No caderno Mais! do jornal Folha de São Paulo do dia 5 de setembro há um interessante texto do filósofo da USP e do CEBRAP José Arthur Giannotti, intitulado “Uma outra sociabilidade”, em que o autor trata da relativização do que é legal e legítimo na sociedade atual. Um tema deveras muito interessante, abordado de maneira competente, mas que, a meu ver, desliza em alguns aspectos, os quais pretendo levantar aqui.
O exemplo que ele usa para ilustrar seu artigo é o de uma mulher que após interrogar às pessoas que caminhavam em certa praça se usariam a prancha de abdominais deita-se nela para ler um livro. Segundo Giannotti a mulher desrespeitou uma regra social ao deitar-se na prancha, visto que tal fim não lhe era propício. Mas ao haver questionado se alguém usaria a prancha, e sendo a resposta negativa, seu ato se tornaria (na visão da mulher) legítimo, pois não se sobrepôs à vontade de ninguém - se alguém pedisse a prancha para fazer abdominais a mulher cederia.
Giannotti se questiona: após a consulta a mulher adquire o direito (os termos são de minha responsabilidade) de deitar-se na prancha para ler? Apesar de ilegal, seria um ato legítimo? E se alguém quisesse usá-la para o fim destinado mas tivesse vergonha de pedi-lo? Continuaria sendo legítimo? Fala o filósofo: “No entanto, diante da pergunta a respeito de como seu ato se determinaria diante dessa dualidade, é quase certo que a moça responderia que não agiu legalmente, mas em vista de uma legitimidade que, invocada, não se apoiaria numa lei moral universal, mas numa universalização e validação de uma situação particular. Note-se que não reivindicaria para si uma exceção, que vem a ser, nos ensina Kant, fonte de imoralidade”.
Como o próprio autor fala, essa particularização das leis cria uma multiplicidade de alternativas no mundo que não cabe em um código de leis, e inclusive vai contra o princípio de universalidade deste, já que não há um paradigma a ser seguido, a não ser o de que cada caso é um caso único que deve ser resolvido conforme suas variáveis. Agir assim não é imoral, mas tampouco moral. Exemplos mais práticos e visíveis que seguem essa linha “relativista” enumeradas por Giannotti: a pirataria de produtos culturais, ONGs como o Greenpeace, o MST, e o caso de contrato informal de trabalho. Este último caso foi discorrido melhor, e é onde encontramos alguns equívocos que acabam levando o autor a uma visão parcial do problema por ele mesmo posto. Diz ele: “Quando o empregador e o empregado realizam um contrato informal de trabalho, a despeito de reconhecerem as leis trabalhistas, simplesmente não se vêem como exceção à regra, como se ela não devesse lhes ser aplicada. É por uma necessidade social que agem desse modo, pois, de outro, não poderiam sobreviver socialmente (...). Quando firmam um contrato de trabalho sem o amparo da lei trabalhista, não a renegam, mas, igualmente, não retornam ao nível da insociabilidade completa, da luta de um contra todos ou ainda do trabalho escravo” (grifos meus). Que o empregado aceite um contrato de trabalho à margem das leis trabalhistas entende-se perfeitamente o porquê disso ser feito por necessidade social, mas não compreendo a necessidade social do empregador agir assim. Há exceções, é claro, micro-empresas que possuem um ou dois funcionários e que não têm condições de bancar os encargos tributários; mas a regra é que o empregador age assim para aumentar seus lucros, recaindo, muitas vezes, no trabalho escravo, como no caso dos bolivianos ilegais em São Paulo noticiado há pouco, ou como ilustra o filme inglês “Coisas belas e sujas” (Dirty pretty things), de Stephen Frears, na cena em que a imigrante turca ilegal (interpretada por Audrey Tautou), super-explorada no trabalho, é obrigada a fazer sexo oral todo dia no dono da fábrica para que não perca o emprego nem seja dedurada à polícia.
