Na foto, José Rainha, ao lado o sugestivo título A esquerda delirante. Eu deveria ter parado aí, mas minha veia masoquista falou mais alto. Dizia o subtítulo: Para salvar os miseráveis dos desconfortos do capitalismo, o líder sem-terra José Rainha ameaça criar no interior de São Paulo um acampamento gigantesco como o de Canudos, instalado há um século por Antônio Conselheiro no sertão da Bahia.... Digamos que fiquei levemente emputecido em ler tal manchete, e não fui o único. Como notou minha namorada, curiosa a forma como para a Veja morrer de fome, diarréia e outros problemas afins, trata-se apenas de desconfortos do capitalismo. Pior ainda é pensar que em pleno século XXI, em São Paulo, o estado mais rico da nação, se pense em montar uma nova Canudos (aceitando a manchete da Veja sem levar em conta sua veracidade). Será que o Brasil não conseguiu evoluir um centímetro sequer? Se tomarmos como base a reportagem da Veja, não.
Nada parcial, a reportagem da Veja nem bem começa e dá-se logo a principal característica do beato Rainha(título da reportagem): 42 anos, um dos fundadores do MST e que parece em plena forma depois de passar quatro meses fugindo da polícia e outros dois na cadeia, acusado de formação de quadrilha.Como a reportagem deixará mais claro conforme se desenvolve trata-se do fundador de um movimento reacionário (é rir pra não chorar), contraventor penal em dobro (primeiro por formação de quadrilha, depois por fugir da polícia). Esse bandido (Veja não chamou-o explicitamente assim) estaria obcecado em reviver Canudos o mais aguerrido e sangrento movimento de resistência à proclamação da República, como se as milhares de pessoas que se reuniam em Canudos tinham em comum o desejo de derrubar a República, e não fugir da fome e da exploração senhorial, e como se violentos fossem os miseráveis e não as tropas do governo enviadas para exterminá-los. Diz ainda sobre Canudos que foi um movimento que à luz da melhor sociologia, mesmo a marxista, foi apenas utópico, monarquista e, há mais de um século, já era anacrônico com sua pregação da volta à vida pastoril, algo que é difícil de discordar da Veja, afinal num mundo de máquinas e revoluções é anacrônico um país em que há necessidade de um movimento que lute pelo direito mínimo (o de sobrevivência) dos mais pobres. E pelo jeito o anacronismo brasileiro apenas aumentou nesses 106 anos que separam Conselheiro do agitador profissional, que nunca trabalhou no campoe cujas mãos continuam sem calos e as unhas estão sempre limpas, ou seja, do baderneiro e hipócrita José Rainha.
Achei interessante a parte em que Veja comenta que hoje em dia, ninguém discute a necessidade de uma reforma agrária no Brasil, um belo argumento retórico de quem há bem pouco tempo dizia que reforma agrária não devia ser feita porque os EUA não fizeram (sic) e são o país mais desenvolvido do mundo, mas enfim, essa frase servia para introduzir uma outra, ainda mais divertida: Não se podem admitir, no entanto, as invasões e depredações da propriedade privada, como fazem muitas vezes os membros do MST, em flagrante desrespeito às leis. Como trabalham em prol de multidões de pobres, os líderes desses movimentos parecem acreditar que estão acima da lei. Qualquer solução duradoura para a questão agrária brasileira começa por manter as ações do MST dentro dos limites da legalidade. Flagrante desrespeito às leis. E as terras pegas do estado, os impostos não pagos, as guerrilhas de jagunços formadas pelos ruralistas, como o PCR? Isso é legal? Parecem acreditar que estão acima da lei. A UDR, por ter bancada no congresso não precisa acreditar... E quanto a manter as ações do MST dentro dos limites da legalidade, isso é piada de mau gosto: primeiro porque todas as ações do MST serão ilegais, visto que o movimento não tem foR$ça suficiente pra eleger uma bancada de uma dúzia de deputados; segundo que quem é mais forte, ou seja, os ruralistas é que deveriam dar o exemplo de respeito às leis, desarmando milícias, parando de usar máquinas de prefeitura para barrar o livre trânsito do MST e coisas afins.
Os repórteres Eduardo Salgado e Leandra Peres também sabem ser dogmáticos quando não possuem o mais fraco argumento, como quando afirmam que: experiências revolucionárias no campo no mundo moderno não produzem explosões como no tempo de Guevara e Fidel Castro. Produzem apenas mais atraso. Só esqueceram de explicar porque produzem atraso ou mostrar exemplos de atraso causados por revoluções no campo ocorridas na década de noventa. E bem no final da reportagem os repórteres mostram o quando não conhecem o MST, diz eles que míseros 3% [dos assentados] têm parcerias com agroindústrias. Chegou a hora de fazer uma reforma no MST. Talvez esses míseros 3%seja explicado pelo fato da ideologia do MST pregar a cooperação e não a competição e o lucro a qualquer custo.
O MST se reforma a todo instante, e é por isso que incomoda tanto as elites, que burras e cegas não percebem a importância de um movimento de tal envergadura. Quantos da multidão de deserdadosatraídos pela promessa do MST de um pedaço de chão pra plantar e um prato de comida pra comer não estariam servindo de soldados do tráfico de drogas, ou como simples assaltantes de esquina, quantos não estariam apenas enchendo a cara com cachaça de segunda pra esquecer a vida de fracassos e sem sonhos? E quanto tempo será que vai demorar pra elite perceber que se ela continuar atacando da forma que ataca movimentos sociais como o MST logo logo o tráfico de drogas pode descobri-los, armá-los e se isso acontecer, a Colômbia, com FARC e ALN será uma brincadeirinha pueril. Condições pra que o Brasil se torne um inferno existem, e é melhor parar de brincar de cabra cega.
Campinas, 16 de junho de 2003