terça-feira, 12 de agosto de 2014

Uma soneca às cinco

São quase cinco da tarde. O dia está quente e seco. Deitado de bruços, travessado na cama dos meus pais, interrompo a conversa com minha mãe para uma soneca rápida. Peço que me acorde em dez minutos, tempo suficiente para eu relaxar, dormir, sonhar - e babar, eventualmente. Tempo suficiente também para pensar no esboço desta crônica, enquanto ainda não havia dormido e os sons pareciam distantes, obrigando os ouvidos a ficarem mais aguçados. Minha mãe está sentada na cadeira de balanço que foi de seu pai, tira a pele de amendoins recém torrados. É o som mais forte que escuto, mas parece dividir o mesmo espaço que sabiás, bem-te-vis e pardais, que cantam no quintal. O barulho do tráfego ainda é pequeno e os operários das obras em volta já encerraram o bate-estaca. Diferentemente de São Paulo, não há sirenes (talvez porque em Sampa eu sempre morei próximo de hospitais?). Minha mãe assopra - não vejo, mas sei que ela se levantou e foi até a janela. Há um canto de pássaro que não reconheço - não sei se diferente ou apenas misturado em minha mente sonolenta. Logo mais aumentará o tráfego, logo mais o som predominante será o das curucacas se ajeitando no pinheiro para a noite. Logo mais a cidade irá dormir, e o som do tráfego será cada carro que passar pelas ruas desertas. Logo mais os filhotes de coruja, aninhadas no prédio ao lado, começarão seu choramingo estranho por comida. Logo mais elas pararão - como os operários, os carros, as curucacas. Logo mais pegarei o ônibus de volta para São Paulo. Logo mais. Então o que tenho são os sons se afastando, enquanto o sonho se achega - e ao longe, abafado pelo sono, pelo tráfego, pelos pássaros, pela cadeira do meu avô, ouço o sino da matriz bater as horas.

São Paulo, 12 de agosto de 2014.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

O espelho - a pequena farsa entre policiais militares e ambulantes

Vejo algo de um patético respeitoso na forma como se dão as relações entre ambulantes e policiais militares no centro de São Paulo. Parecem entrar no mesmo registro do médico que desfila de branco (quando não com estetoscópio no pescoço) no shopping, exalando divindade, ou do crente evangélico no vagão do metrô, arrogante em seu terno de corte e tecido vagabundos. (Parênteses: sem dúvida esse patético respeitoso é mais saudável para ambos os lados do que na gestão Kassab, em que guardas-civis municipais prendiam tocadores de violão (apesar que tem uns que bem mereceriam) e corriam com arma em punho atrás de perigosos vendedores de capas para celular e bichinhos de pelúcia). Aos que não são de São Paulo ou nunca presenciaram a cena: estão os ambulantes com seus devedês, capas para celular, massageadores e o que mais tiver expostos na rua; policiais militares, em geral em dupla, vêm caminhando lentamente pela calçada. Há um corre-corre entre os ambulantes, que recolhem atabalhoados os produtos, como se corressem grande perigo. Alguns caminham até a próxima esquina, outros se escondem da visão dos policiais atrás de bancas de revistas ou de ambulantes regularizados. Mal passam os homens da lei, os vendedores voltam aos seus antigos postos. É óbvio que os militares em questão não estão fazendo o papel de rapa, não querem prender ninguém por comércio irregular. Mas me perguntei hoje, quando vi a cena no calçadão da Barão de Itapetininga, na República: e se os ambulantes ficassem quando os policiais passassem, seriam presos, teriam suas mercadorias confiscadas? Creio que sim. Não para mostrar serviço, nada disso. Oficialmente seria por comércio irregular, mas o motivador de fato seria o desrespeito pelos mantenedores da ordem: estamos cá passando, na autoridade de nossas fardas, e vocês acham que não valemos nada, nem dois minutos de interrupção dos seus negócios? O que resta, afinal, é uma pequena farsa do nosso processo civilizatório estancado a meio caminho: ambulantes se escondem fingindo preocupação autêntica, os militares desfilam como se sua autoridade fosse respeitada plenamente, os transeuntes assistem sem maior comoção. Me lembrei do conto do Machado de Assis "O espelho - esboço de uma nova teoria da alma humana", publicado em 1882 - antes da república, antes da abolição. Não acredito que Machado tenha sido um visionário, antes, nós que ainda não superamos aquela condição por ele retratada há mais de cem anos: um país que nunca viveu como uma comunidade (após a chegada européia) e cuja sociedade até hoje é constituída por castas e corporações, disfarçada numa pretensa mobilidade social - cujos exemplos máximos e quase únicos são o ex-metalúrgico que ascendeu à presidência e o ambulante que virou dono de emissora de tevê (semelhanças com espetacular concentrado e difuso é coincidência). O cidadão só tem direito a ser sujeito a partir do momento em que veste algum insígnia: médico, juiz, advogado, policial, fazendeiro, pastor, novo-rico ou, na ausência de um cargo com valor social, a ostentação da graça dos eleitos para o reino de deus (e congêneres). O fato de ser uma pessoa, sem maiores adjetivos, não dá valor nenhum ao indivíduo - seja padre, empresário ou pobre. E enquanto nossa sociedade admira exemplos burlescos de homens de sucessos, policiais militares desfilam o pouco de valor que suas fardas os imbuem para os desvalidos de tamanha sorte.


São Paulo, 06 de agosto de 2014