segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Festa de criança (versão sete anos do Vinícius)

"Tia, ele que é o pai do Vini?"
Na esperança do menino de conhecer, finalmente, o pai do amigo, me vi alçado a um posto que não me cabe.
"Não, ele é meu namorado", foi a resposta recebida - não chamamos de namoro nosso relacionamento, mas para resolver logo a questão, melhor simplificar.
Era a festa de sete anos do Vinícius. Sete amigos presentes - cinco piás e duas gurias (como eu dizia quando era criança), todos, exceção de um, dois anos mais velho, na mesma faixa etária. Festa de criança me traz à mente a crônica homônima de Luis Fernando Veríssimo, com a angelical baixinha terrorista, o moleque morto de fome, e o aniversariante coberto de brigadeiro, fruto da derrota numa guerra de docinhos. Para a festa do Vini nem era preciso terroristas mirins ou guerra de docinhos: a casa da avó, com mil badulaques pelas paredes e sobre os móveis era naturalmente um convite ao caos, ainda mais quando primeiro presente recebido era de atirar. Eu já antevia as notas para os alvos: um para a estátua grande, cinco para as bonecas russas, dez para para as miniaturas de bumba-meu-boi e talvez dez também para boneca japonesa com cara de que quebraria antes mesmo de chegar ao chão. Para minha surpresa, à ordem de "aqui não é para mexer" ninguém contestou ou se fez de desentendido.
De qualquer modo, não foi de brigadeiro, mas não faltou guerra. 
A primeira menina que chegou não queria ficar sem a mãe, só cedeu quando a segunda garota chegou. Foi esta quem chamou para a guerra: tão logo as mães foram embora ela sacou um batom roxo e anunciou seu plano de beijar os meninos. Estes, diante do perigo iminente, armaram barricadas e organizaram um contra-ataque sistemático e permanente, que fez as duas não só desistirem dos ataques beijoqueiros como bodearem com a festa (por falar em beijoqueiro, lembrei do personagem que aparecia na tevê sempre que invadia campos de futebol, quando eu era criança). Apesar da bandeira branca do lado feminino, a guerra só acabou com a intervenção materna, forçando o armistício. Com o fim dos combates, a festa mais ou menos se estabilizou: meninas no quarto, aborrecidas, dois meninos jogando bola no corredor, os outros três revezando em atividades diversas, e o aniversariante cada vez mais irritado com a bagunça.
Sem ambiente para ler, achei que poderia zapear a tevê, enquanto as crianças gritavam pela casa (desde que pulasse os canais de desenho). Ilusão. Mesmo com o som baixo, em menos de cinco minutos já havia quatro crianças ao meu redor.
"Não adianta pedir que não vou pôr em desenho", aviso de cara, durão.
"Tudo bem, tio, mas deixa no jogo do Corinthians", pede o garoto de cabelo espetado (no meu tempo seria "cabelo punk", hoje é "cabelo Neymar"). Ao ouvir Corinthians, uma das garotas se junta ao grupo. Outro menino reclama que é jogo de futsal, e futsal é chato, não é futebol de verdade. A menina responde que o que importa é o Corinthians, que ela vai com o Corinthians onde o Corinthians estiver, acompanhado de declaração de amor pelo Coringão pelo cabelo punk. Tem início uma discussão sobre futsal, futebol e Corinthians. Alguém pergunta para qual time torço, respondo e vem nova pergunta: "Que time é o Paraná?". Mantenho a calma diante de tamanha ignorância, afinal são crianças, e não fizeram a infame pergunta se Paraná é Atlético Paranaense. "Está na segunda divisão, mas este ano sobe. É um time com as cores do Homem-Aranha", respondo, pouco antes do gol do Corinthians. A discussão volta aos velhos temas: futsal, futebol e Corinthians - o Paranazinho foi esquecido. As imagens de briga de torcida, logo após pedido da mãe do Vini para desligar a tevê, são a gota d'água para eu dar cabo à babá narcótica eletrônica e devolver as crianças à energia - e o aniversariante ao mau humor. Enquanto se dispersavam, um dos meninos pergunta se sou o pai do Vini, e repito a resposta ouvida antes: "Não, sou o namorado da mãe dele".
