"Tia, ele que é o pai do Vini?"
Na esperança do menino de conhecer, finalmente, o pai do amigo, me vi alçado a um posto que não me cabe.
"Não, ele é meu namorado", foi a resposta recebida - não chamamos de namoro nosso relacionamento, mas para resolver logo a questão, melhor simplificar.
Era a festa de sete anos do Vinícius. Sete amigos presentes - cinco piás e duas gurias (como eu dizia quando era criança), todos, exceção de um, dois anos mais velho, na mesma faixa etária. Festa de criança me traz à mente a crônica homônima de Luis Fernando Veríssimo, com a angelical baixinha terrorista, o moleque morto de fome, e o aniversariante coberto de brigadeiro, fruto da derrota numa guerra de docinhos. Para a festa do Vini nem era preciso terroristas mirins ou guerra de docinhos: a casa da avó, com mil badulaques pelas paredes e sobre os móveis era naturalmente um convite ao caos, ainda mais quando primeiro presente recebido era de atirar. Eu já antevia as notas para os alvos: um para a estátua grande, cinco para as bonecas russas, dez para para as miniaturas de bumba-meu-boi e talvez dez também para boneca japonesa com cara de que quebraria antes mesmo de chegar ao chão. Para minha surpresa, à ordem de "aqui não é para mexer" ninguém contestou ou se fez de desentendido.
De qualquer modo, não foi de brigadeiro, mas não faltou guerra.
A primeira menina que chegou não queria ficar sem a mãe, só cedeu quando a segunda garota chegou. Foi esta quem chamou para a guerra: tão logo as mães foram embora ela sacou um batom roxo e anunciou seu plano de beijar os meninos. Estes, diante do perigo iminente, armaram barricadas e organizaram um contra-ataque sistemático e permanente, que fez as duas não só desistirem dos ataques beijoqueiros como bodearem com a festa (por falar em beijoqueiro, lembrei do personagem que aparecia na tevê sempre que invadia campos de futebol, quando eu era criança). Apesar da bandeira branca do lado feminino, a guerra só acabou com a intervenção materna, forçando o armistício. Com o fim dos combates, a festa mais ou menos se estabilizou: meninas no quarto, aborrecidas, dois meninos jogando bola no corredor, os outros três revezando em atividades diversas, e o aniversariante cada vez mais irritado com a bagunça.
Sem ambiente para ler, achei que poderia zapear a tevê, enquanto as crianças gritavam pela casa (desde que pulasse os canais de desenho). Ilusão. Mesmo com o som baixo, em menos de cinco minutos já havia quatro crianças ao meu redor.
"Não adianta pedir que não vou pôr em desenho", aviso de cara, durão.
"Tudo bem, tio, mas deixa no jogo do Corinthians", pede o garoto de cabelo espetado (no meu tempo seria "cabelo punk", hoje é "cabelo Neymar"). Ao ouvir Corinthians, uma das garotas se junta ao grupo. Outro menino reclama que é jogo de futsal, e futsal é chato, não é futebol de verdade. A menina responde que o que importa é o Corinthians, que ela vai com o Corinthians onde o Corinthians estiver, acompanhado de declaração de amor pelo Coringão pelo cabelo punk. Tem início uma discussão sobre futsal, futebol e Corinthians. Alguém pergunta para qual time torço, respondo e vem nova pergunta: "Que time é o Paraná?". Mantenho a calma diante de tamanha ignorância, afinal são crianças, e não fizeram a infame pergunta se Paraná é Atlético Paranaense. "Está na segunda divisão, mas este ano sobe. É um time com as cores do Homem-Aranha", respondo, pouco antes do gol do Corinthians. A discussão volta aos velhos temas: futsal, futebol e Corinthians - o Paranazinho foi esquecido. As imagens de briga de torcida, logo após pedido da mãe do Vini para desligar a tevê, são a gota d'água para eu dar cabo à babá narcótica eletrônica e devolver as crianças à energia - e o aniversariante ao mau humor. Enquanto se dispersavam, um dos meninos pergunta se sou o pai do Vini, e repito a resposta ouvida antes: "Não, sou o namorado da mãe dele".
