quinta-feira, 6 de novembro de 2003

O autoritarismo não acabou

Estava eu hoje com minha namorada na cantina do Núcleo de Estudos de População (NEPO) da Unicamp, conversávamos, ela sentada em meus joelhos, mas nada que fosse ofensivo ou considerado atentado ao pudor. Mas eis que passa um senhor e, como se estivéssemos em pleno coito, agressivamente se dirige a nós, pergunta de onde somos, e exige com que ela saia do meu colo,
pois "isto é uma instituição de pesquisa séria", argumento - se é que pode ser chamado de argumento - totalmente furado, afinal aquilo era um espaço público e não fazíamos nada de mais. Mas ele, claro, não se contentou com esse "argumento", e logo usou um que pode ser chamado de argumento de autoridade: "sou diretor deste núcleo". Uma clara demonstração de autoridade, em um assunto que não lhe cabia respeito. Não pudemos fazer nada além de aceitar a ordem, pois minha namorada trabalha lá, mas ficou na boca uma boa porção de revolta. Exemplos parecidos têm às pencas nas escolas e universidades - eu mesmo já tive alguns problemas ao questionar essa "autoridade" - e, creio eu, em qualquer emprego. Enfim, qualquer lugar em que haja uma hierarquia,
subordinados.
Parênteses: não que eu ache ruim autoridade, mas há uma grande diferença entre autoridade e autoritarismo: o primeiro se conquista, o segundo se impõe.
Mas enfim, estou reclamando de barriga cheia. Picuinha de pequeno-burguês, coisa pra revoltinha de uma crônica e fim. Entretanto, se é assim numa universidade pública, onde está boa parte da elite nacional, imagine como não é com os menos favorecidos.
Uma música do grupo O Rappa dá uma boa mostra disso: "A viatura foi chegando devagar, e de repente, de repente, resolveu me parar. Um dos guardas saiu de lá de dentro já dizendo 'aí cumpadi, 'ce se perdeu, se eu tiver que procurar 'ce tá fudido, acho melhor 'ce ir deixando este flagrante comigo'. No início eram três, depois vieram mais quatro, agora eram sete os samurais da extorsão, vasculhando meu carro, metendo a mão no meu bolso, cheirando a minha mão. De geração em geração todos no bairro já
conhecem essa lição. E eu ainda tentando argumentar mas tapa na cara pra me desmoralizar, tapa na cara pra mostrar quem é que manda".
Por que estou falando tudo isso? Já ocorreram em São Paulo, segundo li, quase 30 ações contra policiais. Sem dúvida, obra do crime organizado com o intuito de amedrontar o Estado. As classes abastadas se apavoram com isso, acham uma calamidade, mas muito provavelmente o pessoal de Capão Redondo, Diadema, devem estar se sentindo, de certa forma, justiçadas. Estão errados? De jeito nenhum. Quantos não comemorariam caso o general Médici fosse assassinado?
Autoritarismo só gera ódio e revolta, e a culpa (não tenho receio em apontar um culpado) é de quem é autoritário.

Campinas, 06 de novembro de 2003

domingo, 2 de novembro de 2003

Falta espelho

Falei ontem do provérbio chinês que dizia que devemos dar três voltas ao redor de nossa casa antes de sairmos para consertar o mundo. Queria falar do Lula, mas acabei saindo do caminho. Não tem problema, falo hoje. Não sei se o Lula conhecesse esse provérbio, creio que não. Se conhecesse talvez não falasse tanta besteira como é de seu costume. Poderíamos mudar o provérbio, no caso de Lula, para "Lula, dê três voltas ao redor de sua casa antes de falar qualquer coisa."
O bate boca entre Lula e FHC é um espetáculo deplorável, que só mostra o tamanho do ego de cada um, e o quanto falta um mínimo de auto-crítica para os dois.
FHC, que afundou o país no seu populismo cambial, na sua privataria (como diz Elio Gaspari), tinha mais é que ficar calado no seu canto, ainda mais se fosse para criticar o atual governo, que não faz absolutamente nada diferente do que ele fez.
Agora foi a vez de Lula chamar seu antecessores de covardes. Pode até ser que ele tenha razão, não entremos nessa questão, mas o fato é que Lula e sua tropa de choque não têm envergadura moral alguma para falar isso. Afinal, quem tem mostrado covardia além da conta é ele e seu governo. Covardia perante os mercados, perante o FMI, aumentando de livre e espontânea vontade o sofrimento do povo brasileiro para satisfazê-los, ignorando o povo que votou por mudança, por empregos.
Covardia perante a Monsanto e os ruralistas, contemplando um ato ilegal (o plantio de soja transgênica na safra passada), e afrontando novamente a constituição para esta safra.
Covardia perante o lobby das cervejarias, das empresas de publicidade e das emissoras de tv, permitindo que o dinheiro falasse mais alto que a saúde pública, ao não desautorizar a propaganda de uma droga.
Mas o governo Lula não é só covardia, ele também é, segundo ele próprio, coragem, mas poderíamos dizer que é prevalecido.
Com os aposentados, de quem o governo não teve medo, e cortou as aposentadorias.
Com os sem-terra, para quem a reforma agrária está praticamente parada. Com a população carente, com a diminuição da já minguada verba para a saúde.
Enfim, enquanto com os poderosos Lula mostrou-se serviente, com todos aqueles que não têm força suficiente para peitar o governo, Lula mostrou coragem, coragem que FHC também demonstrou. Mas covarde não deixa de ser uma bela definição dos presidentes do Brasil, Lula inclusive.

Campinas, 02 de novembro de 2003