O
vídeo que circulou na internet no início do mês mostrando a ação
da Guarda Civil Metropolitana de São Paulo contra skatistas na Praça
Roosevelt [http://j.mp/ZIZmZi], no centro da cidade, acaba sendo uma
pequena amostra de tensões latentes (ou nem tão latentes assim) da
sociedade brasileira atual, tendo como foco agonístico a questão da
convivência com o diferente (e a cidade como palco), com
conseqüências para a discussão sobre segurança pública, dos
direitos humanos e usos da cidade (que passa de palco para personagem
do drama político).
O
vídeo é uma prova do que poderia ser tido por despreparo da GCM,
mas parece antes ser fruto do seu preparo precário, mesmo. Para
piorar, esse preparo não é substancialmente diferente da polícia
militar – ainda que a GCM não guarde o nível de letalidade da PM
(estimulada e ovacionada pelo governador Geraldo Alckmin, assim como
por apresentadores raivosos na TV). Quando se recorda que o
fortalecimento das Guardas Civis no governo Lula, que almejava a
ascensão de uma força civil de segurança pública que
paulatinamente suplantasse a militar (bem ao estilo do seu governo de
comer pelas bordas e evitar o conflito aberto), se deu sob o
pressuposto de respeito aos direitos humanos – condições para
buscar uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU –, é de se
questionar seriamente o papel das forças de segurança no país.
Podemos retomar, quase trinta anos depois, o refrão de Tony Belloto,
agora sob a forma de pergunta: Polícia para quem precisa? Quem
precisa de polícia? Que fique claro: não se trata de repetir um
bordão não de todo incomum em considerável parte da nossa
intelectualidade acadêmica preguiçosa, que prega o fim da polícia
no mundo (para pôr o que no lugar? civis com balaclavas, como no
Fórum Social Mundial?, ou liberarmos um estado de natureza
hobbesiano, cada um por si e uma arma na mão?), ou acha que é
levando porrada que se aprende (até ser ele ou seu filho quem
apanha, aí descobre que pau-de-arara não é do bem, como certo
dramaturgo durante a ditadura civil-militar): o ponto é adentrar
esse que parece ser um dos núcleos do gládio político atual, tanto
na política-quotidiana, como na esfera político-institucional –
há tempos acuso como ponto de divergência essencial entre os dois
principais partidos do país, o PSDB sob a égide paulista e o PT, a
questão dos direitos humanos.
Passemos
o vídeo em revista. Temos seis atores em cena: a GCM, o que chamarei
aqui de leão-de-chácara da GCM (ou só leão-de-chácara), os
skatistas, a praça Roosevelt, e, escondidos, a prefeitura e os
moradores do entorno da praça.
O
vídeo começa com um guarda à paisana e sem identificação – o
leão-de-chácara da GCM – dando uma gravata em um rapaz. Não é
possível saber o que motivou a ação – conforme a imprensa, a GCM
acusa os skatistas de estarem em área proibida, por mais que não
haja área proibida na praça. Independente disso, não há dúvidas
de que o golpe é exagerado: uma gravata serve mais do que para
imobilizar, serve para matar alguém. Imobilização pode ser feita
com uma chave-de-braço, algo que o leão-de-chácara deu mostras de
não saber fazer, em outro vídeo, esse vinculado por reportagem do
SBT: apelando para a força, ao invés da técnica, mais do que
imobilizar, ele acaba por machucar o cidadão agredido-imobilizado
[http://j.mp/TLOkP9].
Depois
que ele solta o rapaz, a pequena multidão, que estava em cima, se
dispersa um pouco. Ficam em volta, vendo o desenrolar da ação da
GCM, sem a mesma pressão até então, mas sem se comportarem como
boas ovelhas. A GCM resolve, então, dispersar de verdade o pessoal,
e faz uso de spray de pimenta. Nenhuma novidade nesse abuso, coisa
que se aprende com a PM:
O
uso desse expediente, por mais que seja comum, mostra o despreparo da
GCM: não há risco de tumulto, não há ameaça contra os
“mantedores da ordem”, nada que justifique o uso do spray, a não
ser a tentativa de mostrar quem manda ali.
