quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Defina "carne"

Quando morava em Campinas, na falta do que fazer me sobrava bastante tempo para pensar - algo que nunca me foi um incômodo. Não que pensar muito seja pensar bem, muitas vezes é exatamente o contrário. No meu dia-a-dia trata-se apenas da forma de gastar calorias que, segundo meu homeopata, justificava eu então ser peso-leve (caso gastasse essas calorias boxeando). 
Dentre minhas idéias mirabolantes, veio a de uma dieta que meus amigos chamavam de "dieta maluca", mas admitiam que fazia sentido. Arrazoava eu: há quem diga que comer carne faz mal; há quem diga que não comer carne faz mal; e muitos dizem que comer peixe faz bem. Pois, então, em três dias da semana (consecutivos ou não) eu não comia carne, comendo nos outros quatro, sendo um deles necessariamente peixe. Admito: essa diminuição na carne fez com que eu me sentisse mais bem-disposto. E admito também: em São Paulo, com várias coisas pra fazer, abandonei essa dieta, que durou uns sete anos. Conforme meus amigos o critério para decidir se era dia de carne ou dia de não-carne era simples: se eu fosse sair com eles para comer uma pizza, era dia de não-carne, se isso não fosse perturbar ninguém, era dia de carne - um evidente despautério!
Uma vez, diante da vitrine de salgados de uma cantina, perguntei se havia algum sem carne. O atendente foi rápido: este daqui; é frango com catupiry. Pedi um pão-de-queijo.
Pior foi um amigo meu, vegetariano sete dias por semana. Estava ele num restaurante vegetariano quando achou que tinha comido carne. Revirou a comida, separou, analisou, até achar o intruso: havia carne! Chamou o garçom, fez a reclamação. O garçom chamou o dono, meu amigo mostrou a prova do crime: olha aqui, é carne. O dono recusava veementemente: impossível! Este é um restaurante vegetariano, como é que vai ter carne na comida?! Chamou a cozinheira, para deixar tudo muito claro. Interrogada, a cozinheira garantiu que não havia carne na comida. Meu amigo mostrou o pedaço suspeito: ah, não? E isto aqui, o que é? Ela se manteve convicta: isso não é carne, é presunto!


São Paulo, 08 de outubro de 2014.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Brincou, caiu, machucou?


Saio do metrô nostálgico, e logo na primeira banca me deparo com uma máscara de plástico do Homem-Aranha, dois furos para os olhos. Lembro da minha de Changeman, mil novecentos e batatinhas: se não me falha a memória, a minha era vermelha, e a do meu irmão, azul (será por isso minha mania em usar vermelho, a ponto de uma amiga, quando sugeriu que eu usasse roupas coloridas, emendou a seguir: "vermelho não vale como cor pra você, é praticamente um intermediário entre o branco e o preto"?). E vestido com a máscara, lá ia eu salvar o mundo com minha espada do Thundercats, seguido pelo meu irmão, com sua máscara e sua espada, em nossas aventuras a la Don Quixote pelo quintal da casa - só não me recordo se algum dia ele conseguiu ser rei de uma ilha, bem possível que tenha sido e eu não prestei a devida atenção. Me questiono agora: por que a viseira tinha vários furos, ao invés de só dois? E por que não uma viseira de plástico transparente, por que aqueles furos todos? Com furos ou com viseira, azul, vermelha ou de outra cor, nenhuma dessas aventuras me deixou trauma.
Contrariamente à uma outra, cujo cartaz no metrô, alguns minutos antes, me fez rememorar. Esperava o trem e observava as propagandas. Numa delas, um anti-séptico, versão spray e versão "antiga". Só de ver o aplicador senti a dor de quase trinta anos atrás: estava eu na casa do meu amigo, o vizinho logo ao lado, e após (mais) uma briga, saio enfezado e tropeço num buraco que havia na calçada. Muito religioso, é bem capaz de ele ter dito que foi deus quem fez isso, para eu aprender, mas isso é suposição de agora, a partir de outras lembranças. Nessa ocasião específica, lembro de abrir um berredo e ser socorrido pela mãe dele, que ligou para a minha (ela estava no trabalho), e vir, então, a fatídica aplicação daquele desgraçado anti-séptico. (Antes de começar a escrever esta crônica, analisei meus joelhos, tentando adivinhar qual das cicatrizes seria desse tombo. Não sei). Lembro de ter tentado fugir, em vão. E se eu já chorava, com certeza depois dessa aplicação o negócio potencializou trocentas vezes: aquele remédio fazia a ferida latejar de ardência, ardia até a alma, arde até hoje! Parecia um castigo: brincou, caiu, machucou, chorou? Hora de passar o anti-séptico pra ver o que é dor de verdade. 
A propaganda no metrô avisa: não arde. Tenho a impressão de já ter ouvido isso antes.

São Paulo, 06 de outubro de 2014.