A exemplo da crônica do Luis Fernando Veríssimo, a mãe do aniversariante não tarda a começar a dar sinais de cansaço, e resolve antecipar em quase uma hora os parabéns, vencida pelos insistentes pedidos de docinhos. Nos parabéns, ela se junta ao filho no mau humor, que não consegue apagar as velinhas, que não conseguem sequer ficar acesas, por obra do amiguinho de fôlego infinito estrategicamente estabelecido diante do bolo, do outro lado da mesa. Findo o parabéns, mesmo sem assoprar as velas, estão liberados os docinhos. Aqui começo a entender a falta de vontade de uma guerra de brigadeiros por parte das crianças: mal começam a comer, elas passam a pedir se podem guardar alguns para levar para a mãe - pelo visto acharam a mesa bastante frugal, a ponto de temerem sequer comerem o que querem, o que dizer atirar uns nos outros. A única criança a querer bolo (de chocolate) é o cabelo punk, mas ele avisa que não gosta de chocolate, e portanto se restringe ao creme do recheio.
Por falar em cabelo punk, sim, há uma pontinha de inveja deste escriba: quando criança, com um corte-neymar-então-chamado-punk, por mais que besuntasse meus cabelos de laquê, eles não ficavam nem meia hora em pé, logo retornando ao seu locus naturalis (como diriam os filósofos medievos); o garoto passou quatro horas na festa e foi embora com eles tão ríspidos e verticais quanto chegaram.
E foi o cabelo punk quem por último me perguntou se eu era o pai do Vini. Comecei a notar que o "pai do Vini" é algo como uma lenda urbana entre seus amigos, uma espécie de "o Mesmo" dos elevadores, cujo aviso está estampado em todas as portas, mas ninguém nunca viu; talvez a "Loira do Banheiro" que a certa hora ouvi eles parolando sobre.
"Não, sou o namorado da mãe dele".
Ele, diferentemente das demais crianças, não se satisfez com a resposta:
"Tá. E do Vini, você é o que?"
Uma boa pergunta... Lembrei da crônica do Antônio Prata sobre sua filha, quando ela tinha um ano, em que dizia que para ela o pai era uma espécie de ajudante VIP da mãe, muito abaixo da Peppa Pig, por exemplo, na sua escala de valor. Pensando por esse lado, sou uma espécie de pai, que fica com o Vini quando sua mãe tem compromissos e ninguém para ficar com ele; duas vezes por semana sou o responsável por tirá-lo da cama às seis da manhã e incitá-lo a comer, trocar de roupa e escovar os dentes, ao invés de ficar rodando no chão cantando (sim, Vinícius tem a pachorra de cantar às seis da madrugada!, e sei lá porque, ele adora brincar de enceradeira); sem contar que fui eu a acompanhar sua mãe nas visitas às escolas e discutir sobre qual seria a melhor opção - o pai deve desconfiar que ele frequenta a escola, uma vez até reclamou da mãe gastar dinheiro (dela) com isso. Enfim, achei que entrar nesse nível de discussão não ornava com o ambiente da festa, além de antever o risco de me meter num cipoal com mil outras perguntas, cada vez mais comprometedoras - sem falar que Vini tem sete anos, e não um, e eu sou efetivamente um assistente da sua mãe, e não seu pai.
"Sou agregado dele".
Não sei se entendeu, mas se deu por satisfeito.
Liguei novamente a tevê, para ver Fórmula 1. Desta feita, as crianças não se sentiram atraídas pela programação, para tristeza da mãe do Vini, que já se via nas cordas, com dificuldades de manter a ordem mínima para o bom andamento da festa - eu mesmo tive que intervir com dureza quando passaram a brincar de lutinha (lutinha era no meu tempo, hoje é MMA) com golpes de verdade e separar dois meninos que já começavam a se estranhar de verdade também.