Logo
a seguir, uma guarda discute com o skatista. Isso pode ser tanto
mostra de falta de justificativa para a ação quanto de
desmoralização da força de segurança: se se está correto, por
que discutir, ainda mais assim, dando de dedo? Se se está correto,
via de regra, não é preciso levantar a voz – até porque o
skatista não estava exaltado a ponto de precisar gritar a ele que se
calasse. Creio eu que seja os dois.
Diante
da aproximação de um grupo dos dois que discutem, aparece um guarda
empunhando um cassetete. A cena é patética, e se olhada com certo
distanciamento, quase dá dó: o guarda sabe da sua desmoralização,
da sua impotência: não pode dar porrada como o leão-de-chácara
(não tem o mesmo porte e, ademais, está fardado), e não consegue
impor respeito pela sua farda. Resta-lhe apelar ao falo da ordem,
como substituto das suas frustrações.
Depois
do breve relato do cinegrafista, é possível ver o leão-de-chácara,
junto com outros três guardas, protegidos por um surreal sem-número
de outros mais, intimando o skatista. O leão-de-chácara, então, se
aproxima – escoltado por outro GCM, lo muy valente
– do cinegrafista e passa a ofendê-lo e agredi-lo
verbalmente (desejava uma reação do rapaz, para ter “justificativa”
para poder dar porrada?): “agita, seu arrombado” “seu pau no
cu” “cala essa porra dessa boca, quem tá errado aqui é você,
seu bosta, não serve para porra nenhuma” “seu merda do caralho”
“taca pedra, seu pau no cu” “você não trabalha porra nenhuma,
você é vagabundo, que fica aqui andando de skate, seu arrombado”.
E depois tenta intimidá-lo: “pode filmar, seu lixo, tem filmagem
de você tacando pedra” (a reportagem do Estadão perguntou pela
tal filmagem e não foi respondida).
A
ação do leão-de-chácara, particularmente (mas a da GCM não está
muito aquém), não apenas não corresponde ao que se espera de um
agente de segurança pública, como ele age mais como um pit-boy,
desses macho-alfa que arranjam brigas em boates, espancam
homossexuais, e que parece que a única possibilidade de
ressocialização é via castração química. Seu amadorismo é tão
grande que dá vontade de duvidar que seja da corporação, parece
antes um desses homens de bem que, iluminados e estimulados por
âncoras fascistóides como Datena, resolvem fazer uso do que possuem
de bom (a força) para ajudar a guarda civil contra os “lixos
sociais”. Seu discurso é do fascistismo presente na Grande
Imprensa brasileira: a negação do Outro, acusado de lixo (e o que
se faz com lixo? joga-se fora ou queima-se) e mandado que se cale; a
lógica do ser humano ter que ser útil: “não serve para porra
nenhuma (...), não trabalha porra nenhuma”; o agir em nome da
defesa da ordem. Arbeit macht frei era também um slogan de
defesa da ordem, de uma ética do trabalho, de uma limpeza social.
Mas
seria ingenuidade minha acreditar que as forças de segurança do
país – não falo aqui da chamada banda podre – não estejam
imbuídas, da cúpula à base, dessa mentalidade de inspiração
fascista, estimulada por toda uma parcela da população e pelos
donos do poder – afinal, para estes, o discurso do medo é
altamente lucrativo. Se parte da população critica os “excessos”,
é porque ela não vê problema nos motivos da ação: apadrinham a
dispersão de vagabundos, a prisão de baderneiros, o “rigor” da
polícia contra o crime – sendo que rigor, aqui, não raro, é
extrapolação da lei. Está aí para provar a votação enorme do
jagunço da PM, que se orgulha de, dentre as suas 36 mortes, não ter
matado nenhum “inocente” [http://j.mp/RUtYDP]. Apadrinham, como
os moradores do entorno da Roosevelt, a limpeza das praças dos
elementos indesejados – só falta alegarem motivo de saúde
pública.
A
ocupação ou esvaziamento da praça Roosevelt (neste caso, mas não
apenas), as formas de ocupação dos espaços públicos, isso está
aberto a discussões. Um acordo sobre essas questões deve ser
buscado pelo debate, ainda que dificilmente a decisão tomada não
desagrade um lado, por mais que se discuta – isso não exime,
contudo, de ser discutida. A GCM entra no meio dessa discussão,
fazendo o trabalho sujo para a prefeitura – que encampa interesses
econômicos na região – e para os cidadãos de bem que vivem no
entorno na praça – esses que trabalham com amor e orgulho, não
usam drogas e, logo, têm o direito a classificar quem presta quem
não. Por isso a guarda não apenas obriga que se cumpra a ordem, mas
precisa discutir: a ordem não está tão bem estabelecida para que
seja simplesmente cumprida, de forma que a ação da GCM está aberta
à disputa política.