Giannotti não percebe, mas há uma certa relação entre o pensamento político de Maquiavel e esse adaptar-se a cada situação (que ocorre dentro de certos parâmetros, é sempre bom frisar). Isso se tomarmos por política todo o ato em sociedade, e não simplesmente as ações restritas aos órgãos oficiais designados para tanto. Para o pensador florentino do século XVI na política (a política de estado, oficial, visível, a do príncipe) há certos parâmetros que norteiam as ações do governante. Norteiam para onde devem convergir as ações, mas não quais são essas ações: pode-se agir de formas opostas em situações equivalentes, e assim deve ser, já que o objetivo da política é atingir certos fins (daqui surge a equivocada máxima “os fins justificam os meios” e a idéia de que Maquiavel não possui ética). Claro que no caso da prancha de abdominal (ou no das ONGs) não se trata de razão de estado, mas de individualismo burguês, presente na obra do citado Kant, crescente após a segunda guerra mundial e hipertrofiado com o neoliberalismo - o que faz com que as idéias de Maquiavel para o estado não sejam transpostas para a sociedade civil sem as devidas adaptações. No caso da prancha de abdominal há uma ética de respeito ao direito do próximo que está além da lei formal, visto que a lei pode ser relativizada caso não interfira no direito do próximo, um caso particular que se sobrepõe ao universal: “Reconhece a validade da norma moral e jurídica, mas a aplica reformulada para que valha num universo particularizado, no contexto de pessoas sempre negociando entre si”. Como dito, a prática maquiaveliana de “cada caso um caso”, junto ao individualismo liberal da negociação entre sujeitos.
É claro que essa forma de agir da sociedade civil frente às leis estatais tem seus pontos positivos e negativos. Giannotti preferiu se deter em um ponto específico - não sei se por não considerar as demais conseqüências dessa outra sociabilidade menores, ou o que - a que chamou de “zona de violência difusa”. “Esse tipo de raciocinar e agir aumenta a incerteza, faz com que o medo e a violência espreitem nas zonas de interferência de cada esfera particular”. Giannotti vê isso negativamente, responsável por criar uma zona de violência difusa, que está se interiorizando, e a qual não sabemos ainda controlar (se alguém mais esquentado resolver dar uns sopapos porque a moça está lendo no lugar em que ele queria fazer abdominal, como reagir?). Na minha visão o termo “zona de violência difusa” poderia ser substituída por “zona de conflito difuso”. Essa zona, a princípio, tende a ser benéfica, desde que o conflito não decaia na violência.
Retomo Maquiavel e Nietzsche, autores que tem o conflito, o combate, como inerente à vida social-humana, em vista da própria dinamicidade e complexidade do mundo e das pessoas. Depois do enfraquecimento da utopia marxista da sociedade sem conflitos, vemos ruir a utopia dos conservadores de uma ordem pacífica e inviolável, graças aos ataques terroristas (a imagem de um avião bomba deitando abaixo um edifício é ilustrativa do agir terrorista), e a essa nova sociabilidade, que age como cupim nas estruturas do edifício.
Outro ponto que considero positivo dessa sociabilidade é o fato da sociedade civil passar a agir de forma mais efetiva, reivindicando direitos, agindo, se preciso, em oposição ao Estado: “Percebe-se que esse tipo de sociabilidade tende a ver a lei oriunda do contrato originário como necessidade vindo de fora, imposição”. Esses novos direitos adquiridos tendem a contemplar mais a sociedade civil e sua diversidade, visto que nasceram realmente dela, por uma pressão popular organizada.
Entretanto essa particularização da lei tem também seus contrapontos maléficos. Numa sociedade marcada pela divisão de classes e por poderes muito díspares entre estas, disparidades potencializadas pela globalização (falei sobre isso na crônica “Capital 1 x 0 Trabalhadores”), a possibilidade de capital e trabalho negociarem fora do guarda-chuva da lei torna os trabalhadores reféns do capital, compelidos a aceitarem tudo o que lhes for imposto, visto que a lei que diminuía essa diferença de poder entre as partes é reconhecida mas não aplicada. No Brasil temos como exemplo o projeto de flexibilização das leis trabalhistas.
É muito interessante a questão da nova sociabilidade e da zona de violência difusa ou zona de conflito levantada pelo filósofo, e ela merece ser melhor observada e trabalhada. Entretanto, creio ser um tanto quixotesco se pautar tanto em Kant para tratar dessa questão, como fez Giannotti. A utilização da Crítica da Razão Prática como livro acessório na abordagem do tema é importante, mas a ausência de um olhar mais acurado da relação de forças entre as classes sociais e os atores sociais acaba por levar a análise a um plano distante da vida quotidiana, chegando a conclusões que não condizem com o que temos observado no mundo atual.