Tempos modernos, crianças modernas, soluções modernas. Antes de ser nocauteada, a mãe prefere me tirar da frente do televisor e convida as crianças para assistir a uma animação. Fim das brincadeiras, das brigas, da comilança - só o cabelo punk se ressente, tenta (em vão) incomodar o filme, segue comendo e pedindo suco, parece quase uma alma penada numa casa abandonada.
Estão todos em silêncio, concentrados, quando começam a chegar os amigos da mãe - que não são os pais das crianças. Como na crônica de Veríssimo, uma nova festa parece estar começando. Os pais das crianças surgem em uma verdadeira blitzkrieg, e em menos de dez minutos a partir do horário anunciado como fim da festa, a única criança na casa é o aniversariante. Vini poderá - agora em paz - brincar com seus presentes, enquanto os adultos se aglomeram na sala para assistir a desenhos.

30 de outubro de 2017

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Conversa sobre corrupção no ponto de ônibus

No ponto de ônibus, lembro um dos motivos que fazem com que eu tanto goste de metrô: cada três minutos vem um trem. Ao meu lado, um homem puxa conversa com uma garota. O assunto: corrupção. É meio-dia, o sol está escaldante, o termômetro aponta 34ºC, não sei que horas o ônibus irá passar (estou há quase meia hora, esperarei mais dez minutos), estou de roupa escura e tenho uma entrevista para doutorado ao cabo do trajeto, de modo que não me resta outra coisa que ficar ao seu lado e ouvir a conversa. Para meu alívio ela não descamba pro discurso de ódio, fica no senso comum das pessoas de boa vontade - as que talvez foram para a Paulista bancar o pato na frente da Fiesp, genuinamente achando que se rebelavam contra a corrupção, e não contra a constituição. Não houve, nesses dez minutos de platitude, ataques à encarnação do demônio, Lula e o PT, tampouco aos golpistas que tomaram o Planalto, nem mesmo elogio aos "slavadores" da pátria de Curitiba. Apenas boa vontade e ignorância - que pode dar origem a uma soberba auto-indulgente que conservadores sabem usar muito bem.
A garota concordava e complementava, quem dava o tom era o homem. Começou a conversa falando que o grande problema do Brasil é a corrupção. Para quem se informa pela grande imprensa, e há mais de uma década ouve falar de corrupção dia sim, outro também, normal achar que esse é o maior problema destes Tristes Trópicos - afinal, o que importam hospital e escolas em estados calamitosos, polícia assassina, desindustrialização, empregos precarizados que mal garantem a subsistência, isso para não falar no trabalho escravo legitimado pelo ilegítimo ou no possível regresso do país ao mapa da fome diante dessa mal que tudo justifica, a corrupção?
Com a concordância do maior problema do Brasil, resta o diagnóstico vira-lata: não podemos só culpar os políticos, que são corruptos - todos -, e precisamos assumir que é o povo brasileiro que é corrupto, é dado a trambiques e que, por conta disso, não tem direito de reclamar dos políticos. "Sertíssimo"! Somos um povo corrupto (talvez por sermos feitos majoritariamente de uma mistura de negros e mestiços com portugueses?), então por que perturbar o sono de Temer e sua quadrilha? Esse discurso é a mão que espera a luva do não-político - ao que tudo indica, para 2018 será a vez de Luciano Huck*.