Como
estão abertas à disputa as funções e as ações da polícia e
demais forças de segurança. Assim, cabe a pergunta: quem precisa de
polícia? Dessa polícia, não são os moradores das periferias, ao
certo; não é a parte mais carente e mais marginal da população –
e se pensassem um pouco, tampouco seria a classe média e os
moradores do centro e dos bairros nobres. Se a Grande Imprensa evita
esse debate, ou tenta desqualificar todos que o põem, é porque seus
interesses e dos seus patrocinadores estão sendo atendidos com essa
polícia/política. E tais interesses não têm nenhuma afinidade com
a democracia – a não ser que formos pensar numa democracia
hayekiana, mas não é essa que está em nossa Carta Magna.
Se
Gilberto Freire conseguiu construir o mito da democracia racial, a
partir da proximidade da casa grande e da senzala, nosso
republicanismo sempre agiu na direção contrária, de separar o
máximo a casa grande da senzala: da reforma urbana no Rio de
Janeiro, no início do século, ao plano posto em prática em Palmas,
no Tocantins; a delimitação de bairros para ricos e para pobres, de
áreas permitidas para ricos e para pobres. Casa grande e senzala só
voltam a se juntar nos espaços privados de uso público, shopping
centers e condominíos fechados, em que todos têm seu papel muito
bem delimitado e vigilância constante – garantidora de que todos
estão cumprindo seu script adequadamente.
A
revitalização da praça Roosevelt é uma mostra de que a ordem é
uma ordem a serviço de um grupo bem específico – não é em favor
da cidade, nem da grande massa dos seus moradores. A se acreditar na
versão oficial, a praça passou por um processo de decadência nas
décadas de 1980, 1990, e teve uma revivescência com a instalação
de diversos grupos teatrais. Aproveitando que a praça já estava
sendo novamente ocupada, prefeitura interveio para “revitalizá-la”.
O resultado é sabido: a especulação imobiliária tem expulsado
muitos desses grupos que foram responsáveis pela reversão da
decadência da praça. Não houve, por parte do poder público,
tentativa substancial de evitar que isso acontecesse, para manter a
praça como um dos centros de cultura da cidade.
Esqueceram,
contudo, de combinar com os russos. Uma praça de cimento e escadas
no centro de uma cidade carente de espaços públicos é um convite
aos skatistas – que vem de todas as partes da cidade, quer seja das
áreas ricas, quer das pobres. Ou seja, a senzala invade a casa
grande, numa situação sem o controle dos shopping centers e clubes
de bacanas. A princípio, não seria nenhum problema: no máximo
regulando um pouco seu uso, ao reservar áreas para o skate, áreas
para os cachorrinhos (para os pedestres, esses fracassados sociais,
não houve sequer direito a calçadas no entorno da praça), e a
convivência poderia se dar de maneira pacífica – o que não quer
dizer que não haja problemas e conflitos. Mas ao tentar impedir a
prática de skate justificando o barulho causado pelas pranchas, os
moradores do entorno mostram que seu interesse não é o conviver com
o outro, não é o do aprendizado com a prática da alteridade: é o
de fazer da praça um versão a céu aberto da sua vida classe média
uniforme e precária.
Vamos
ver como age o novo governo. Via de regra o PT é mais sensível aos
direitos humanos, às demandas sociais e disposto ao diálogo (ainda
que isso, muitas vezes, sirva para encobrir a ausência de políticas
efetivas para que se atenda as reivindicações dos mais pobres). Tem
agora um exemplo prático de consertar no quotidiano da cidade o que
seu partido institui no plano federal, tanto nos excessos da GCM como
na sua própria ação ordinária, e mostrar que lado Haddad está
disposto a agradar e a desagradar no curto prazo. A praça Roosevelt
pode se tornar um caso emblemático em favor de uma mentalidade mais
democrática em São Paulo. Ou se tornar outro caso em que o governo
age em favor dos interesses de quem tem mais.
São
Paulo, 24 de janeiro de 2013.
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