sexta-feira, 13 de março de 2015

Stifters Dinge em uma leitura kafkiana [Diálogos com o teatro]

"Uma composição para cinco pianos sem pianistas, uma peça sem atores, uma performance sem performers" - eis a descrição do espetáculo Stifters Dinge, de Heiner Goebbels e do Theatre Vidy-Lausanne, apresentado na segunda edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITSP). Um espetáculo sem atores - no máximo dois contra-regras - em uma mostra de teatro não poderia deixar de causar algum estranhamento; porém há algo no que é apresentado que nos soa familiar, natural - e não deveria ser.
A obra de Goebbels é inspirada na do escritor austríaco do século XIX, Adalbert Stifter (daí o título, "Coisas de Stifter"), o qual reconheço desconhecer - daí que minha leitura possa ficar seriamente prejudicada. 
Ao fundo, os cinco pianos, com suas entranhas de cordas e martelos à mostra, contracenam com árvores secas e outros elementos dos quais se extraem sons para acompanhá-los na apresentação. No meio, uma grande chaminé. Esse cenário me remete a Metrópolis, filme de 1927 de Fritz Lang - a fábrica engolindo pessoas com suas chaminés soltando fumaça. A diferença está que não há pessoas neste caso - a máquina libertando o homem ou suprimindo-o? (A aridez do cenário me faz acreditar na segunda opção). Entre os pianos e o público, três retângulos no chão. Ao lado desses retângulos, caixas de sons e outros "instrumentos musicais", como dois grandes tubos de pvc. À direita de cada retângulo, uma grande gaiola com um recipiente plástico cheio d'água.
A figura humana não está totalmente ausente: dois contra-regras aparecem para auxiliar a máquina, no início da apresentação - daí me vir a lembrança de Na colônia penal, de Franz Kafka. O homem a serviço da máquina, bem adestrado para o bom funcionamento da engrenagem. Primeiro eles jogam um pó sobre os retângulos pretos, tornando-os brancos. A seguir, abrem a água para cada um dos retângulos. Passado um tempo, recolhem as mangueiras e a cena fica toda ela por conta do cenário-máquina. 
O que presenciamos, a partir de então, é a demonstração daquela estranha engenhoca e sua música, acompanhada de um trabalho de luz complexo e discreto, marcante sem ser espetacular: basicamente focos nos diversos "instrumentos" espalhados pelo palco, projetores sobre nos retângulos, auxiliados por ribaltas rente a cada um, e um projetor para os pianos do fundo. O clima é sombrio, tenso. Sinto como se estivesse assistindo à demonstração da máquina kafkiana de Na colônia penal, porém sem o condenado - ou seríamos nós os condenados, apenas sem perceber que temos nossa pena sendo marcada no fundo de nosso corpo enquanto comemos nossa ração diária?
A ausência humana é interrompida pela projeção da imagem de um quadro que retrata algumas árvores e o céu - que se modifica, perde e ganha contornos e realidade conforme são alteradas as cores, contraste e saturação -, acompanhada de um longo texto em off - o qual, acreditei eu ser de Adalbert Stifter. Uma meia presença, portanto, diante de um movimento estático. Contradições que não nos perturbam. A seguir, uma entrevista com um Levi-Strauss pessimista e desesperançoso. Me questiono o quanto um estruturalista assentir a falta de perspectivas para a humanidade não corrobora Kafka: "há esperanças, mas não para nós". Em dado momento, o antropólogo relembra de uma brincadeira juvenil, de sair caminhando em linha reta até cansar, na esperança de achar algo esquecido pela civilização nas margens de Paris - esperança que, velho, ele recusa até para os rincões do mundo. Fachos de luz passam a percorrer os retângulos, como scanners, como a enfatizar Levi-Strauss: nada passa despercebido pelas máquinas da civilização tecno-industrial. 
A música volta a ser executada - o show não pode parar, a música não pode parar, o trabalho não pode parar. O ritmo é frenético, há coreografia para os martelos dos pianos, fumaça é solta próxima à base da chaminé. Levo um tempo até notar que os pianos e todo o cenário meio Fritz Lang avançam por sobre os retângulos, em direção ao público - seria a máquina kafkiana colapsando? Não era o caso. A máquina percorre os retângulos, pára diante do público, como a encarar sua próxima vítima, e ao retroceder restam as águas borbulhando. Me sugere o inferno de Dante, mais ainda o Hades - seria esse o caminho que a máquina reserva aos homens?
O espetáculo acaba. Aplaudimos o homem por trás da máquina, mas é a máquina que avança para agradecer. Rimos com a piada, não estranhamos a ausência humana, e descemos para ver de perto a engenhoca que parece saído de um conto de Kafka para nosso deslumbramento ingênuo.

