domingo, 22 de setembro de 2024

A onda de diagnóstico de autismo e nosso modo de produção

Conversava com uma amiga sobre a onda de diagnósticos de Transtorno de Espectro Autista que tem varrido seu entorno - e eu sou o mais recente a ser enquadrado nele, cuja suspeita surgiu enquanto estava de licença de saúde por burnout. Questionava se os diagnósticos seriam válidos mesmo, ou apenas atendiam a interesses da indústria farmacêutica e das esferas a quem é útil patologizar o quotidiano. 

Sem negar suas questões, mas ao mesmo tempo pressupondo que boa parte desses diagnósticos correspondam à realidade, há uma certa coerência se pensarmos em termos psicossociológicos.

A onda de diagnósticos de autismo lembra a de depressão (sei que são coisas diferentes, e autismo não pode ser enquadrado como doença), nos anos 1990, que foi sendo normalizada até hoje aceitarmos que a depressão na nossa sociedade é algo normal e quase inevitável. Lembra a onda de diagnóstico de TDAH, nos anos 2000, também normalizado até o ponto de hoje ser parte da paisagem - devidamente medicado, é claro.

Essas ondas de diagnósticos aparentam ser mais que um modismo, antes sintomas do sofrimento social que desponta em um certo momento - fim das utopias, invasão das telas no nosso quotidiano, gestão ultra-liberal do “sofrimento produtivo”. Quando um grande número de pessoas que estavam aptas a funcionar no sistema passam a sucumbir, é preciso encontrar um diagnóstico que individualize o problema e autorize dar a essas pessoas um desconto para seguirem sendo produtivas, mesmo que com uma eficiência um pouco menor, com pequenos percalços no caminho - uma forma de não desperdiçar tanto dinheiro investido em “capital humano” -, ao mesmo tempo que interdita a discussão social sobre a origem desses males. Em termos mais populares: antes da pessoa espanar diante das novas exigências, é melhor dar uma colher de chá - desde que junto ela carregue o estigma e não questione o modo de produção. Para a pessoa acaba sendo vantajoso também: uma forma de não ser excluída da sociabilidade geral, de se manter inserida na sociedade do espetáculo.

Ainda assim, restam as perguntas postas por minha amiga e algumas outras: era mesmo necessário patologizar (mais) essa diferença, que por muito tempo era simplesmente aceita como peculiaridades da pessoa, e em outros tempos pouco afetava seu dia a dia? Não seria menos custoso - em termos individuais e sociais - uma existência com menos pressão e mais aberta a devires não-normatizados? Quem lucra com essa inclusão-excludente do agora diferente e a patologização de comportamentos?

As atitudes frente a essas questões não se dão de forma individual: como pessoa, o que nos interessa, antes de tudo, é sobreviver e ter alguma qualidade de vida - é fácil fazer a crítica quando o sofrimento se abate sobre o outro. Entretanto, junto com o alívio que um diagnóstico pode trazer (alívio contraditório, é bom dizer, por conta do estigma), não podemos deixar de questionar essa sociedade que nos empurra para isso - a saúde mental não está desvinculada do nosso estilo de vida, ela é produzida pelo nosso modo de produção. Quantas pessoas, as ditas “normais”, estão hoje felizes e satisfeitas? Como dizia Marshall Sahlins, em Esperando Foucault, ainda: “um povo que concebe a vida exclusivamente como busca da felicidade só pode ser cronicamente infeliz”.


22 de setembro de 2024.

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