Se somos todos corruptos, como mudar? Meus colegas de espera sabem: com nosso exemplo. Sim, negando a corrupção não apenas em palavras, mas agindo eticamente, para que as crianças aprendam com nossos exemplos edificantes. O exemplo edificante dado pelo homem seria escárnio, não fosse, ao que tudo indica, sincero. Ilustrou sua, digo, nossa missão ao falar de quem vê uma moeda de cinquenta centavos que cai do bolso de alguém. "Aí a pessoa vai lá e, ao invés de devolver, pega pra ela. Isso é corrupção. Depois não adianta reclamar dos políticos". O que falar da completa falta de medidas do homem? Uma moeda de cinquenta centavos ou uma carteira com cinquenta reais, isso pode fazer a pessoa uma "corrupta", mas não vai mudar muito a vida de um homem branco de classe média - daí não ser difícil escolher em manter a orgulhosa pureza ética. Queria ver o homem diante de 51 milhões de reais em dinheiro vivo, para pegar e usar como quisesse. Ouso pensar que sua moral fraquejaria. Ele sabe, contudo, que nunca terá a oportunidade de ter sequer um milhão sendo oferecido a ele em troca de algum ilícito - fica fácil, portanto, cobrar dos políticos a mesma retidão que ele tem diante de uma moeda de cinquenta centavos de outrem que brilha convidativa aos seus olhos. A segunda falta de medida vem de uma encarnação política que o homem faz do discurso econômico de Miriam Leitão e congêneres, jornalistas de conhecimento econômico nulo e qualidades de caráter idem (se você não puder pagar). Nessa perspectiva, moralidade é uma só, em casa, no trabalho, na política, na família, na cama. E a moral que vale é a que o homem, a mulher de classe média conhece: a mais estreita moral pequeno-burguesa individualista (meritocrática, normopata, machista, homofóbica, etc, etc, etc). De tanto ouvir dos comentaristas na televisão que o país é como uma casa (infelizmente a minha não imprime dinheiro nem cobra impostos, mas isso é detalhe), por que não achar fazer política é como cuidar dos filhos? Ou de uma empresa (pequena e familiar)? O Brasil não precisava de um gerente em 2006? Não escolheu a gerentona do PAC em 2010? São Paulo não elegeu o self-made man com o dinheiro do papai, o empresário de sucesso que faz politicagem mas é gestor? E não ressente a falta do velho pai dos pobres, sempre tentando matar ou reavivar seu legado? Talvez seja a hora, então, de entrar em campo o discurso do bom pai, que vai pôr, finalmente, ordem na casa e dar a cada um aquilo que merece (e não o que dizem abstratas leis que não valem nada e que por isso não compensa seguir)? Bala ao desordeiros, prisão aos favelados, contratos aos amigos, e uma estrelinha de reconhecimento pelos bons serviços à nação para a dupla ignara que conversava ao meu lado. Um bom pai, que sabe guiar sua família, é amoroso mas sabe ser duro e firme quando precisa, para não permitir que seus filhos se desviem do bom caminho (da heteronomia). Quem sabe se esse bom pai, homem de família não seja casado com uma loira?
Como disse, no tempo de conversa, não houve sinais mais claros do fascismo que borbulha no país, não houve discurso de ódio, não houve "tem que matar", não houve um inimigo encarnador de todo o mal. Havia duas pessoas inconscientes de como funciona a política e o Estado, inconsciente de seu papel na sociedade, de suas crenças e de seus preconceitos, que tentava pensar dentro dos limites estreitos que a "sociedade do espetáculo" autoriza que se pense - um pensamento que muitas vezes nega a si mesmo, mas que aqui simplesmente não saía do lugar, por não ter lugar para aonde ir. Um acúmulo de ignorâncias, que a escola não tentou desfazer, que a universidade não se incomodou em combater, e que os donos do poder, com o trabalho agressivo realizado pela mídia e igrejas, semeam em seu rebanho, mesmo nos não fanáticos. Ou a esquerda passa a trabalhar efetivamente para desarmar essa mentalidade apta a aceitar uma ditadura de extrema-direita salvadora, ou logo não nos restará mais alternativas.

20 de outubro de 2017

* Por sinal, comentava em 2016 sobre a possibilidade Huck como candidato à presidência [http://bit.ly/cG160510]. O sucesso de Doria Jr. em 2016, ao que tudo indica, acabou por ser seu fracasso; mas o roteiro deve ter sido aprendido, tanto para as eleições como para depois. Huck pode surgir com grande força em 2018 (se houver eleições).