A exemplo da crônica do Luis Fernando Veríssimo, a mãe do aniversariante não tarda a começar a dar sinais de cansaço, e resolve antecipar em quase uma hora os parabéns, vencida pelos insistentes pedidos de docinhos. Nos parabéns, ela se junta ao filho no mau humor, que não consegue apagar as velinhas, que não conseguem sequer ficar acesas, por obra do amiguinho de fôlego infinito estrategicamente estabelecido diante do bolo, do outro lado da mesa. Findo o parabéns, mesmo sem assoprar as velas, estão liberados os docinhos. Aqui começo a entender a falta de vontade de uma guerra de brigadeiros por parte das crianças: mal começam a comer, elas passam a pedir se podem guardar alguns para levar para a mãe - pelo visto acharam a mesa bastante frugal, a ponto de temerem sequer comerem o que querem, o que dizer atirar uns nos outros. A única criança a querer bolo (de chocolate) é o cabelo punk, mas ele avisa que não gosta de chocolate, e portanto se restringe ao creme do recheio.
Por falar em cabelo punk, sim, há uma pontinha de inveja deste escriba: quando criança, com um corte-neymar-então-chamado-punk, por mais que besuntasse meus cabelos de laquê, eles não ficavam nem meia hora em pé, logo retornando ao seu locus naturalis (como diriam os filósofos medievos); o garoto passou quatro horas na festa e foi embora com eles tão ríspidos e verticais quanto chegaram.
E foi o cabelo punk quem por último me perguntou se eu era o pai do Vini. Comecei a notar que o "pai do Vini" é algo como uma lenda urbana entre seus amigos, uma espécie de "o Mesmo" dos elevadores, cujo aviso está estampado em todas as portas, mas ninguém nunca viu; talvez a "Loira do Banheiro" que a certa hora ouvi eles parolando sobre.
"Não, sou o namorado da mãe dele".
Ele, diferentemente das demais crianças, não se satisfez com a resposta:
"Tá. E do Vini, você é o que?"
Uma boa pergunta... Lembrei da crônica do Antônio Prata sobre sua filha, quando ela tinha um ano, em que dizia que para ela o pai era uma espécie de ajudante VIP da mãe, muito abaixo da Peppa Pig, por exemplo, na sua escala de valor. Pensando por esse lado, sou uma espécie de pai, que fica com o Vini quando sua mãe tem compromissos e ninguém para ficar com ele; duas vezes por semana sou o responsável por tirá-lo da cama às seis da manhã e incitá-lo a comer, trocar de roupa e escovar os dentes, ao invés de ficar rodando no chão cantando (sim, Vinícius tem a pachorra de cantar às seis da madrugada!, e sei lá porque, ele adora brincar de enceradeira); sem contar que fui eu a acompanhar sua mãe nas visitas às escolas e discutir sobre qual seria a melhor opção - o pai deve desconfiar que ele frequenta a escola, uma vez até reclamou da mãe gastar dinheiro (dela) com isso. Enfim, achei que entrar nesse nível de discussão não ornava com o ambiente da festa, além de antever o risco de me meter num cipoal com mil outras perguntas, cada vez mais comprometedoras - sem falar que Vini tem sete anos, e não um, e eu sou efetivamente um assistente da sua mãe, e não seu pai.
"Sou agregado dele".
Não sei se entendeu, mas se deu por satisfeito.
Liguei novamente a tevê, para ver Fórmula 1. Desta feita, as crianças não se sentiram atraídas pela programação, para tristeza da mãe do Vini, que já se via nas cordas, com dificuldades de manter a ordem mínima para o bom andamento da festa - eu mesmo tive que intervir com dureza quando passaram a brincar de lutinha (lutinha era no meu tempo, hoje é MMA) com golpes de verdade e separar dois meninos que já começavam a se estranhar de verdade também.
Tempos modernos, crianças modernas, soluções modernas. Antes de ser nocauteada, a mãe prefere me tirar da frente do televisor e convida as crianças para assistir a uma animação. Fim das brincadeiras, das brigas, da comilança - só o cabelo punk se ressente, tenta (em vão) incomodar o filme, segue comendo e pedindo suco, parece quase uma alma penada numa casa abandonada.
Estão todos em silêncio, concentrados, quando começam a chegar os amigos da mãe - que não são os pais das crianças. Como na crônica de Veríssimo, uma nova festa parece estar começando. Os pais das crianças surgem em uma verdadeira blitzkrieg, e em menos de dez minutos a partir do horário anunciado como fim da festa, a única criança na casa é o aniversariante. Vini poderá - agora em paz - brincar com seus presentes, enquanto os adultos se aglomeram na sala para assistir a desenhos.
30 de outubro de 2017