São Paulo, 13 de março de 2015

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

PSDB, choque de gestão, gestão de choque e omissão de notícias

Um dos bordões mais usados pelos políticos do PSDB é o tal "choque de gestão". Acompanhando as recentes notícias nos estados e rememorando alguns governos de antanho, começo a perceber com mais clareza que o tal choque de gestão tucana é antes uma série de fios desencapados ao alcance do cidadão do que uma blitzkrieg na forma como o Estado é governado.
Fernando Pimentel, em Minas Gerais, reclama da herança maldita de vinte anos de tucanos à frente do estado. Alguém pode dizer que é retórica vazia copiada do ex-presidente Lula; convém lembrar, contudo, que a inflação - esse mal impiedoso que Leitões da vida falam como se fosse a única importância do mundo - estava acima de doze por cento quando o PT assumiu o governo federal. No Paraná, bastaram quatro anos para que Beto Richa montasse a bomba que explodiu em seu próprio colo. Tem agora menos de quatro anos para evitar que aconteça com ele o partido no estado o que aconteceu com o PSDB gaúcho após o choque de gestão da ex-governadora Yeda Crusius: o quase desaparecimento da legenda, agora com um deputado federal e quatro estaduais. Isso para não falar no estado mais rico da federação, em que o partido tenta se tornar um mini-PRI, sobrevivendo graças ao conservadorismo xenófobo da classe média do centro paulistano e dos grotões agrícolas do interior.
Será mesmo o PSDB tão inapto à gestão da coisa pública?
Em dois mil e um, com uma estiagem bem menos severa que a atual, em que sequer se levantou a possibilidade de racionamento de água nos grandes centros urbanos do sudeste, o país teve racionamento de energia, afetando a produção e o emprego - era o sétimo ano do governo de FHC. Agora, em dois mil e quinze, em São Paulo e no Vale do Jequitinhonha, no semi-árido mineiro, a pouca chuva é assunto recorrente. A diferença está que o paulistano não sabe se terá água, até quando e em quais condições, enquanto o morador do "vale da miséria" não tem esse tipo de preocupação: água limpa para beber e cozinhar está garantida, graças a um programa simples e barato de cisternas do governo federal petista. O governo de Minas era alertado há três anos pelos industriais sobre a iminência de uma crise hídrica. Em São Paulo o assunto também não era desconhecido, mas nem Anastasia, nem Alckmin fizeram qualquer coisa. É desse misto de omissão, incompetência e falta de transparência do governo paulista que um surto de dengue atinge na capital e o risco do cólera volta a preocupar os responsáveis pela saúde pública.
Curiosamente, a crise hídrica e o iminente racionamento de água em São Paulo só começaram a ser noticiados com um pouco mais de ênfase pela Grande Imprensa quando se levantou a possibilidade (por ora pouco provável) de racionamento de energia. Uma série de reportagens já mostraram e demonstraram todas as perdas que a indústria e o país terão no caso de um racionamento de energia, fruto do descalabro do governo petista. Ah, sim, no canto da página do meio de um caderno também se noticia que caso haja desabastecimento temporário de água em São Paulo podem ocorrer algumas externalidades negativas.
Ok, a gestão de choque dos tucanos é marcada por falta de planejamento, corrupção (a corrupção na Petrobrás, conforme um dos delatores da operação Lava-Jato, teria começado no primeiro mandato de FHC), desemprego, aumento de impostos, aumento de juros, crise na educação e na saúde, colapso da segurança pública, mas deve haver algo positivo feito em benefício da população.
Leio hoje na internet que em breve os estudantes da rede pública terão bilhete gratuito nos trens da CPTM e Metrô. Uma ótima notícia, sem dúvida! Entretanto, o PSDB levou vinte e quatro anos (!), mais ou menos uma geração, para tomar essa medida simples e só o fez depois que Haddad implementou para os ônibus. O mesmo vale para o bilhete único mensal: foi depois de Haddad ter posto em prática nos ônibus que o governador criou para os trilhos. Ah, sim, o bilhete único: outra boa medida do PSDB tomada só depois de implementada pelo PT (com a Marta).
É de se perguntar: se o PSDB é tão desastroso assim no comando dos postos executivos, como pode seguir ganhando eleições? Primeiro que há parcelas da população que saem ganhando - em geral uma minoria bem abastada. Segundo, que essa minoria bem abastada e satisfeita é amiga dos reis da comunicação - se não for ela mesma a sentar no trono. Seus porta-vozes estão vinte e quatro horas defendendo quem sempre defende seus interesses - os cristãos-novos do velho arranjo das oligarquias brasileira e internacional, esses podem pagar a penitência que for, dar as costas aos seus eleitores, que não são agraciados com a graça divina dos barões da mídia. Daí toda a notícia negativa ser culpa do PT e o PSDB aparecer sempre como o partido comprometido com a resolução do problema (divino, porque sempre se omite que foi o próprio partido quem o criou). Terceiro, porque há um preconceito de classe que desde a ascensão do PT ao poder federal faz a parte abastada da sociedade se roer de raiva, fazendo de forma cada vez mais agressiva - do ex-presidente por não ter curso superior (equivalente a analfabetismo) à presidenta por, por... porque sim -, deixando transparecer o ódio - estimulado pelos âncoras e comentaristas rádio-televisos - e pondo por terra a tese do brasileiro cordial, tão-logo a senzala usou o elevador social pela primeira vez (alguém lembra o alvoroço da Veja quando as domésticas ganharam direitos trabalhistas?).
Por fim, às acusações de que eu seria petista, que já antevejo, não nego simpatia muito maior pelo projeto do Partido dos Trabalhadores ao do Partido da Social Democracia Brasileira, porém tirando dessa relativização, sou crítico do PT, que me parece um partido mais interessado no discurso do que na prática em realizar mudanças profundas na estrutura social do país - Lula disse em algum canto que a mudança que ele fizera era a que o Brasil permitia sem cair em novo regime de exceção. Me parece que às vezes vale tensionar e tentar ir além dos limites aparentemente impostos.

23 de fevereiro de 2015.