eram gritadas, mas não havia -
ali na linha de frente da manifestação - nenhuma afronta à
polícia, além do "Vamos pra Paulista" que não se
concretizava em ato. Isso até a primeira bomba - que,
definitivamente, não foi disparada da população, e sim contra ela.
Foi pouco depois que vi a cena da mãe desesperada com a criança de
colo. "Não corre, não corre", alguns tentavam acalmar a
turba que explodia por entre os carros, respeitando as vacas sagradas
que entopem nossas ruas. "Vinagre aqui! Vinagre aqui!",
alguns "terroristas" compartilhavam o antídoto para as
bombas de gás lacrimogêneo da polícia. Eu tinha os olhos cheio de
lágrimas, a garganta ardendo e o nariz escorrendo a ponto de achar
que estava sangrando por causa do gás. As primeiras bombas causavam
grande corre corre, a partir da quarta ou quinta, era apenas passar o
estrondo para os manifestantes tentarem voltar à posição.
Nessa
hora, uma amiga que dormiria em minha casa me ligou avisando que havia
chegado mais cedo - duas horas - e me esperava no metrô. Fui
encontrá-la no Anhangabaú. O barulho das bombas e a freqüência
com que estouravam davam um ar de ano novo - minha amiga até brincou
e cantarolou qualquer canção da época. O cheiro de vinagre estava no ar. No viaduto do chá - ainda
interditado - o choque já havia saído. Fomo comer algo, aproveitei
para beber um mate pra aliviar a ardência na garganta causada pelo
gás. Na lanchonete, entraram três rapazes em trajes fora de época,
um usava cartola, outro tinha uma bicicleta que devia ser antiga na
época do meu avô. "Estamos num filme do Pasolini, é isso?",
brincou minha amiga. Pouco depois passou um carro da Rota, atrás um
militar branco, boina meio caída, o olhar vidrado. Minha amiga
concordou que o soldado parecia soldado da SS. Uma das cenas tinha
mais peso na realidade, era a segunda. Subimos por uma rua Augusta
transformada em cenário de filme, com lixo e pequenas fogueiras em
toda sua extensão até a Paulista, lojas fechadas. Carros da polícia
militar e dos bombeiros (e até um carro da polícia civil) passavam
em alta velocidade.
Na
principal avenida da cidade, quem a bloqueava não eram os
manifestantes, mas a própria polícia militar. Os focos de
manifestação haviam sido dispersados. Tivemos que correr de algumas
bombas de gás lacrimogêneo, até acabarmos na esquina da Bela
Cintra com a Paulista - onde três pelotões da cavalaria montavam
base. Eu me perguntava no que aquela manifestação uma hora antes,
pouco mais, precisaria de cavalaria. Ainda havia fumaça das bombas
quando notamos um homem sem uma perna. Andava calmamente com sua
muleta e parou próximo a uma tropa que estava ali. Calmamente
acendeu o cigarro, observou, analisou a situação. Havia mais
policiais que manifestantes, mais curiosos do que policiais. Um
policial militar tentava fazer os curiosos se dispersarem. Sem poder
usar de bombas de gás, não tinha lá grande autoridade. O homem, depois de muita exortação, calmamente se retirou do meio da rua.
Veio até nosso lado e ali ficamos, acompanhando à distância, as
movimentações. Soubemos que havia um grupo maior na Angélica;
vimos uma fogueira na Bela Cintra com a Luís Coelho. Ouvíamos o
barulho de bombas vindo da direção da Augusta. Chegavam comentários
sobre a jornalista da Folha. Ônibus do choque passavam. Um amigo
voltou da Consolação. Lá, com o trânsito já fluindo, um grupo
de quinze pessoas, se tanto, gritando "Sem violência" no
canteiro central, havia sido dispersada pelos policiais com mais
bombas. "Saíram correndo, no meio dos carros, não sei como não
foram atropelados", comentou meu amigo. Só depois a polícia
militar fechou a via para evitar maiores "efeitos colaterais".
Na
Paulista, vejo um rapaz sendo abordado por, pelo menos, seis
policiais. Achei que estava pichando uma agência bancária. Depois
conversamos com ele: que pichação, que nada, apenas passava e
acharam que tinha cara de suspeito. Diz que ficou chocado com a aula
de reacionarismo dos policiais: "de que lado você está?",
"vai dizer que não estamos fazendo o certo, que não estamos
protegendo a sociedade?". Conceitos abstratos para agredir
pessoas concretas.
No
fim, a avenida já liberada dos "vândalos" a polícia
militar resolveu, enfim, cessar suas manobras e liberá-la para o tráfego.
Já passavam das dez e meia. Conversávamos com mais algumas pessoas
na esquina quando escutamos três bombas e vimos três homens
correndo. Ninguém pode dizer que nossa polícia não é democrática:
uma bomba para cada um. E a truculência diária das periferias e
locais ermos agora no centro da cidade, na "avenida mais rica do
Brasil", ao vivo na TV.
São
Paulo, 14 de junho de 2013.
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