Pato Branco, 08 de setembro de 2004
O exemplo que ele usa para ilustrar seu artigo é o de uma mulher que após interrogar às pessoas que caminhavam em certa praça se usariam a prancha de abdominais deita-se nela para ler um livro. Segundo Giannotti a mulher desrespeitou uma regra social ao deitar-se na prancha, visto que tal fim não lhe era propício. Mas ao haver questionado se alguém usaria a prancha, e sendo a resposta negativa, seu ato se tornaria (na visão da mulher) legítimo, pois não se sobrepôs à vontade de ninguém - se alguém pedisse a prancha para fazer abdominais a mulher cederia.
Giannotti se questiona: após a consulta a mulher adquire o direito (os termos são de minha responsabilidade) de deitar-se na prancha para ler? Apesar de ilegal, seria um ato legítimo? E se alguém quisesse usá-la para o fim destinado mas tivesse vergonha de pedi-lo? Continuaria sendo legítimo? Fala o filósofo: “No entanto, diante da pergunta a respeito de como seu ato se determinaria diante dessa dualidade, é quase certo que a moça responderia que não agiu legalmente, mas em vista de uma legitimidade que, invocada, não se apoiaria numa lei moral universal, mas numa universalização e validação de uma situação particular. Note-se que não reivindicaria para si uma exceção, que vem a ser, nos ensina Kant, fonte de imoralidade”.
Como o próprio autor fala, essa particularização das leis cria uma multiplicidade de alternativas no mundo que não cabe em um código de leis, e inclusive vai contra o princípio de universalidade deste, já que não há um paradigma a ser seguido, a não ser o de que cada caso é um caso único que deve ser resolvido conforme suas variáveis. Agir assim não é imoral, mas tampouco moral. Exemplos mais práticos e visíveis que seguem essa linha “relativista” enumeradas por Giannotti: a pirataria de produtos culturais, ONGs como o Greenpeace, o MST, e o caso de contrato informal de trabalho. Este último caso foi discorrido melhor, e é onde encontramos alguns equívocos que acabam levando o autor a uma visão parcial do problema por ele mesmo posto. Diz ele: “Quando o empregador e o empregado realizam um contrato informal de trabalho, a despeito de reconhecerem as leis trabalhistas, simplesmente não se vêem como exceção à regra, como se ela não devesse lhes ser aplicada. É por uma necessidade social que agem desse modo, pois, de outro, não poderiam sobreviver socialmente (...). Quando firmam um contrato de trabalho sem o amparo da lei trabalhista, não a renegam, mas, igualmente, não retornam ao nível da insociabilidade completa, da luta de um contra todos ou ainda do trabalho escravo” (grifos meus). Que o empregado aceite um contrato de trabalho à margem das leis trabalhistas entende-se perfeitamente o porquê disso ser feito por necessidade social, mas não compreendo a necessidade social do empregador agir assim. Há exceções, é claro, micro-empresas que possuem um ou dois funcionários e que não têm condições de bancar os encargos tributários; mas a regra é que o empregador age assim para aumentar seus lucros, recaindo, muitas vezes, no trabalho escravo, como no caso dos bolivianos ilegais em São Paulo noticiado há pouco, ou como ilustra o filme inglês “Coisas belas e sujas” (Dirty pretty things), de Stephen Frears, na cena em que a imigrante turca ilegal (interpretada por Audrey Tautou), super-explorada no trabalho, é obrigada a fazer sexo oral todo dia no dono da fábrica para que não perca o emprego nem seja dedurada à polícia.
Giannotti não percebe, mas há uma certa relação entre o pensamento político de Maquiavel e esse adaptar-se a cada situação (que ocorre dentro de certos parâmetros, é sempre bom frisar). Isso se tomarmos por política todo o ato em sociedade, e não simplesmente as ações restritas aos órgãos oficiais designados para tanto. Para o pensador florentino do século XVI na política (a política de estado, oficial, visível, a do príncipe) há certos parâmetros que norteiam as ações do governante. Norteiam para onde devem convergir as ações, mas não quais são essas ações: pode-se agir de formas opostas em situações equivalentes, e assim deve ser, já que o objetivo da política é atingir certos fins (daqui surge a equivocada máxima “os fins justificam os meios” e a idéia de que Maquiavel não possui ética). Claro que no caso da prancha de abdominal (ou no das ONGs) não se trata de razão de estado, mas de individualismo burguês, presente na obra do citado Kant, crescente após a segunda guerra mundial e hipertrofiado com o neoliberalismo - o que faz com que as idéias de Maquiavel para o estado não sejam transpostas para a sociedade civil sem as devidas adaptações. No caso da prancha de abdominal há uma ética de respeito ao direito do próximo que está além da lei formal, visto que a lei pode ser relativizada caso não interfira no direito do próximo, um caso particular que se sobrepõe ao universal: “Reconhece a validade da norma moral e jurídica, mas a aplica reformulada para que valha num universo particularizado, no contexto de pessoas sempre negociando entre si”. Como dito, a prática maquiaveliana de “cada caso um caso”, junto ao individualismo liberal da negociação entre sujeitos.
É claro que essa forma de agir da sociedade civil frente às leis estatais tem seus pontos positivos e negativos. Giannotti preferiu se deter em um ponto específico - não sei se por não considerar as demais conseqüências dessa outra sociabilidade menores, ou o que - a que chamou de “zona de violência difusa”. “Esse tipo de raciocinar e agir aumenta a incerteza, faz com que o medo e a violência espreitem nas zonas de interferência de cada esfera particular”. Giannotti vê isso negativamente, responsável por criar uma zona de violência difusa, que está se interiorizando, e a qual não sabemos ainda controlar (se alguém mais esquentado resolver dar uns sopapos porque a moça está lendo no lugar em que ele queria fazer abdominal, como reagir?). Na minha visão o termo “zona de violência difusa” poderia ser substituída por “zona de conflito difuso”. Essa zona, a princípio, tende a ser benéfica, desde que o conflito não decaia na violência.
Retomo Maquiavel e Nietzsche, autores que tem o conflito, o combate, como inerente à vida social-humana, em vista da própria dinamicidade e complexidade do mundo e das pessoas. Depois do enfraquecimento da utopia marxista da sociedade sem conflitos, vemos ruir a utopia dos conservadores de uma ordem pacífica e inviolável, graças aos ataques terroristas (a imagem de um avião bomba deitando abaixo um edifício é ilustrativa do agir terrorista), e a essa nova sociabilidade, que age como cupim nas estruturas do edifício.
Outro ponto que considero positivo dessa sociabilidade é o fato da sociedade civil passar a agir de forma mais efetiva, reivindicando direitos, agindo, se preciso, em oposição ao Estado: “Percebe-se que esse tipo de sociabilidade tende a ver a lei oriunda do contrato originário como necessidade vindo de fora, imposição”. Esses novos direitos adquiridos tendem a contemplar mais a sociedade civil e sua diversidade, visto que nasceram realmente dela, por uma pressão popular organizada.
Entretanto essa particularização da lei tem também seus contrapontos maléficos. Numa sociedade marcada pela divisão de classes e por poderes muito díspares entre estas, disparidades potencializadas pela globalização (falei sobre isso na crônica “Capital 1 x 0 Trabalhadores”), a possibilidade de capital e trabalho negociarem fora do guarda-chuva da lei torna os trabalhadores reféns do capital, compelidos a aceitarem tudo o que lhes for imposto, visto que a lei que diminuía essa diferença de poder entre as partes é reconhecida mas não aplicada. No Brasil temos como exemplo o projeto de flexibilização das leis trabalhistas.
É muito interessante a questão da nova sociabilidade e da zona de violência difusa ou zona de conflito levantada pelo filósofo, e ela merece ser melhor observada e trabalhada. Entretanto, creio ser um tanto quixotesco se pautar tanto em Kant para tratar dessa questão, como fez Giannotti. A utilização da Crítica da Razão Prática como livro acessório na abordagem do tema é importante, mas a ausência de um olhar mais acurado da relação de forças entre as classes sociais e os atores sociais acaba por levar a análise a um plano distante da vida quotidiana, chegando a conclusões que não condizem com o que temos observado no mundo atual.
Pato Branco, 08 de setembro de 2004